sexta-feira, 25 de maio de 2007

O enigma Clarice

O texto que vocês estão prestes a ler foi extraído do blog: http://paisagensnajanela.zip.net/ da escritora Denise. Vale a pena uma conferida, tenho certeza de que a paz dos textos vivos e bem escritos são antídotos válidos no mundo de hoje. Boa leitura!

Eu não sei se acontece com todo mundo, mas tem dias que queria algo bem pronto e fico com medo da aventura que é ler Clarice. Já comecei um texto sobre seus textos para jornal acho que dezenas de vezes e sempre paro na última linha me perguntando onde isso vai dar. Já terminei outros e fico com a sensação de não, e ainda não. Tenho a impressão que não vou a lugar nenhum e fico paralisada, mais múmia impossível. Clarice é minha esfinge. Eu a consulto todos os dias. Clarice é meu enigma e eu a leio todos os dias só para ver as linhas se cruzarem. Quando tudo parece fazer sentido, a coisa me escapa. Quando penso que a peguei, ela diz que não. O que faço com Clarice? Um dia, qualquer dia desses, lhe prego uma peça, e bem merecida, porque Clarice vive me pregando peça, me dando no pega, me danando. Que mania é essa de escrever nas entrelinhas! Olha, Clarice, está bem, vamos fazer um pacto: eu entro com a pergunta, você com a resposta. E chega de charadas. Está bem, lógico que você tem razão e que no meio da zoeira, eu me divirto. Nem zoeira é. Eu sou tonta e burra como porta. Porta tem função. Literatura também tem? Eu faço a pergunta e você responde, mas chega de charada. É claro que Clarice é o meu fantasma, de madrugada, enquanto todos dormem, lá está Clarice a rondar meus sonhos, a me perguntar porque eu disse aquilo e aquilo outro e a desviar meu caminho, a dizer que isso é uma asneira, que mais vale um cachorro morto. E o que eu faço nas manhãs de cólera de Clarice? E quando a ira de Deus a toma, Meu Deus! Eu tenho medo de Clarice quando ela está irada. Clarice não é boazinha e nem gosta de gente boazinha. Ela também não perdoa, mas tem um grande amor dentro de si. O que a gente faz com gente que nasce imbuído de tanto amor, mas de tão grande amor que a gente sente a ferida exposta? Clarice é um cavalo solto e livre. Ela é peixe também, porque Clarice vive devindo animal na alma da gente. E ela tem um espírito que é leve, doce, mas tão leve que de pluma nada tem. Ela não é gato. Acho que é leopardo. Não. Ela é pássaro. O que a gente faz com pássaro? Deixa voar. Acho que só tem um jeito de ler Clarice: entrando dentro do quadro. Olhando as cores. Observando as linhas que se cruzam. E não é assim, com essa redoma no entorno, que consigo ler Clarice. Não se pode aprisionar Clarice. Ela entra em linha de fuga. É. Porque tem uma redoma que se chama método ou algo que o valha que se arrebenta quando se lê Clarice. É porque Clarice só se permite o vôo livre. Eu, na rasante, fico pensando que não se leva Clarice no bico. Ela entorta o bico e te bica. Clarice é assim. Ela é o fundo no raso. Ah, e então, vem Deleuze. Parece que uma coisa cola na outra. O Carlos Mendes já disse isso. Clarice e Deleuze parecem irmão gêmeos, um adivinhando o pensamento do outro. O meu enigma é a esfinge. Clarice é. E eu? No só. Já se disse que Clarice é uma estrela? Tudo já se disse sobre Clarice. Nada se disse. Sua luz irradia no longe, longe, mas Clarice já está dentro do nada mais puro. É que no nada - lá está Clarice -, no fundo, lá na origem, criando no Cosmo. O que se faz com estrelas? Cada estrela cadente que rasga o céu me lembra Clarice. E eu faço uma prece para que a esfinge me devolva o fio de voz. Quero uma espada, com lâmina secreta e muita magia, para desvendar a palavra cortante de Clarice.

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