segunda-feira, 16 de junho de 2008

Fingidores

Assim que li, fiquei (como já declamou Adélia) poetizado. Texto bom é assim: pega a gente por dentro, mareia a gente por fora.
Lembrei de Drummond procurando a poesia nossa de cada dia.
Com vocês: Ela! Adelaide Amorim!
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Fingidores
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"Poesia não vende", frase que é o lema de tantos editores e motivo de desalento para tantos autores, deve ter alguma explicação. Não acredito que só os doutores em literatura sejam capazes de apreciar um bom poema. Bem ao contrário, muito saber pode fazer um bom crítico, mas dificilmente fabricar um bom poeta ou leitor de poemas.
Também não creio que o tema seja causa de sucesso no gênero. Às vezes angústia, amor, solidão rendem bons poemas. Mas um poema depende menos do tema escolhido que do modo como é escrito. Boas intenções não fazem bons poemas, dizem os entendidos. Inversamente, um tema sem brilho e até escatológico pode vibrar de poesia. Exemplos mais à mão: Manoel de Barros: "Todos lhe ensinavam para inútil/Aves faziam bosta nos seus cabelos." É ainda ele quem nos ensina: "Há certas frases que se iluminam pelo opaco."* Rimbaud fala de si próprio como "o rapazinho ébrio do mictório da taverna, encantado com a planta diurética que dissolve um cálculo!"** Ezra Pound extrai da palavra usura um canto sombrio e lindo, que é como um baixo-relevo.***
Um poema é a expressão de uma vivência recriada. Tem tudo a ver com a concretude das coisas, os sentidos – "Quero apalpar o som das violetas./Ajeito os ombros para entardecer."* – e é servido pela música das palavras, pelas dobras onde as palavras escondem sua riqueza. Um poema não é desabafo nem panfleto, não está comprometido com um fim fora dele mesmo. É um trabalho artesanal e suas matérias-primas são sensações, percepções, memória, afeto represado (não necessariamente afeto no sentido de amar ou querer bem, mas no de ser afetado por alguma coisa que movimente a energia vital, a libido).Pessoa diz que "o poeta é um fingidor/finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/a dor que deveras sente." Acontece que a poesia, eu acho, é uma forma de viver, de ver o mundo. A realidade é uma mina de poesia, à qual é preciso descer e se dispor a explorar – e quem desce a uma mina já sabe que vai enfrentar passagens estreitas, sujar a roupa, machucar as mãos e eventualmente corre o risco de ficar soterrado. Se o metal valer a pena...
A poesia está onde o senso comum nem desconfia. Quem vira a cara para não ver o mundo através de um olhar próprio, peculiar e intransferível (um pouco como o olhar das crianças); quem se acomoda no conforto do convencional, de certezas e verdades sem saída, não será capaz de reconhecê-la. "Desaprender oito horas por dia ensina os princípios."*
Por tudo isso, acredito que o pouco sucesso de livros de poesia no mercado se deva mais à formação deficiente da sensibilidade das pessoas do que à forma da expressão poética. E para começar a mudar isso, nada seria melhor do que incentivar, muito e desde cedo, a simples leitura de textos que não fossem auto-ajuda nem afins. Se a gente observar bem, verá que o caminho da poesia já se esboça em textos que não pertencem formalmente ao gênero: boa literatura, prosa bem construída, ficção de qualidade trazem sempre um traço de fantasia, linguagem criativa e boas imagens - ou seja, sementes de poesia.
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*Barros, Manoel de. O livro das ignorãças. Rio de Janeiro-São Paulo: Record, 1993.** Rimbaud, Jean Arthur. Uma temporada no inferno. Trad. Paulo Hecker Filho. Porto Alegre: L&PM, 1997.*** Pound, Ezra. The Cantos. The Pocket Book of Modern Verse, s.d.
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Procura da Poesia
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Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.
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Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.
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Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.
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O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.
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Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.
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Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.
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Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.
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Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros.
Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.
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Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
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Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

segunda-feira, 9 de junho de 2008

As mentiras de Bush, segundo o Congresso


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A conclusão, por um comitê do Congresso dos Estados Unidos, de que a guerra contra o Iraque foi fundada na mentira, coloca em questão o problema da responsabilidade dos chefes de Estado e de governo diante de seus povos.
O ato de governar reclama que, na defesa do Estado, haja sigilo. Certos fatos podem ser omitidos, em benefício da segurança nacional, quando, a juízo do governante, sua divulgação cause danos à nação. Isso não constitui ato de traição. Outra coisa, no entanto, é mentir, criar os chamados factóides, a fim de justificar os atos ilegais de governo. Os povos aceitam, em certas ocasiões de real perigo, governos excepcionais, mas não aceitam, passivamente, serem enganados. Contra os demagogos que iludiam o povo e o faziam aprovar condutas danosas ao Estado, as repúblicas grega e romana dispunham de instrumentos constitucionais. Embora a mentira fosse agravante, bastava que as decisões fossem equivocadas, para que os responsáveis pela iniciativa viessem a ser punidos – em alguns casos, no sistema grego, com a morte.
Os Estados Unidos eram, até a presidência Nixon, rigorosos contra os que mentiam. Depois dele – no caso Watergate – houve o problema Clinton. Como as travessuras do esposo da atual senadora não comprometessem o Estado, e as nuances da língua inglesa, na descrição de certos atos humanos, o beneficiassem, Clinton conseguiu convencer que não mentira. Não é a mesma coisa com o presidente Bush. Ele pode alegar que foi conduzido a mentir pelos falcões que o orientavam, e isso é provável, quando sabemos que seguia fielmente homens como Cheney, Rumsfeld, Karl Rove e Paul Wolfowitz. Mas se agiu assim, demonstrou ser homem de caráter frágil, sem a capacidade pessoal de juízo ético.
Há algumas explicações para a mentira desses homens. A menos vil é a de que os think-tankers republicanos construíram toda uma teoria conspiratória, a fim de assegurar a continuidade do poder americano no mundo. Nesse caso, a idéia de dominar, de forma definitiva e absoluta, as jazidas petrolíferas do Oriente Médio, antecedeu os atentados de 11 de Setembro. A guerra contra o Iraque já se iniciara em 1991, a pretexto da invasão do Kuait por Saddam Hussein, no ano anterior. Antes disso, os americanos atuavam no Golfo Pérsico mediante provocações e o estímulo a golpes militares internos. O fortalecimento político e militar de Saddam os teria conduzido a agir diretamente. Ao assumir o segundo Bush – depois das operações de desgaste da presidência Clinton –consideraram que era preciso deflagrar a guerra, "pré-emptiva e infinita", como já se planejara, e seria assim batizada por Karl Rove.
Os atentados de 11 de Setembro precipitaram os fatos. A destruição das torres gêmeas contribuiu para a manipulação política do medo que acomete rotineiramente as massas humanas, e as leva a agir com insensatez, acompanhando a insensatez do poder. Antes, no Vietnã, eles já haviam atuado assim, conforme a lúcida análise de Bárbara Tuchman em seu estudo sobre os equívocos bélicos, The march of folly – from Troy to Vietnam.
Há outra explicação: desde a campanha presidencial de Bush, os homens de negócios texanos, com o conluio das grandes corporações financeiras de Wall Street, planejaram uma guerra externa que os favorecesse. Essa guerra só poderia ser, em seu início, contra o Iraque. Teriam a seu lado o forte lobby israelita no Congresso e, no fundo, a questão da energia. Com a vitória sobre Saddam seriam resolvidos dois problemas: o da aludida segurança de Israel e o da retomada dos poços do Iraque pelos investidores americanos e seus aliados. Tratou-se, nesse caso, de um negócio – como denunciaram, logo no início das operações, renomados jornalistas americanos, entre eles a colunista Maureen Dowd, do New York Times.
Se Bush fosse um governante grego antigo, seria julgado por haver enganado seu povo e o levado a uma guerra que já custou milhares de vidas de seus compatriotas, e centenas de milhares de vítimas iraquianas. Mas os tempos são outros. No caso em que McCain ganhe as eleições de novembro, os republicanos, mesmo que moderem sua política externa, tratarão de reabilitar o desastrado ocupante da Casa Branca e seus companheiros. E, até que reconheçam a derrota, continuarão matando e morrendo por uma causa perdida, no Iraque e, se o povo não os contiver, também no Irã.

domingo, 8 de junho de 2008

Notícias do nosso lixo


E de repente, não mais que de repente, os homens de bem (ou os que, pelo menos, assumem os filhos) descobriram que, quando a imprensa “faz que não é com ela” ou quando simplesmente deixa de “pegar no pé”, é muito mais fácil comprar tapetes cada vez maiores para a grande sujeira dos que cagam e não se limpam.

Como é que é? Biocombustíveis são a causa do aumento da fome? Desculpa a minha ignorância, mas eu sempre pensei que a causa da fome fosse a ambição de uma dúzia de canalhas que movimentam trilhões e preferem fazer guerras estúpidas ou brincar de foguete enquanto o resto faz a brincadeira do “vamos ver quanto tempo o pobre agüenta sem comida”. Sempre achei que fome fosse uma palavra financiada por países democratas que torturam às escondidas e financiam golpes militares em países sem autonomia. Aliás, fome não é moeda de troca em alguns países africanos e cidades brasileiras? Não é a diferença entre o voto e a cova? Biocombustíveis podem ser mais um ingrediente, sim, não duvido disso, contudo...

Como é que é? “Não existem índios e brancos, existem os brasileiros!” Quando ouvi esta frase declamada em tom profético por colunista-cineasta conhecido não deixei de pensar que, há 500 anos, portugueses e espanhóis devem ter dito a mesmíssima coisa. Resultado? Bem, acho que dá para contar nos dedos quantos índios sobraram. Aliás, para os que sobraram, um recado: evitem circular nas grandes cidades, os filhos da nossa classe média/alta, entorpecidos por pais alcoólatras e idiotizados pela mídia, podem muito bem confundi-los com algum mendigo e...

Por falar em “mídia” (ou seja lá o que isso significa), cagar a cabeça de artista (ou de quem quiser, humano ou cachorro) para fazer telespectador rir e alavancar audiência é experimentar um pouco da piada que virou o homem. Depois dos BBBs, humilhar o homem-público é a nova ordem (para o deleite dos que, no sofá, ganham mal, comem mal e ainda pensam que vão morrer por causa do cigarro).

Vou parar por aqui, não por falta do que escrever (mal), mas porque me falta estômago num belo dia de domingo. Vou ter um pouco de música, muito de cerveja e pensar que sou feliz neste imenso lixão em que se tornou o mundo.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Biocombustíveis e alimentos


As mãos invisíveis por trás da notícia
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Monteiro Lobato, mais do que um grande escritor, foi um dos pioneiros do petróleo brasileiro. Lutou para que o Brasil pesquisasse e produzisse petróleo. E, por isso, foi preso duas vezes pela ditadura de Getúlio Vargas.
Petróleo é isso: grandes empresas (as Sete Irmãs, que hoje já não são sete) fazendo pressões para que o petróleo apareça quando é conveniente e onde seja conveniente; e que permaneça insubstituível. O carro a vapor Stanley, que chegou a fazer sucesso, acabou depois de alguns acidentes (que também ocorreram com carros a gasolina) – e de pesada campanha de imprensa contra os perigos que oferecia. Henry Ford, em 1916, quis mudar o combustível do modelo T de gasolina para álcool, que considerava melhor e mais limpo. Convenceram-no a desistir. Quando o presidente mexicano Lázaro Cárdenas nacionalizou o petróleo, as Irmãs abriram os diques, para que o mar invadisse a área dos poços.
E, com todo o material histórico à mão, nossa imprensa ainda entra na história da falta de alimentos por causa dos biocombustíveis!
OK, há setores da Igreja Católica que condenam os biocombustíveis porque exigem grandes extensões de terra, há quem critique os biocombustíveis porque ajudam a manter a primazia do transporte individual, há quem condene especificamente a cana-de-açúcar por causa das queimadas ou por considerar inaceitáveis as condições de trabalho impostas por determinados usineiros. São posições de princípio que merecem respeito. Mas os meios de comunicação deveriam ser mais sofisticados: a indústria do petróleo, como a do cigarro, trabalha debaixo do pano para que ninguém abale seu predomínio.
Quem acusou a produção de álcool pelo preço em alta dos alimentos? Sim: o FMI e o Banco Mundial – que nunca, antes, se preocuparam com qualquer assunto diferente de moeda e financiamentos. E a União Européia, que não tem condições de produzir álcool, mas é sede de várias das Sete Irmãs.
Na imprensa brasileira, apenas Antônio Machado de Barros, em sua coluna no Correio Braziliense, foi buscar os fundamentos da guerra aos biocombustíveis. Mostrou que a Grocery Manufacturers Association, que reúne a indústria de alimentos e bebidas dos Estados Unidos, contratou uma empresa de lobby, a Glover Park, de Washington, para ligar a imagem da lei americana que abre caminho aos biocombustíveis "à fome global, às demissões na indústria de alimentação e à inflação". Para isso, pode contratar especialistas – cientistas que, para a opinião pública, figuram não como funcionários da indústria, mas parecem imparciais.
Vale a pena entrar fundo no assunto, buscar pautas nas publicações internacionais, fazer reportagens . Ou alguém acha que a Organização dos Países Exportadores de Petróleo vai aceitar pacificamente a redução do valor de sua riqueza?

quarta-feira, 4 de junho de 2008

O bandido que se disfarçou de xerife

Coisas da Política - O bandido que se disfarçou de xerife - Jornal do Brasil (04/06/2008)

Augusto Nunes

"Colocamos os bandidos na defensiva e estamos ganhando a guerra", garantiu Anthony Garotinho depois de elevar a voz de bom locutor até o tom exigido pela fala derradeira. Durante a conversa de 90 minutos com dois repórteres do Jornal do Brasil, o ex-governador do Rio de Janeiro (que transformara em sucessora a própria mulher, Rosinha Matheus) e ex-candidato à Presidência da República (que se recuperara da derrota vitaminado por 15 milhões de votos) tentara provar, na primavera de 2003, que tinha valido a pena assumir, em abril, o comando da Secretaria de Segurança Pública.

A vitória dos mocinhos ainda não se consumara, admitiu enquanto se erguia da cadeira. Mas faltava pouco, emendou já de pé. A anunciação do triunfo foi a senha para o regresso ao palco de Álvaro Lins, chefe da Polícia Civil. O coadjuvante abriu a porta sem bater, varou com passadas enérgicas a muralha de assessores e estacionou a um metro do patrão. Isso estava no script, avisara a primeira aparição, ocorrida 10 minutos depois de iniciada a performance do protagonista.

Também de repente, Lins irrompera no gabinete, pedira licença para interromper a conversa, trocara meia dúzia de cochichos com Garotinho e saíra com a expressão de quem tem urgências urgentíssimas a liqüidar. Como nos filmes policiais classe B, devaneou um dos jornalistas, aqueles parceiros se completavam assimetricamente: o gorducho e o esbelto, o risonho e o carrancudo, o expansivo e o introvertido. O detetive bonzinho e o partner durão. Resgatou-o da estratosfera a voz do entrevistado.

"O doutor Álvaro está monitorando uma diligência no morro", confidenciara Garotinho. "Vamos pegar uns vagabundos agora à tarde". Se o roteiro fosse coerente, o monitor voltaria no fim da conversa para contar o desfecho da aventura, certo? Pois lá estava ele em cena. "Tudo certinho?", sorriu o secretário. "Morreu um", contraiu-se o rosto do chefe de polícia. "Nosso ou bandido?", deu a deixa Garotinho.

E então, a bordo de uma palavra só, veio a resposta dramaticamente fora do script: "Investigador", balbuciou o coadjuvante. Foi assim que, armado de cinco vogais e sete consoantes, Lins matou um dos mocinhos no fim do filme, implodiu o longo discurso do secretário e exumou a interrogação que Garotinho julgara enterrada: o que o fez aceitar um emprego tão temido por caçadores de votos?

Até a semana passada, Garotinho (que deixou o cargo em setembro de 2004) e Lins (que em 2006 trocou a chefia da Polícia Civil pela Assembléia Legislativa) eram só mais dois entre os incontáveis integrantes da procissão de autoridades amplamente derrotadas na guerra do Rio. Na sexta-feira, foram acusados pela Polícia Federal, com o aval do Ministério Público, de integrarem também uma quadrilha que extorquia delegados e acobertava delinqüentes. Pelo que foi revelado até agora, Garotinho ainda pode invocar a presunção de inocência – e merece, portanto, o benefício da dúvida. Não é o caso de Lins.

O colosso de provas e evidências atesta que o mais poderoso homem da lei no faroeste carioca usou o disfarce de xerife para combater em favor da bandidagem. Deixou em paz os domínios dos traficantes de drogas e armas para dedicar-se à própria quadrilha – um pequeno exército de policiais convertidos em criminosos. Preso pela Polícia Federal, Lins foi libertado pelos colegas da Assembléia. Nenhuma surpresa: dos 70 deputados estaduais, 33 foram denunciados por estelionato, improbidade, formação de quadrilha ou homicídio.

No mesmo dia em que foi confrontado com o obsceno espetáculo do compadrio, o Brasil decente soube do caso dos três profissionais do jornal O Dia, seqüestrados e submetidos a torturas por policiais alistados numa das milícias que governam mais de 100 favelas. Soube, também, dos vínculos que atam Lins a esses grupos paramilitares que ajudaram a transformar em zonas de exclusão os morros do Rio.

Nesse Brasil amputado do mapa, os bandidos mandam. Ali jornalista já não entra. Nem o governador. Nem o presidente da República.



Augusto Nunes

domingo, 1 de junho de 2008

A idiotização da TV

Esta Carta Aberta encontra-se no Observatório da Imprensa (Entre Aspas), mas eu a li (olha o cacófago!), primeiramente, no portal do IG. No blogue do ator também é possível ler este texto.
Vamos parar um pouco e pensar (independente das ideologias vigentes ou arcaicas): humor é isso?
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‘Meleca no ator’, 29/5
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"Quando estava saindo da cerimônia de entrega do prêmio APCA, há duas semanas em São Paulo, fui abordado por um rapaz meio abobalhado. Ele disse que me amava, chegou a me dar um beijo no rosto e pediu uma entrevista para seu programa de TV no interior. Mesmo estando com o táxi de porta aberta me esperando, achei que seria rude sair andando e negar a entrevista, que de alguma forma poderia ajudar o cara, sei lá, eu sou da época da gentileza, do muito obrigado e do por favor, acredito no ser humano e ainda sou canceriano e baiano, ou seja, um babaca total. Ele me perguntou uma ou duas bobagens, e eu respondi, quando, de repente, apareceu outro apresentador do programa com a mão melecada de gel, passou na minha cabeça e ficou olhando para a câmera rindo. Foi tão surreal que no começo eu não acreditei, depois fui percebendo que estava fazendo parte de um programa de TV, desses que sacaneiam as pessoas. Na hora eu pensei, como qualquer homem que sofre uma agressão, em enfiar a porrada no garoto, mas imediatamente entendi que era isso mesmo que ele queria, e aí bateu uma profunda tristeza com a condição humana, e tudo que consegui foi suspirar algo tipo ‘que coisa horrível’ (o horror, o horror), virar as costas e entrar no carro. Mesmo assim fui perseguido por eles. Não satisfeito, o rapaz abriu a porta do táxi depois que eu entrei, eu tentei fechar de novo, e ele colocou a perna, uma coisa horrorosa, violenta mesmo. Tive vontade de dizer: cara, cê tá louco, me respeita, eu sou um pai de família! Mas fiquei quieto, tipo assalto, em que reagir é pior.
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O táxi foi embora. No caminho, eu pensava no fundo do poço em que chegamos. Meu Deus, será que alguém realmente acha que jogar meleca nos outros é engraçado? Qual será o próximo passo? Tacar cocô nas pessoas? Atingir os incautos com pedaços de pau para o deleite sorridente do telespectador? Compartilho minha indignação porque sei que ela diz respeito a muitos; pessoas públicas ou anônimas, que não compactuam com esse circo de horrores que faz, por exemplo, com que uma emissora de TV passe o dia INTEIRO mostrando imagens da menina Isabella. Estamos nos bestializando, nos idiotizando. O que vai na cabeça de um sujeito que tem como profissão jogar meleca nos outros? É a espetacularização da babaquice. Amigos, a mediocridade é amiga da barbárie! E a coisa tá feia.
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Digo isso com a consciência de quem nunca jogou o jogo bobo da celebridade. Não sou celebridade de nada, sou ator. Entendo que apareço na TV das pessoas e gosto quando alguém vem dizer que curte meu trabalho, assim como deve gostar o jornalista, o médico ou o carpinteiro que ouve um elogio. Gosto de ser conhecido pelo que faço, mas não suporto falta de educação. O preço da fama? Não engulo essa. Tive pai e mãe. Tinham pais esses paparazzi que mataram a princesa Diana? É jornalismo isso? Aliás, dá para ter respeito por um sujeito que fica escondido atrás de uma árvore para fotografar uma criança no parquinho? Dois deles perseguiram uma amiga atriz, grávida de oito meses, por dois quarteirões. Ela passou mal, e os caras continuaram fotografando. Perseguir uma grávida? Ah, mas tá reclamando de quê? Não é famoso? Então agüenta! O que que é isso, gente? Du Moscovis e Lázaro (Ramos) também já escreveram sobre o assunto, e eu acho que tem, sim, que haver alguma reação por parte dos que não estão a fim de alimentar essa palhaçada. Existe, sim, gente inteligente que não dá a mínima para as fofocas das revistas e as baixarias dos programas de TV. Existe, sim, gente que tem outros valores, como meus amigos do MHuD (Movimento Humanos Direitos), que estão preocupados é em combater o trabalho escravo, a prostituição infantil, a violência agrária, os grandes latifúndios, o aquecimento global e a corrupção. Fazer algo de útil com essa vida efêmera, sem nunca abrir mão do bom humor. Há, sim, gente que pensa diferente. E exigimos, no mínimo, não sermos melecados.
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No dia seguinte, o rapaz do programa mandou um e-mail para o escritório que me agencia se desculpando por, segundo suas palavras, a ‘cagada’ que havia feito. Isso naturalmente não o impediu de colocar a cagada no ar. Afinal de contas, vai dar mais audiência. E contra a audiência não há argumentos. Será?
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WAGNER MOURA é ator"