sexta-feira, 29 de agosto de 2014

Sob a Pele


            Não, não foi fácil. Quando terminou o filme, senti um certo desconforto e irritação. Achava ter perdido o meu precioso tempo. Filme lento com ênfase nas situações evolutivas de aprendizagem, cálculo ou conflito do alienígena Johansson.
            Não, não foi fácil, mas depois veio aquele incômodo que me norteou por algum tempo depois da projeção. Sensação de ter perdido alguma coisa, alguma chave que deixava cair entre a dúvida do tédio e a incerteza da obra produzida.
            Não, meus amigos, Sob a Pele (Under the Skin) não é um filme com a deusa Scarlett Johansson nua. É, antes, o oposto disso. A nudez ali não tem sintonia com o erotismo. Há muito mais sensualidade e pornografia no seu andar sedutor, conduzindo as suas “presas” para o inevitável destino, aliado ao seu olhar hipnotizador e sorriso de esfinge Mona Lisa, do que o seu corpo despido. O corpo, quando confrontado no espelho, serve, apenas, para a amálgama entre a imagem e o alienígena. É o outro cultuando a nós, tentando ser-nos, como uma celebridade que, no olimpo, precisa dos mortais para poder existir. Copula com eles. É a atração da estrela e o seu povo.
            E depois de andar no nosso meio e se alimentar de nós mesmos, eis que o processo evolutivo o impulsiona para a trágica humanização. E é quando, justamente, aprende a nos amar que, confrontada no espelho, encontra a morte pelas mãos desumanas e cheias de instinto.
           Sob a Pele é sobre a nossa sociedade cultuadora, sobre nossos espelhos e sobre o outro (que caminha sobre a água) que nós queríamos ser (ou confrontar).
            Bom ou ruim, causa reflexão. Só não sei se vi um filmaço.


Under the Skin – 2013 – Direção: Jonathan Glazer


O Brasil e os próximos anos



À medida que estamos mais perto da eleição, se evidencia também a necessidade de avaliar as opções estratégicas que aguardam o Brasil nos próximos anos. 

Hoje, muita gente acha que se nos aproximarmos muito do mundo em desenvolvimento, como a América do Sul, África e as potências emergentes às quais estamos unidos no BRICS - Rússia, Índia, China, África do Sul - estaremos nos afastando cada vez mais da Europa e dos EUA.

Há, entre certos tipos de brasileiros, os que continuam cultuando apenas o que existe em Nova Iorque, Miami ou Paris, como se não existisse mais nada neste mundo, e os arranha-céus mais altos do planeta não estivessem sendo construídos – para ficar apenas no símbolo de modernidade e pujança das “skylines” que fizeram a fama dos EUA – em cidades como Moscou, Dubai, ou Xangai.

Ataca-se a China por censurar o Google, mas não se atacam os EUA por usarem a internet para espionarem e chantagearem milhões de pessoas em todo o mundo, incluindo nações de quem se dizem “aliados” como é o caso do Brasil e da Alemanha.

Atacam-se os países do MERCOSUL por nos impor barreiras comerciais, mas não a Europa e os Estados Unidos por terem feito conosco exatamente o mesmo, nos últimos 200 anos, bloqueando – sempre que puderam - o desenvolvimento de tecnologia em nosso continente e absorvendo, antes e depois de nossa independência, basicamente matérias-primas.

Muitos esquecem que o MERCOSUL, com todas suas barreiras, continua o maior, e, às vezes, o único destino para nossas manufaturas. Que só para países como a Venezuela temos aumentado nossas exportações nos últimos anos.

Isso, enquanto têm diminuído nossas vendas e nossos ganhos – e os do resto do mundo - com a Europa e os EUA, no esteio das consequências de uma crise que já dura vários anos e que teve sua origem na desorganização e irresponsabilidade do sistema financeiro que está sediado ao norte da linha do Equador. 

A pergunta que cabe que nos façamos nos próximos anos é a seguinte: a que mundo pertencemos?

Ao da Europa e dos EUA, que sempre nos trataram como colônia e cidadãos de segunda classe a ponto de termos tido milhares de brasileiros expulsos de seus aeroportos há pouquíssimo tempo? 

Ou ao mundo em desenvolvimento, onde a cooperação e a necessidade de agregar centenas de milhões de pessoas a uma vida mais digna abre a porta para a oportunidade da realização de acordos e negócios que podem influenciar e melhorar também nosso futuro?

Assim como ocorre na área comercial e diplomática, o Brasil precisa melhorar sua condição de negociação com os EUA e a Europa na área de defesa, usando, para isso, a perspectiva e a ameaça, sempre presentes, de nos aproximarmos, também nessa área, cada vez mais dos BRICS.

Os Estados Unidos e a Europa sempre se mostraram refratários a transferir tecnologia sensível ao Brasil e a outras nações latino-americanas.

Os avanços conseguidos nesse campo pelos governos militares foram feitos a fórceps, como ocorreu nas áreas bélica e aeroespacial, depois do rompimento, pelo Governo Geisel, dos acordos de cooperação com os EUA na área militar, e a aproximação com a Alemanha no campo da utilização pacífica da energia atômica.

Os países “ocidentais” só aceitam transferir um mínimo de tecnologia bélica para países como o Brasil, quando a isso se veem obrigados pelas circunstâncias.

Isso ocorre no caso em que estejamos prestes a alcançar certos avanços sozinhos – e aí eles se aproximam para “monitorar” e “medir” nossos avanços- ou se tivermos outros parceiros, como China ou Rússia – dispostos a transferir para nossas empresas, técnicos ou cientistas, esse conhecimento.

Depois do tímido esforço de rearmamento iniciado pelos dois últimos governos, virou moda, nos portais mais conservadores, se perguntar contra quem estamos nos armando, se vamos invadir nossos vizinhos, ou, ridiculamente combater os Estados Unidos.

Muitos se esquecem, no campo da transferência de tecnologia na área de defesa, que sempre fomos tratados pelos Estados Unidos como um inimigo ao qual não se deve ajudar, em hipótese alguma, a não ser vendendo armas obsoletas ou de segunda mão.

No programa FX, de compra de caças para a Força Aérea, a BOEING norte-americana só concordou em transferir tecnologia para a Embraer – acordo que teria, antes de concretizado, de ser aprovado pelo congresso norte-americano – depois que os franceses, com o RAFALE, e os suecos, com o GRIPPEN NG BR, já tinham concordado em fazer o mesmo. E isso quando vários oficiais da Força Aérea brasileira se manifestavam nos fóruns, torcendo abertamente pelo SUKHOI S-35 russo.

O melhor exemplo do que pode ocorrer, em caso de conflito, principalmente com algum país ocidental, se dependermos da Europa ou dos EUA para nos defendermos, é o argentino.

Na Guerra das Malvinas, as mesmas empresas que, antes, forneciam armas e munição para que o Regime Militar massacrasse a população civil, em nome da “guerra interna”, das “fronteiras ideológicas” e do “anticomunismo”, deixaram de fornecer armas e peças de reposição às forças armadas daquele país, para que não fossem usadas contra a Inglaterra.

Os Estados Unidos só concordariam em fornecer armamento avançado ao Brasil, mas nunca no nível do deles, caso aceitássemos nos transformar em seus cães de guarda na América do Sul, como o faz Israel no Oriente Médio; ajudássemos a criar uma OTAN no hemisfério sul; ou concordássemos, como é o caso da Itália ou a Espanha, em participar, sub-alternamente, em “intervenções” como as feitas por Washington em países como a Líbia, o Iraque e o Afeganistão, correndo o risco de indispor-nos com milhões de brasileiros de origem árabe e de virar, de um dia para o outro, alvo de ataques, em nosso próprio território, de organizações radicais islâmicas.

Nos últimos anos, conseguimos desenvolver uma nova família de armas individuais 100% nacional, as carabinas e fuzis IA-2, da IMBEL; uma nova família de blindados leves, a Guarani, dos quais 2.050 estão sendo construídos também em Minas Gerais; desenvolvemos o novo jato militar cargueiro KC-390, da Embraer, capaz de carregar dezenas de soldados, tanques ligeiros ou peças de artilharia; voltamos a fortalecer a AVIBRAS, com a compra do novo sistema ASTROS 2020, e o desenvolvimento de mísseis de cruzeiro com o alcance de 300 quilômetros; estamos construindo no Brasil cinco novos submarinos, um deles a propulsão nuclear e reator nacional, com a França, um estaleiro e uma nova base para eles; desenvolvemos a família de radares SABER; foi fechada, com transferência de tecnologia e desenvolvimento conjunto com a Suécia, a construção em território brasileiro de 36 caças GRIPPEN NG-BR; conseguimos fazer, no Brasil, a “remotorização” de mísseis marítimos EXOCET; foi fechada a transferência de tecnologia e está sendo desenvolvido, com a África do Sul, o novo míssil ar-ar A-DARTER; foram comprados novos navios de patrulha oceânica ingleses; helicópteros e baterias antiaéreas russas; e aumentou-se a aquisição e a fabricação de helicópteros militares montados na fábrica da HELIBRAS.

Esses projetos, que envolvem bilhões de dólares, não podem, como já ocorreu no passado, ser interrompidos, descontinuados ou abandonados, nos próximos anos, pelo governo que assumir o poder a partir de janeiro de 2015.

Vivemos em um planeta cada vez mais multipolar, no qual os Estados Unidos e a Europa continuarão existindo e seguirão tentando lutar para se manter à tona contra uma lógica – e inexorável – tendência à decadência econômica, militar e geopolítica.

Nesse contexto, os EUA e a Europa têm que ser olhados por nós como potências que estão no mesmo plano, militar ou político, que a China, a Rússia, a Índia ou o próprio Brasil.

Como quinto maior país em população e extensão territorial, o Brasil tem a obrigação de negociar, e entrar no jogo, com todas essas potências, de igual para igual, e, nunca mais de forma subalterna. Sob a pena de perder o lugar que nos cabe neste novo mundo e neste novo século.


segunda-feira, 18 de agosto de 2014

Vaias, aplausos e emoção em um velório político


 




do Recife

Ao ouvir uma lista interminável de governadores presentes, o rapaz ao meu lado brincou: “era mais fácil avisar os 3 ou 4 que não vieram”. De fato, estava todo mundo lá. Lula, Dilma, Aécio, metade do ministério, dezenas de parlamentares, candidatos a tudo que é cargo de todos os estados, ex-políticos e autoridades em geral. Renata Campos ficou ao lado de Marina Silva a maior parte do tempo. Ela e Antonio Campos, irmão de Eduardo Campos, têm dado repetidas declarações em tom eleitoral. Os deputados Beto Albuquerque e Luiza Erundina, ambos do PSB e apontados como possíveis candidatos a vice, estavam lá. Roberto Amaral, presidente da legenda e opositor ao lançamento automático de Marina, também estava na primeira fila na hora em que o caixão desceu. Aí veio a polêmica das vaias X aplausos na chegada da presidenta Dilma Rousseff, que foi à cerimônia acompanhada do ex-presidente Lula.

Quando a candidata a reeleição chegou, houve um pequeno princípio de vaia, logo abafado por aplausos. E ficou por isso. Foi um episódio que durou poucos segundos e que não lembra, nem de longe, o xingamento de dezenas de milhares de pessoas direcionado à presidenta na abertura da Copa do Mundo. Foi um momento tão marginal que eu, que estava ao lado do palco da missa junto aos populares e fora da área reservada a autoridades e jornalistas, nem vi ou ouvi nada.

Foi então a vez da imprensa tradicional reforçar o tom político do ato deste domingo.

Alguns veículos noticiaram o ocorrido da seguinte forma: “Lula e Dilma são vaiados em velório de Campos”. Acreditar que Lula seria vaiado por uma multidão em plena capital de Pernambuco é um erro jornalístico provavelmente causado por uma falta de experiência aliada à cultura de perseguição ao ex-presidente, uma obsessão de determinados donos de empresas de comunicação que acaba contaminando os repórteres que vão para a rua. Nem todos respaldaram essa versão e noticiaram que o princípio de vaia era, como tudo indica, apenas para Dilma.

É um belo exemplo de como funciona a mídia no dia a dia. Fica ainda mais uma vez claro que o tal “jornalismo imparcial” é uma lenda com respaldo eventual apenas entre calouros de faculdades de comunicação ou no marketing. Na vida real o jornalismo imparcial não existe.

Explico melhor, a partir deste exemplo citado: aconteceu um princípio de vaia à presidenta, logo encoberto por aplausos. Dilma estava ao lado de Lula, e eles chegaram juntos ao velório. Há muitos títulos possíveis. Por exemplo: “Lula e Dilma são vaiados em velório de Campos”; “Dilma é aplaudida no velório de Campos”; “Lula e Dilma são vaiados e aplaudidos no velório de Campos”; ou ainda simplesmente: “Lula e Dilma comparecem ao velório de Campos”. E por aí vai. Qual o correto? Não há resposta objetiva. Cada veículo escolhe o enunciado que lhe convém, de acordo com suas preferências políticas.

Fica evidente, novamente, a necessidade de uma maior pluralidade na mídia brasileira, que quase em sua totalidade segue uma única linha ideológica-editorial e não representa a riqueza da diversidade da população.

Camisetas e bandeirinhas

Não foi apenas a revoada de autoridades que caracterizou a despedida de Campos como um enorme ato político.

Desde ontem à noite uma multidão ocupou o entorno do Palácio Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco, onde Campos e algumas das outras vítimas do acidente de quarta-feira passada foram veladas. Milhares de pessoas formaram uma fila que serpenteava pelo bem preservado centro histórico da capital pernambucana. Esperaram horas e horas embaixo do sol para olhar por alguns segundos o caixão lacrado do ex-governador. E aí tinha de tudo. Gente que veio de longe ou mora ao lado; filiados do PSB; pessoas fantasiadas; bebês de colo, senhoras e senhores de idade; grupos de bombeiros ou PMs uniformizados etc.

Alguns elementos eram onipresentes. Primeiro, as bandeirinhas. Eram milhares delas, de dois únicos modelos: a do estado de Pernambuco e outra toda preta com a pomba branca que é o símbolo do PSB. Ambas foram distribuídas pelos militantes da campanha Campos-Marina. Depois, as camisetas. Contei 12 modelos diferentes com a frase “Não vamos desistir do Brasil”, slogan lançado involuntariamente por Campos na fatídica entrevista do Jornal Nacional na noite anterior à queda do jatinho que o matou em Santos. Eram de várias cores, com ou sem o rosto do homenageado. Como as bandeirinhas, as camisetas também foram confeccionadas e distribuídas pela campanha Campos-Marina.

Ao lado da grande fila para o caixão, uma menor, com cerca de 100 pessoas, chamava a atenção: estavam todos com o mesmo modelo amarelo da camiseta “Não vamos desistir do Brasil”. Eram militantes pagos do PSB que aguardavam para pegar um sanduíche de mortadela, parte do pagamento pelo serviço do dia: a distribuição de camisetas, adesivos e bandeiras com os rostos de Eduardo Campos e Marina Silva e a promoção dos “bandeirassos” --ação na qual militantes ficam em pontos de grande circulação agitando estandartes de um partido ou candidato.

Eduardo Campos é neto de Miguel Arraes, o político de maior prestígio da história de Pernambuco –e talvez agora lhe tome esse posto. Era um candidato competitivo a Presidência da República. Logo, nada mais natural que sua despedida fosse um ato político. Houve comoção popular? Houve, claro. Uma comoção intensa e amplamente compreensível. É inegável, contudo, que o pano de fundo era a política.

Mas muita calma nesta hora. Por mais que Marina Silva e parte de seu eleitorado se diga contrária à chamada política tradicional, sem ela a ex-senadora não se elegerá, e ela sabe disso. Sendo assim, é legítima a tentativa de seus apoiadores de capitalizar eleitoralmente este momento de comoção nacional a seu favor. É igualmente legítimo veículos de comunicação defenderem suas posições, mesmo quando as estas são ocultadas por um discurso capenga de imparcialidade. Mais: é até saudável e natural que a despedida de Campos, um político extremamente hábil e promissor, tenha sido um ato político.

Não há mal algum nisso. O Brasil ficará mais maduro e com uma democracia mais fortalecida quando pessoas, partidos e mídia não precisarem fingir que não estão fazendo política. Criminalizar a política como um todo não ajuda ninguém. Pelo contrário. E Eduardo Campos sabia disso.