sábado, 28 de fevereiro de 2009

Direita, volver!

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Por: Luiz Antonio Magalhães, em 23/2/2009
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Há males que vêm para o bem, lembra o dito popular. No último dia 17 de fevereiro, em Editorial contra o presidente venezuelano Hugo Chávez, a Folha de S. Paulo qualificou, assim como quem não quer nada, en passant, de "ditabranda" o regime militar que vigorou no Brasil entre 1964 a 1985.
Para que não reste nenhuma dúvida sobre o que foi escrito na Folha, vai a seguir a transcrição do trecho que vem provocando tanta polêmica:
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"Mas, se as chamadas ‘ditabrandas’ -caso do Brasil entre 1964 e 1985- partiam de uma ruptura institucional e depois preservavam ou instituíam formas controladas de disputa política e acesso à Justiça-, o novo autoritarismo latino-americano, inaugurado por Alberto Fujimori no Peru, faz o caminho inverso."
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Para começo de conversa, causa espécie que o jornal escreva "as chamadas ‘ditabrandas’" quando não há notícia de que alguém tivesse, antes da Folha, a idéia de jerico de qualificar o regime militar de tal forma. Este observador fez uma busca no Google e constatou que a pesquisa retorna apenas as referências à polêmica iniciada pela Folha. Ninguém antes qualificou a ditadura brasileira de "ditabranda".
Aliás, a busca no Google já vem carregada de ironia, pois antes da primeira indicação de link, o buscador pergunta: "você quis dizer dieta branda?" Como bem sabem os iniciados, toda vez que alguém erra a digitação da palavra, o Google cuida de corrigir ou sugerir o nome correto. Ditabranda, portanto, é coisa lá da rua Barão de Limeira mesmo. Dieta branda teria sido realmente mais feliz.
Mas até aqui, é justo dizer, a direção da Folha e seus editorialistas têm todo o direito de achar que os militares pegaram leve. É uma questão de gosto e escolha, provavelmente o assinante do Estadão jamais leria tamanho despautério, ainda que o jornal se posicione de maneira muito mais conservadora do que a Folha em várias questões. A razão para isto é simples: O Estado de S. Paulo sofreu bem mais com a censura e sabe o quão duro foi o dito governo. De toda maneira, o diário da família Frias não precisa se envergonhar em qualificar de ditabranda o regime em questão, da mesma maneira que a turma da Abril não só pensa que pegaram leve como anda saudosa de um novo período semelhante, especialmente para tirar essa gente barbuda e mal educada que insiste em permanecer altamente popular em meio à maior crise do capitalismo.
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Nota da Redação: jornal muda de rumo
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Não foi no editorial, portanto, que a Folha perdeu a mão. Nos dias que se seguiram à publicação daquela jóia do pensamento que emerge no nono andar do belo prédio do jornal, os leitores naturalmente reclamaram, enviando cartas indignadas à redação. O Painel do Leitor publicou algumas nos dias 18 e 19, mas foi no dia 20 de fevereiro que o jornal mostrou a sua verdadeira cara. Depois de uma sequência de cartas de leitores, apareceram duas de "figurões", seguidas por uma inacreditável resposta da Redação, como segue abaixo.
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"Mas o que é isso? Que infâmia é essa de chamar os anos terríveis da repressão de "ditabranda’? Quando se trata de violação de direitos humanos, a medida é uma só: a dignidade de cada um e de todos, sem comparar "importâncias" e estatísticas. Pelo mesmo critério do editorial da Folha, poderíamos dizer que a escravidão no Brasil foi "doce" se comparada com a de outros países, porque aqui a casa-grande estabelecia laços íntimos com a senzala -que horror!" MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES , professora da Faculdade de Educação da USP (São Paulo, SP)
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"O leitor Sérgio Pinheiro Lopes tem carradas de razão. O autor do vergonhoso editorial de 17 de fevereiro, bem como o diretor que o aprovou, deveriam ser condenados a ficar de joelhos em praça pública e pedir perdão ao povo brasileiro, cuja dignidade foi descaradamente enxovalhada. Podemos brincar com tudo, menos com o respeito devido à pessoa humana." FÁBIO KONDER COMPARATO , professor universitário aposentado e advogado (São Paulo, SP)
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Nota da Redação - A Folha respeita a opinião de leitores que discordam da qualificação aplicada em editorial ao regime militar brasileiro e publica algumas dessas manifestações acima. Quanto aos professores Comparato e Benevides, figuras públicas que até hoje não expressaram repúdio a ditaduras de esquerda, como aquela ainda vigente em Cuba, sua "indignação" é obviamente cínica e mentirosa.
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É preciso ler com calma a tal Nota da Redação. Que a Folha respeite a opinião dos leitores é o mínimo que se pode esperar. Imagine o grau de arrogância, que já não é baixo, se não respeitasse... Mas o que realmente choca neste caso é a Redação classificar de "obviamente cínica e mentirosa" a indignação de Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides, como se para que os dois se indignassem com a barbeiragem do jornal fosse necessária a indignação prévia com Fidel Castro.
Este observador aprendeu com seu avô, pioneiro do ensino de Filosofia na Universidade de São Paulo, que o fiofó nada tem a ver com as calças. Ou, como diria outro filósofo, este da esfera futebolística, "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa". Comparato e Benevides não têm "autorização" da Folha para se indignarem, precisam antes bradar que não gostam de Fidel e seus amigos e, principalmente, que Cuba é uma DI-TA-DU-RA. Ou será que se os eméritos professores também qualificarem o regime cubano de "ditabranda" a Folha já deixaria de considerar "cínica e mentirosa" a indignação dos dois?
O pior de tudo realmente não foi o editorial, bem lamentável, mas a Nota da Redação de 20/2. Pior, sim, porque todo foca que passou uma semana em qualquer redação do país sabe que uma nota dessas não é publicada sem a anuência da direção do jornal. Por mais que o editor do Painel do Leitor vista a camisa do jornal, ele não tem autonomia para chamar Fábio Konder Comparato de cínico e Maria Victoria Benevides de mentirosa. A nota veio de cima, o que só reforça a ideia de que também o editorial foi cuidadosamente pensado para que o jornal emitisse o juízo de valor que tem, hoje, sobre a ditadura brasileira.
Não será surpresa se a Folha roubar Reinaldo Azevedo ou Diogo Mainardi da Veja. A esta altura, é bem provável, inclusive, que ambos já tenham sido sondados. E, ironia das ironias, não demora muito para o leitorado paulista de esquerda migrar para o Estadão. Há mesmo males que vem para o bem: nível de azia na leitura será bem menor...
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PS em 22/02: O ombudsman da Folha, em sua coluna semana publicada no domingo (22/02), parece concordar com este observador. Evidentemente, Carlos Eduardo Lins e Silva foi mais ameno na forma, mas não deixou de assinalar o despropósito da Nota da Redação do jornal, conforme se pode ver abaixo:
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Duas opiniões que mobilizam muitos leitores
Já me referi aqui ao escopo do trabalho do ombudsman, que não abarca as opiniões publicadas pelo jornal, em editoriais, colunas ou artigos.
O ombudsman se atém aos aspectos técnicos, factuais, comprováveis, verificáveis. Opinião é como religião, time de futebol, convicção ideológica: cada um tem a sua e nenhuma é melhor que outra.
Mas, talvez porque, como ensinava Spencer, a opinião é determinada em última análise pelos sentimentos, não pelo intelecto, ela mobiliza manifestação de muitos leitores.
Esta semana, duas motivaram pelo menos 115 mensagens. Sem entrar no seu mérito opinativo, vou tratar de ambas.
Um post de blog do Folha Online trazia no título as palavras vadias e vagabundas acima de foto em que apareciam Marta Suplicy e Dilma Rousseff. Pareceu-me uma insinuação de mau gosto e insultuosa.
Um editorial com referência ao regime militar brasileiro provocou cartas publicadas no "Painel do Leitor". Resposta da Redação a duas delas na sexta foge do padrão de cordialidade que julgo essencial o jornal manter com seus leitores.
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PS em 26/02: O diário da Barão de Limeira publicou nesta quinta-feira (26/2), no Painel do Leitor, as duas cartas reproduzidas abaixo. Sem resposta malcriada, desta vez. Será que a direção do jornal percebeu que essa história de "ditabranda" não caiu bem e resolveu recuar? É cedo para saber, mas é o que indica a ausência de resposta aos professores. Menos mal, só que ainda falta um bom "mea culpa" sobre o trocadilho infame.
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Ditadura
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Em resposta aos insultos a mim dirigidos na Nota da Redação de 20 de fevereiro próximo passado (`cínico e mentiroso´), reitero meu protesto contra o editorial, que considerou brando o regime militar brasileiro, cujos agentes mataram mais de 400 pessoas e torturaram milhares de presos políticos. FÁBIO KONDER COMPARATO , professor titular da Faculdade de Direito da USP (São Paulo, SP)
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As injúrias da Redação da Folha não me intimidam. Continuarei denunciando os crimes da ditadura, seus responsáveis civis e militares, bem como seus aliados -ontem e hoje. MARIA VICTORIA DE MESQUITA BENEVIDES , professora titular da Faculdade de Educação da USP (São Paulo, SP)
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Repúdio e Solidariedade:

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009



Não gosto de carnaval, apesar do bom descanso que esses dias me proporcionam. Descanso no sentido espiritual da palavra: churrasco, amigos, cerveja. Lembro que, na infância, achava bom desfilar de mãos dadas com minha mãe nas avenidas cariocas, nas ruas esburacadas da Baixada ou nos blocos que, no improviso, partiam das praias. Lembro de já ter saído de pirata, xerife, e pego uma chuva torrencial vestido de xeique.
Hoje, prefiro o quintal de casa, onde pulo ao som de sambas melhores, mais radicais, ao som do Chico e de algum rock que me baste. Prefiro a faca na carne do boi, a tulipa envolvendo a espuma cremosa e minha filha brincando na piscina de pobre de 3000 litros comprada em três prestações.
Contudo, tem uma coisa que nunca muda no meu coração: a Mangueira apontando na avenida, com sua bateria inconfundível, suas negras e seu estandarte, para mim, é a realização sexual da mais profunda intelectualidade.
Bom carnaval ou descanso a todos!



domingo, 15 de fevereiro de 2009

PROJETO DE LEI DO SENADO Nº , DE 2008


Projeto de Cristovam Buarque destina
dinheiro do royalty do petróleo para educação
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PROJETO DE LEI DO SENADO Nº , DE 2008
Acrescenta art. 52-A à Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, para estabelecer que os recursos recebidos por Estados e Municípios a título de royalties pela exploração de petróleo serão aplicados, exclusivamente, em ações e programas públicos de educação de base e de ciência e tecnologia.
O CONGRESSO NACIONAL decreta: Art. 1º A Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997, passa a vigorar acrescida do seguinte art. 52-A:
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Art. 52-A Os recursos destinados a Estados e Municípios, nos termos dos arts. 48, 49, incisos I, alíneas a, b e c, e II, alíneas a, b, d e e, e 50, § 2º, incisos III e IV, serão aplicados, exclusivamente, no financiamento de ações e programas públicos de educação de base e de ciência e tecnologia.
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Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação, com efeito a partir de primeiro de janeiro do ano subseqüente.
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JUSTIFICAÇÃO
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Instituídos há mais de cinqüenta anos, por meio da Lei nº 2.004, de 1953, mediante a qual foi estabelecida a política nacional do petróleo e criada a Petrobrás, os royalties do petróleo poderiam ter servido à transformação do ambiente socioeconômico dos Estados e Municípios beneficiários dessa compensação financeira.
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O uso desses recursos esteve afetado, inicialmente, de forma indicativa, à produção de energia elétrica e à pavimentação de rodovias. Posteriormente, ampliou-se o universo de políticas públicas contempladas, que passou a incluir os investimentos em abastecimento e tratamento de água, irrigação, proteção ao meio ambiente e saneamento.
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Hoje, a Lei nº 9.478, de 1997, (Lei do Petróleo), editada no auge das discussões acerca da reforma administrativa do Estado brasileiro e da desregulamentação da economia, é silente no que respeita aos destinos desses recursos no âmbito dos estados e municípios, permitindo o uso discricionário pelos gestores.
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Nos últimos dez anos, o montante de royalties distribuídos no País foi elevado em aproximadamente quarenta vezes, passando a ter peso significativo na receita orçamentária da União e dos entes federados envolvidos com as atividades de exploração de petróleo e gás natural. Em alguns Municípios produtores, essa receita supera as transferências constitucionais e legais.
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Desse modo, parece justa uma indagação corrente em todo o País: para onde estão indo esses recursos, se não é possível perceber quaisquer benefícios nas comunidades às quais deveriam servir? Até que ponto essa flexibilidade de utilização está contribuindo para que esses recursos sejam desafetados de importantes e necessárias políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidade de vida das pessoas residentes nesses locais?
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Convém lembrar, ainda, que essas receitas são dependentes de um recurso não-renovável, cuja exaustão deveria estar sendo compensada, há muito, com ações integradas nas áreas de energia, meio ambiente e educação, mormente em pesquisa de fontes alternativas de energia e qualificação de recursos humanos, uma vez que é o conhecimento o melhor fruto que os recursos presentes nos podem oferecer.
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Diferentemente dos impostos, cujas receitas não podem ser vinculadas, nada há a obstar a previsão ou determinação de que os royalties sejam utilizados na implementação de ações que beneficiem a população e o desenvolvimento de novas tecnologias.
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É com essa preocupação que vislumbramos a possibilidade de atrelar esses recursos, exclusivamente, a ações na área de educação de base e de ciência e tecnologia, conferindo uma aplicação mais nobre para esses recursos. Quem sabe, com isso, estaremos acenando para um futuro mais promissor para um segmento significativo de nossa população, assim como estimulando nosso desenvolvimento científico e tecnológico.
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Em razão do alcance social e da conformidade da proposição com os propósitos mais elevados da Constituição Federal, solicito o apoio dos Senhores Senadores para a transformação deste projeto em lei.
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Sala das Sessões,
Senador CRISTOVAM BUARQUE
Esta é a capa do Montbläat, um dos melhores jornais que já tive a oportunidade de ler (acesso apenas para assinantes). Mas não é da reportagem que quero falar. Aliás, não quero falar nada, por agora, apenas refletir debruçado a foto: isto é o que eu chamo de Desigualdade Social Extrema!

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Aprovar quem não aprendeu?


Para chamar atenção sobre pesquisas irrelevantes, um bando de gaiatos de Harvard criou o prêmio Ignobel (um brasileiro já foi agraciado, por estudar o impacto dos tatus na arqueologia). De fato, esse é um problema clássico da academia. Como às vezes aparecem descobertas de valor na enxurrada de idéias que parecem bobas, todos se acham no direito de defender as suas. Diante disso, é reconfortante encontrar pesquisas colimando assuntos palpitantes e com resultados precisos e definitivos. Esse é o caso da tese de Luciana Luz, orientada pelo professor Rios Neto (UFMG), que examinou um problema fundamental: no fim do ano, o que fazer com um aluno que não aprendeu o suficiente? Dar bomba, para que repita o ano? Ou deixá-lo passar? O uso de dados longitudinais permitiu grande precisão na análise. A autora tratou os números com cuidado e sofisticação estatística. O cuidado aumenta a confiança nos resultados. Mas a sofisticação impossibilita que se faça aqui uma explicação acessível da análise estatística.
Contudo, a interpretação das conclusões é clara. A tese permite comparar um aluno que repetiu o ano por não saber a matéria com outro que foi aprovado em condições similares. Os números mostram com meridiana precisão: um ano depois, os repetentes aprenderam menos do que alunos aprovados sem saber o bastante. Tudo o que se diga sobre o assunto não pode ignorar o significado desses dados, que, aliás, corroboram o que foi encontrado pelo professor Naércio Menezes e por pesquisadores de outros países.
Ao que parece, para os repetentes, é a mesma chatice do ano anterior, somada à frustração e à auto-estima chamuscada. Andemos mais além da tese. Não reprovando, a nação economiza recursos, pois, com a repetência, o estado paga a conta duas vezes. E, como sabemos por meio de muitos estudos, os repetentes correm muito mais risco de uma evasão futura. Logo, ganha-se de três lados. Como a "pedagogia da reprovação" não funciona, a "promoção automática" é um mal menor.
A história não acaba aqui. A angústia de decidir se devemos aprovar quem não sabe torna-se assunto secundário, diante da constatação de que o aluno não aprendeu. Esse é o drama mais brutal do ensino brasileiro. Por isso, a discussão está fora de foco. Precisamos fazer com que os alunos aprendam. De resto, não faltam idéias nos países onde a educação dá certo. Por exemplo, na Finlândia – e mesmo no Uruguai – há professores cuja tarefa é dar uma atenção especial aos mais fracos. Por que se digladiam todos contra a "promoção automática", quando a verdadeira chaga é o fraco aprendizado? De fato, há uma razão. Grosso modo, três quartos da população brasileira é definida como de "classe baixa". Dada essa enorme participação, o que é verdade para seus membros é verdade para o Brasil como um todo. Mas há os 20% de classe média e alta. Para esses pimpolhos, a situação é diferente. Famílias de classe baixa são fatalistas, assistem passivamente à reprovação dos seus filhos. Se não aprenderam a lição, é porque "sua cabeça não dá". Já na classe média a regra é outra. Levou bomba? Antes zunia a vara de marmelo, depois veio o confisco da bola, da bicicleta ou do i-Phone. Santo remédio!
Reina a "pedagogia do medo da repetência". Essa é a arma dos pais para que o filho se mantenha por longo tempo colado à cadeira e com os olhos no livro. Cá entre nós, eu estudava por medo da bomba. É também a ameaça da bomba que permite aos professores forçar os alunos a estudar. Sem ela, sentem-se impotentes. Portanto, estamos diante de um dilema. O medo da repetência leva a minoria de classe média a estudar, para evitar os castigos. Pode não ser a pedagogia ideal, mas ruim não é. Já nas famílias mais modestas não há medo nem pressão para que os filhos estudem. O que há são as bombas caindo do céu e criando repetência abundante e disfuncional. Pouquíssimos países no mundo têm níveis tão altos de repetência como o nosso. Ao contrário de outros dilemas, esse tem solução clara, ainda que difícil. Basta melhorar a qualidade da educação para todos.
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Claudio de Moura Castro
Revista Veja, ed.2091 - 12 de dez. de 2008 (pág. 24)

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2009

Dentro de mim mora um anjo tipo B


Nelson Rodrigues dizia que “o palavrão está corrompido pelas mulheres”. Numa entrevista publicada na Veja em 13 de março de 1974, quando foi lançado O Anti-Nelson Rodrigues, ele declarava: “Eu tenho uma profunda nostalgia do velho palavrão. Quando percebi que as mulheres começavam a dizer palavrões, eu me tornei na vida real o homem mais antipornográfico do Brasil. Eu não digo mais palavrões. (...) Tiraram a dignidade e o dramatismo do palavrão.”
Desconfio que a bronca do velho Nelson era mais da ordem da estética rodriguiana do que propriamente pelo fato corriqueiro de a mulherada ter liberado a linguagem, antes ou depois de liberar o resto. Na verdade, hoje o que perdeu a dignidade e o dramatismo não foi bem o palavrão. Se ele tivesse conhecido a mulher-melancia e a quitanda que veio depois, diria que tiraram a dignidade da bunda.
Mas o palavrão continua uma instituição inabalável. Nada substitui o auxílio luxuoso de um p*#@, de um c#*$& na hora de uma topada e nos momentos de ira profunda, quando alguém nos irrita a níveis inenarráveis ou o telefone toca lá na sala exatamente na hora em que você entrou debaixo do chuveiro e começa a se ensaboar.
Lá de vez em quando deixo escapar unzinho ou outro, nesses momentos cruciais da existência. Mas tenho alguns substitutos para eles, resquício dos hábitos da família pequeno-burguesa onde cresci. Com a condição de que não queiram dizer mais nada do que o que o momento exige, acho que essas palavrinhas não me tiram de todo o gosto de reagir às agruras do dia-a-dia sem dar um mau exemplo escancarado aos mais jovens nem passar atestado de grossura em mim mesma. Tenho amigas e parentas que educadamente exclamam meleca, puxa ou cacilda; porém tais palavras não têm a força de um palavrão pornográfico, porque estão contaminadas de outros sentidos mais usuais, e por isso mesmo não chegam a expressar de modo satisfatório o estado de espírito que o momento requer.
Costumo apelar para termos tais como bláumida, adjuricaba, carmenótipa, simônjara trepódica, expressões que me vêm quando estou puta demais da vida. Não querem dizer nada que alguns palavrões já consagrados não pudessem resolver. Mas não ando dizendo palavrões a torto e a direito, minha educação não permite. Então, e já que não sou o anjo que a família gostaria de ter produzido, inventei, ou melhor, deixei virem à tona essas palavras, palavrões exclusivos em estado puro. Elas foram criadas em momentos de raiva, dor ou falta de alternativa para mudar alguma situação que exigia reação verbal à altura. Dessas que, se você aguenta calado, perigam te fulminar com um infarto. Respeitadas as condições aqui expostas, posso emprestá-las a vocês, que também foram educados pelos códigos celestes e sofrem de supereguite que nem eu. Mas veja lá, não me corrompam a integridade dessas palavras violentas com futilidades como as reportagens da Caras, comédias da sessão da tarde ou o bbb.
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Ps.: o Professor Halem Souza voltou. Depois do tão saudoso Ração das Letras, está no também ótimo Sinistras Bibliotecas. É acessar, conferir e nunca mais deixar o cara se perder (apenas) em Minas Gerais. Que bons ventos o protejam, Professor!