terça-feira, 31 de julho de 2007

Falta de noção movimenta o mundo?

Para os que acham que as coisas em terra brasilis acontecem por acaso, dêem uma olhada no blog do jornalista Pirata (http://www.zinedopirata.blogspot.com/), na série Diário de bordo – resistência, e na notícia do jornal O Globo de ontem (30 de Julho, pág. 11 – O país): Rádios comunitárias são loteadas por políticos.
As rádios comunitárias nasceram e foram crescendo sob uma couraça ideológica fascinante: assim como a Internet, tal veículo destacava-se pela independência; por ser um veículo de acesso direto ao cidadão, ao povo, seu alcance era o que estava à sua volta e dela se nutria para produzir o que dizia respeito e era útil à determinada comunidade. Com o tempo esse processo começou a irritar certas “autoridades” que nela viam uma “arma perigosa” para a democracia, para o espaço aéreo, para as tartarugas marinhas, enfim, para todo e qualquer problema que abalasse o território nacional, tudo era culpa das rádios comunitárias. Os donos, idealizadores e funcionários que se opuseram ao fechamento ou torceram o nariz para o que estava a acontecer com tais rádios e no que se transformariam, foram marginalizados, exorcizados e colocados em descrédito. Assim como Pirata, Jorge Kajuru, Vais e outros, muitos tiveram que encarar uma dura realidade: nosso país é mais democrático para uns que para outros.
Se os sinais de tais rádios prejudicam os vôos comerciais, está explicado o porquê de tanta gente culpar o Governo pelo acidente com o airbus da TAM (os vários acidentes, é bom lembrar): como as comunitárias passaram para as mãos de políticos, nada mais justo que os culpar pelas tragédias aéreas e de urnas de agora em diante, só falta saber se terão o mesmo tratamento, pela polícia federal, que tiveram antigos donos e funcionários.
Ainda de acordo com o jornal, 50,2 % das concessões em cinco anos foram outorgadas a entidades controladas por parlamentares. Lindo, não? E todos os riscos e atentados contra os elefantes africanos e rachaduras nos prédios da Malásia causados pelos sinais das rádios comunitárias? Esqueçam isso, gente, agora que tais rádios estão sob batuta de políticos, até os sinais de tais veículos ficaram mais inofensivos, maleáveis. Contudo, agora, eles, os sinais, cobram jetons.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Um dia frio

A tristeza sempre o invadia em dias de frio e chuva fina, nunca gostou de ficar enclausurado, por causa da chuva, como ursos em hibernação; gostava menos ainda do frio. Calor se resolvia com um refrigerador de ar, mas inverno e chuvisco só se resolvia com amigos, amantes e vinho, caso contrário tudo poderia se tornar incompensável, afogadamente tedioso e triste. Livro e lareira também ajudava vez em quando, mas a cabeça não estava para leitura. E a coriza que não parava de descer, a manta sobre o colo deixava-o com uma preguiça revoltante e impraticável. Ligou a televisão, mas os programas insistiram em subestimá-lo com doses e pedaços fartos de desvio moral, com argumentos simplórios e tendenciosos recheados de complexidade tacanha e filosofia de festa de aniversário. Foi quando decidiu ligar para a filha que não falava havia alguns dias. Saíra da casa dela brigado, mandara o genro às merdas e ao PT e xingara a filha de tucana, de vendida, enfim. O telefone tocou muitas vezes e mais uma segunda vez, quando estava prestes a desistir, o auscultador, como era chamado pelo genro português e vascaíno, despertou e uma voz sem muita expressão disse “o que é?...” Eles tinham identificador de chamadas. “Sou eu.” Queria dizer coisa mais inteligente, mas a falta de expressão na voz do outro lado da linha o limitara e essas duas palavras bestas, óbvias, mas vivas. “E o que cê quer, porra?” A pergunta era bem direta, mas pelo menos a expressão voltara. “Eu queria dizer que estou numa depressão que só, por causa do avião, por causa do senado, por causa do Flamengo, dos ministros, do Pan, do morro do Alemão, por causa dos cambal, mas não agüento mesmo é ficar no frio sem dizer que te amo, minha filha.” O outro lado calou por alguns segundos eternos e frios. De repente, um forte calor vindo de um leste vivificante e abrupto, um estrondo de choro morno e bem-vindo desceu ladeira abaixo pelos buracos encostados ao ouvido do homem, quase podia se sentir a umidade. “Eu também te amo, seu filho-da-puta.” E isso também era amor.

quarta-feira, 25 de julho de 2007

O fim do mundo

O sol estava insuportável, calor imenso e intenso. As folhas quando caíam, caíam simplesmente, sem malabarismos no ar, sem ânsia ou felicidade; desprendiam-se dos galhos e apenas caíam. Os automóveis arrastavam-se com os vidros levantados, as calçadas vazias, as lojas vazias. As crianças dentro da piscina agüentavam com leveza os protestos da mãe sobre o sol escaldante e o perigo da exposição em horário tão impróprio a pele; na casa vizinha, outras crianças, sem o recurso da piscina, tomavam banho de mangueira e se divertiam sem culpa. Sim, somente as crianças tiravam proveito do tempo, do clima. Na cozinha, uma mulher ensopada de suor praguejava diante do fogão calorento e penitenciador. No trabalho, um sujeito tirava a gravata e abria a camisa úmida a fim de respirar melhor. Os ventiladores vomitavam um vento morno, desanimador. Nas torneiras, era preciso esperar um pouco para que a água derramada adquirisse uma temperatura agradável. E o sol estava insuportável, o rosto quase que ardia frente à chuva de fogo. “Sim!, chuva de fogo! Era isso!” Em um escritório refrigerado, um homem de meia idade digitava uma estória sobre o fim do mundo inspirada no próprio clima e na sensação de agonia provocado naquele instante. Digitou mais alguma coisa com relação a pingos de fogo caindo do céu. Parou nesse momento para observar as pessoas lá embaixo. Foi quando notou pontos de fogo no asfalto, na capota dos carros, as pessoas feito baratas tontas – ou formigas desgovernadas se se levar em conta a altura de seu escritório – correndo sem direção, sem rumo, sem esperança. “Meus Deus! Não é possível!” Olhou para o céu e viu a “chuva”, o impossível. Apavorou-se. Não podia ser. Um estalo na cabeça e correu para a frente de seu computador como que movido por um efeito automático e instintivo. Não que ele tivesse sentido o pavor das pessoas, mas porque sabia que aquilo iria o atingir também e ele era o causador daquilo tudo... Mas como? Como poderia ser? Não soube ele, só sabia que precisava mudar a estória bruscamente, destruir a magia, alterar o destino! Mas quando ameaçou recomeçar, o conto sinistro, uma forte luz veio em sua direção, os vidros da janela estouraram. Uma bola de fogo carbonizou-o completamente. Fim.

terça-feira, 24 de julho de 2007

Relaxa, top top top, e goza. É ouro!

Este foi extraído do jornal Folha de S. Paulo (segunda, 23/07) e é assinado pelo sempre incansável e competente Juca, grande jornalista que, assim como o mestre Calazans e o inquieto Trajano, fazem jornalismo esportivo de verdade. Vamos a ele:



PEGUE-SE QUALQUER exemplo, mas fiquemos com os mais recentes. No esporte, para começar. O milésimo de Romário é um bom caso. O Pan-2007, outro.

Ora, todos sabemos que o Baixinho, fabuloso, maior jogador que uma grande área já viu, criou um objetivo para ele mesmo e todos entraram na festa. Viva!

Mentira inofensiva. Mas mentira. Mentirinha, digamos.

Com o Pan é mais grave, pelo uso do dinheiro público sem a menor cerimônia, um dinheiro que os passageiros que cruzam o país pelos ares agradeceriam se o vissem mais bem gasto. E aí a falsidade é grave, porque mata.

Em torno do Pan, a omissão é medalha de diamantes. Thiago Pereira, que é um nadador digno de todo respeito e não tem a menor culpa do que se omite, é tratado como quem superou Mark Spitz. E, friamente, é verdade. Mas meia verdade, muitas vezes pior que a mentira pura, por mais difícil de ser desmascarada.

Ora, Spitz, ao ganhar cinco ouros no Pan de Winnipeg, em 1967, simplesmente bateu três recordes mundiais, como bateu outros sete ao ganhar mais sete medalhas de ouro em Munique, nos Jogos Olímpicos de 1972. Compará-lo a Pereira não honra nenhum dos dois.

Fiquemos por aqui, para falar do que é mais chocante, porque sempre com a cumplicidade da mídia. A tragédia da TAM, que obscureceu o Pan, é rica em ensinamentos. Começou não é de hoje, com o escândalo do Sivam, no governo anterior, e continuou impávida e colossal de lá para cá. Uma frase debochada e ultrajante da ministra do Turismo, um gesto raivoso e moralmente pornográfico do assessor presidencial, um pronunciamento vazio e perplexo do presidente que nunca havia visto uma sucessão de acontecimentos tão caóticos nos aeroportos nacionais e pronto! Tudo continua como antes, a não ser, é claro, para quem morreu e para quem ficou por aqui, na saudade.

Ora, nem Romário é um artilheiro comparável a Pelé nem Pereira é o novo Spitz nem este governo é mais ou menos culpado que o anterior.

Somos todos responsáveis, ou quase todos, que continuamos a voar como voamos, a votar como votamos, a festejar como festejamos e a reclamar mais dos que são rigorosos do que daqueles que são complacentes. Dar ao Pan-2007 sua verdadeira dimensão é, para muitos, sintoma ou de bairrismo ou de mau humor. E a crise aérea vira exploração política. Mas o que se vê na TV no Pan, e o que se viu e ainda se verá na TV sobre o avião da TAM, é de dar vergonha de como se faz jornalismo/sensacionalismo no Brasil.

O ufanismo sem limites e a demagogia sentimentalóide não nos levarão a lugar algum, a não ser neste em que estamos, do caos, da falta de perspectiva e da acomodação cúmplice e criminosa. Os resultados superdimensionados do Pan-2007 inevitavelmente se transformarão em frustração quando Pequim chegar, no ano que vem. Ou alguém acredita mesmo que o Brasil superou o Canadá, que é mais saudável e pratica mais esporte que o país norte-americano?

Brasileiro com muito orgulho? Quadro de medalhas: 200 mortos.

sábado, 21 de julho de 2007

Amor(tece)dor

Este achado foi extraído do blog Poesia na veia, da minha amiga Fernanda Passos. Fernanda é professora formada em filosofia e, como se vê, não só de questionamentos vive com o seu tempo (se é que ele existe). Seus textos são verdadeiras odes à entrega.
Onde achá-la? Fácil: http://pnaveia.blogspot.com/


a
m
o
r
t
e
c
e
d
o
r
amor
tece
dor

amortece
a
dor

mata
a
morte

corta
o
carma

arma
a
cama


amor
tem
mar
tato
ato
cor
ardor
até
ceder
a
ter
amor

Foi Deus

Há fortes indícios de problema mecânico, há fortes indícios de problema na pista, há fortes indícios de problema político, há fortes indícios de falha humana, mas podem ficar despreocupados, no final das contas, o único responsável pela tragédia em Congonhas é Deus, Ele poderia resolver todos esses problemas e indícios, mas preferiu não se meter. Taca pedra na Geni, mas não nos esqueçamos de processar Deus.

Aldir Blanc, sempre profundo e polêmico, assim como o grande Fausto Wolff, escreveu em sua coluna de ontem (sexta) no Jornal do Brasil:

“(...)testemunhar uma catástrofe, que todos já chamam de anunciada, e não sentir revolta, nojo, vergonha, aí é covardia. Um aeroporto é reformado (se duvidar, em nossas costumeiras obras superfaturadas) e a pista não resiste às chuvas? O final do percurso de pousar coincide, praticamente de frente, com um posto de gasolina. As tais ranhuras que facilitam a frenagem não foram feitas a tempo da inauguração, e a pista foi dada como pronta?(...)”[Grifo meu].

Acima desta coluna do Aldir, Fausto já prenuncia sua maravilhosa crônica com o título “O inferno de outro planeta”:

“Há muito a classe dominante enlouqueceu e seus robôs, a classe média e o proletariado, perderam as identidades. Diante dessa certeza, eu diria que o inferno são alguns homens e aqueles que os obedecem. Por isso o avião explodiu em Congonhas, embora saibam que vão morrer, como todos os outros, insistem em acumular fortunas que usam em bobagens quando poderiam usá-las para fazer desta Terra o paraíso. Eram 200 vidas que na terça se transformaram em 200 mortes. Quanto está custando uma vida humana no mercado hoje? Muito pouco. E isso nossa justiça e o dinheiro se encarregarão de provar em breve.” [Grifo meu]

Sem sair do J.B, outrora grande, mas que ainda possui excelentes colunistas, pulo para a sobriedade inteligente e elucidativa de Mauro Santayana:

“Gastaram-se, nas estações de passageiros, em Congonhas e em outros aeroportos nacionais, centenas de milhões de reais. Enfim, houve a inversão do bom senso. Se se pensasse que a prioridade é a vida – no caso, a vida dos tripulantes e passageiros – e não os lucros, o Aeroporto de Congonhas deveria ser desativado totalmente, ou, em qualquer caso, destinado apenas a aviões menores. E não é necessário que as estações de passageiros sejam elegantes centros comerciais. O mais importante são pistas longas, bem construídas, de acordo com a melhor engenharia, para que os dois momentos mais tensos – os pousos e as decolagens – sejam seguros.”

É simples assim, gente, se fizermos tudo certinho, as coisas acontecem positivamente. Obviamente que a culpa também é nossa. Uma grande escritora chamada Acantha, postou um recado no meu blog perguntando o seguinte: “Meu querido Marcelo, e a culpa por nosso silêncio, onde entra?” Ela está certa e é muito vergonhoso admitir que a culpa também é de uma sociedade que, mesmo sabendo que o país é empurrado com a barriga, prefere a digestão em seu amado lar a ter que sair às ruas lutando por alguma coisa que não seja apenas o dinheiro. Talvez a resposta para esta pergunta esteja no parágrafo citado da coluna do Fausto: viramos robôs. E isso é triste.

Luis Garcia, em sua coluna também de sexta-feira, nO Globo, escreveu:

“(...)O que importa é insistir no essencial: a segunda tragédia na aviação civil em menos de um ano criou clima favorável a políticas e medidas – radicais, se necessário – que devolvam segurança e competência à gestão da aviação comercial.
E o ponto de partida tem de ser descobrir a verdade sobre a tragédia de Congonhas. Tanto as causas imediatas como as remotas. A opinião pública não vai engolir um apressado e simplificador indiciamento do temporal.”

A opinião pública não vai engolir muita coisa durante muito tempo, principalmente as trapalhadas desculpas de quem não deveria ocupar o cargo que ocupa (no Brasil isso é enorme, estatisticamente) e não faz a menor idéia do que dizer. Indiciamento do temporal é pouco, triste se começarem a achar que Deus, talvez...

sexta-feira, 20 de julho de 2007

Efeito borboleta

Este poema foi extraído do blog da Carolina Luisa, poetiza de mão cheia e caneta sedenta. Parabéns a Carol por nos dar beleza enquanto chove, por tirar amor e alguma lição dos nossos corações tão chuviscados.

Onde a encontrar? Fácil: http://carolinaluisa.zip.net/



Efeito Borboleta

Sabe-se q o vento é teu tutor
e q viver é dançar
a cada 24 horas.

Perder a fala e suar frio
quando ele vem
quando ele venta no teu sudoeste.

Abra os olhos e se perceba
diante do sol
diante do tempo q é teu palco.

Pois se a vida é assim,
desregrada por si só
corte tuas asas
e use a tua alma.

quinta-feira, 19 de julho de 2007

A pedra filosofal

Ao me deparar com a notícia de que o último livro do bruxinho mais conhecido do século XXI, Harry Potter, causa frisson e pedidos intermináveis pela internet, vejo-me puramente agradecido à J.K. Rowling, autora da façanha, ao imortal (ABL) Paulo Coelho, Dan Brown e tantos outros escritores que fizeram o que parecia perdido: resgataram os livros do limbo pouco visitado e fadado à negação (como já decretou a Igreja Católica dirigindo-se aos africanos; não pelos livros, mas pelo limbo), dando luz à sua forma e despejando-os nos braços do povo outra vez, daqueles que, salvo raras circunstâncias, só se interessam (teoricamente) por aparelhos de televisão, video-game e internet.

Muitos críticos torcem o nariz até aparelhá-lo aos céus, preferem a morte a ter que admitir alguma contribuição destes escritores à literatura universal. Eu compactuo muito sobre a relevância de certos livros dentro da literatura. Acho Paulo Coelho um grande contador de estórias, mas péssimo escritor no que diz respeito ao corpo, à estrutura textual; Paulo é bom narrador, sabe prender o leitor, mas não faz a menor idéia de como acabar um romance ou como trabalhar melhor suas personagens, quase sempre superficiais. Mas desqualificá-lo enquanto literatura é ridículo. O nosso mago vende milhões de exemplares do seu trabalho, já fechou contrato com o cinema americano e divulga (sim!) nossa literatura brasileira em todas as dezenas de países por onde é editado e traduzido. Graças a ele, muitos escritores de “renome” e “consagrados pela crítica” sonham em um dia caírem no reconhecimento mundo afora. Sem falar que literatura, assim como a própria língua, é uma manifestação em movimento, portanto viva, que precisa andar na multidão, fazer sexo com o povo, levar beleza aos homens, e não ficar escondida, restrita aos acadêmicos e “críticos” literários.

Com relação aos livros de Dan Brown, principalmente o cinematografado “Código...”, além de vender horrores e dar um nó na cabeça dos críticos, Dan instigou muitas pessoas a viajarem, pesquisarem, buscarem a história, iniciando muitos no terreno não só da literatura, mas da história. Seu “Código...” abriu caminho para os loucos e intolerantes, sim, mas também abriu discussões, ressuscitou a teologia e colocou grandes acadêmicos no meio da multidão. O que é verdade ou ficção no livro é o que menos importa. O caminho do livro já é pura literatura. E isso, por si só, já é positivo.

J. K. Rowling está de parabéns. Sete livros bem amarrados, diz a crítica especializada, e bem escritos. Graças a ela, muitos conhecerão outros autores, melhores talvez, mas outros, isso é o que importa. Como ela pegou uma faixa etária interessante, a possibilidade desses jovens comprarem mais livros daqui pela frente é uma vitória da literatura, dos editores (que poderão contratar mais escritores) e nossa, amantes incondicionais dessa manifestação artística.

Viva as Clarices que existem no mundo, os Machados e Saramagos universais! E viva também os Coelhos e Browns da vida, responsáveis pelo movimento e, ainda, interesse pela literatura.

Essa vida da rua


Fernando Calazans, um dos melhores jornalistas esportivos deste país, publicou um texto, em O Globo (18/07/2007 - Esportes - pág.:15), simplesmente fantástico intitulado "Essa vida da rua". Para mim, mais do que uma coluna sobre esportes, uma produção textual sobre o limite humano, uma ode à superação. Calazans sai emocionado. E eu também. Vamos à coluna:


"Depois do ouro no pódio da Copa América, na Venezuela, vamos deixar a seleção brasileira e o Dunga um pouco em sossego (até para ver se ele se cura da irritação que o domina) e vamos dar um pulo no pódio do Pan-Americano, mas, por coincidência, ainda com o tema das crianças, abordado ontem. Eram as crianças do Pelé, no milésimo gol, e as crianças do Dunga, na Copa América.



Cada um a seu tempo, o ex-jogador e o atual técnico dedicaram as duas façanhas às crianças, Pelé mais atento às crianças pobres do Brasil, Dunga mais preocupado com as crianças do mundo inteiro.


O primeiro atleta brasileiro a ganhar o ouro, o Diogo Silva, no Taekwondo, não se dirigiu às crianças em geral, mas a uma criança em particular - a criança que era ele próprio, a criança que ele próprio foi.


Mais do que seu choro contido no primeiro lugar do pódio, ao ouvir o hino brasileiro, o que me impressionou foi a autenticidade de suas primeiras declarações. Muito emocionado ainda, ele disse mais ou menos isso: "O taekwondo é tudo para mim. Foi o que me fez largar essa vida da rua para chegar até aqui".


Dunga e Pelé que me perdoem, mas as palavras do Diogo foram mais fortes, mais sofridas e mais vividas do que as deles - sem querer desmerecer a sinceridade de um e de outro.


Diogo Silva não se dirigiu às crianças, nem pediu por elas. Ele mesmo era a criança pobre, sem muitas perspectivas, que o taekwondo - quer dizer, o ESPORTE - fez largar a "vida da rua", a vida maldita que o conduzia para muito longe dos pódios e dos hinos.


Será que as autoridades dos esportes, dos governos, dos patrocínios, não se sensibilizam e não se convencem de que o esporte - qualquer um - é uma das formas mais bonitas, mais decentes e até mais úteis para o país, a nação - uma forma de tirar crianças das ruas? Uma forma de colocar o Brasil nos pódios?


Não peço por atletas de alto rendimento, o atleta que o Diogo Silva é hoje. Mas sim pela criança que o Diogo Silva foi. Essa, a chamada base, deve ser o alvo dos programas esportivos e sociais. Não que o Diogo Silva adulto não precise de estrutura e de patrocínio. Até precisa. Mas o Diogo Silva criança é que precisa mais.


O Diogo Silva heróico, medalhista de ouro, do qual peguei emprestada a expressão "essa vida da rua" para - em sua homenagem - dar título à coluna."



quarta-feira, 18 de julho de 2007

JJ - 3054

Ele ligou a televisão e havia perguntas desconexas e extremamente lógicas ou ilógicas para ele, não dava para saber, sobre um seguro que só seria coberto pela seguradora se o avião estivesse com 185 passageiros, mas como o avião carregava 186 pessoas, pois um dos passageiros era um bebê, tal seguro poderia ser anulado. O presidente da companhia negou a anulação do seguro, afirmou o protocolo. Um repórter a essa altura o perguntou se só haviam 5 ou 6 mortos no armazém. Essa palavra “só” ficou homônima e paronimamente isolada em algum lugar, perdida no senso do grotesco. “Só”? É claro, depois de 186 passageiros, 5 ou 6 funcionários são poucos. Não dá mídia. Desligou a televisão e abriu os jornais comprados com angústia às 10 horas da manhã. Leu que o acidente pode ter deixado pelo menos 201 pessoas sem vida. Suspeitas de que a pista de Congonhas não estava própria para pousos, principalmente em dias chuvosos, por causa da não conclusão de certos “detalhes” na pista, como, por exemplo, as ranhuras que evitam deslizamento das aeronaves e ajudam no escoamento das águas. Fechou os jornais, mas não os dobrou; largou-os no meio da sala, calados e sem expressão, o que de certa forma destoava com as palavras bem torneadas e justamente colocadas ora em letras de grande destaque, ora simples e sem negrito; destoava, sobretudo, com a tragédia acumulada, anunciada, prevista, não pelos videntes de plantão que só divulgam previsões quando elas acontecem, mas previstas pelo mais simples homem de bom senso. Estava sem dormir, na empresa responsável ninguém fora capaz de informar nada sobre o seu primo. Não havia lista, ninguém sabia quem havia embarcado, como se aviões pegassem passageiros que descem de pára-quedas ou algo do tipo, “não há como identificá-los porque eles entram e saltam quando querem”. “Sabemos que não é por aí, só eles é que pensam que pensamos ser assim”. Abriu os jornais, ligou a televisão e apagou a luz da sala. Os excessos da mesma informação talvez anestesiassem a sua mente cansada de tantas palavras e vozes de dor, de ódio, de cansaço. Talvez o sono fosse inevitável e, quem sabe?, talvez viajasse para outras terras, outros mundos. Seu primo certamente emergiria em alguma lista dentro pouco, morto sem dúvida, porém, naquele momento, o aniquilado era ele. Tentava dormir sem fechar os olhos para não correr no erro de ficar imaginando a agonia das pessoas dentro de uma lata fantástica e vulnerável, não ficar pensando por horas no Boing da Gol, no Fokker 100 da TAM, nos 201, 185, 186, 154, 5 ou 6. Cabala? Não. Vidas Humanas. E ninguém vai preso.

terça-feira, 17 de julho de 2007

As vaias e o bico

O que há de errado em se receber, enquanto político, vaias orquestradas ou não? Existe algum escudo protetor que preserve os políticos de tal “afronta”? O país anda tão perfeito e o seu povo tão satisfeito assim?

Evelyne Furtado (http://evelynefurtado.blogspot.com/), em seu blog escreve algo pouco vislumbrado por todos:

Alguns leitores (...) diziam que os apupos vinham de uma classe privilegiada (...).
Pelo amor de Deus, será que essas pessoas não estão vendo que as vaias a Lula são uma prova da força da democracia pela qual ele e tantos outros lutaram?Não acho bonito vaiar, mas respeito essa demonstração pacífica de desapreço da população, seja de que classe social for.

Esta colocação é perfeita. Antes de mais nada, a vaia é um instrumento democrático que custou a vida de muitos brasileiros, é preciso que ao menos seja respeitado o direito, mínimo que seja, de quem quiser se manifestar dessa forma. Acredito que o momento não era para tanto, mas a expressão livre não precisa de momento. Ela é por si só.

Duas coisas me incomodam bastante. Primeira: por que, assim como o presidente Lula, o prefeito da cidade também não foi vaiado? Estaria ele impune dos problemas que assolam a sociedade brasileira? Teria ele mais a ver com a classe social que lá estava nas arquibancadas prestigiando a abertura dos jogos? Segunda: por que o presidente da república não abriu os jogos? Vaias o incomodam? Será que o cargo de presidente deixou de ser laico e estaria ele, Lula, achando-se próximo das divindades várias? Entendi o constrangimento e a mágoa, continuo não entendendo a sua atitude.

Se tudo for um complô para derrubar o nosso querido presidente, como muitos apregoam, então devem ser forjadas todas as notícias de estupro aos cofres públicos e tráfico de influências. Será que o irmão ingênuo e vários companheiros do comandante desta nação só conheciam os ricos honestos ou tinham (têm) contatos íntimos demais com ricos que não podiam e não podem declarar ao imposto de renda ou a qualquer órgão idôneo quanto ganham sem fabricar frias notas de bois e fazendas enormes de falcatruas?

Não vou aqui entrar no mérito das vaias serem ou não prejudiciais à imagem do país ou se elas foram reverberadas em momento pouco propício. As vaias, assim como os aplausos, fazem parte do esporte e da política, representados fielmente pela construção monumental do Maracanã e pela figura do presidente, portanto, nada a comentar sobre isso. Se foi orquestrado ou não, mediocridade de quem armou e vergonha de quem executou. Manifestações espontâneas são compreensíveis, politicagem armada em festas desse tipo é pilantragem, e pilantras não ganham o meu voto.

domingo, 15 de julho de 2007

Destinos Turísticos Secretos

Mais uma vez sinto-me obrigado a postar a excelente criação do artista Fernando Palma
Texto altamente criativo, leve e gostoso. Fico a me perguntar se inspiração existe, porém, como não formularia uma produção textual tão boa quanto a que o professor Halem Souza (Quelemém) concebeu em seu blog
(http://racaodasletras.blogspot.com/), indico uma olhada na página do professor.

Destinos Turísticos Secretos
Tudo que você precisa saber para chegar aos lugares que sempre desejou.

Infância
Vista algo leve, pegue o primeiro balão mágico passar perto de você, siga o rumo dos arco-íris e das nuvens mais engraçadas que encontrar. O caminho é longo, leve algumas jujubas para o caso de sentir fome. Tente não se preocupar com o lugar que está indo, ou que dia irá chegar. Quando realmente não estiver preocupado com absolutamente nada, parabéns, você chegou! Vá logo visitar as escorregadeiras, balanços, gangorras e outros pontos turísticos. Não se assuste com algumas gotículas mornas caindo do céu, não é chuva. São algumas bolas de sabão que vivem estourando o tempo inteiro por lá.

Amor
É uma viajem mais radical, opção boa para os aventureiros. As pessoas que chegaram lá ficaram muito felizes ou muito tristes. Portanto, se você não gosta de correr riscos, desista. Não acredite nesses mapas que vendem por ai prometendo leva-lo rapidamente, é todo lorota. Escolha a companhia certa, colha algumas flores, decore sua casa antes de partir, seu corpo. Compre uma vasilha grande para aguardar as lagrimas caso a viajem dê errado (eu falei que era arriscado). Mas vale a pena, dizem até que quem não o conhece, morre solitário. Sim, bem polêmico. Não esqueça de levar alguns dvds de comédias românticas, laços para embalar presentes, pipoca, vinho, e boa sorte.

Inocência
É o lugar mais contraditório de todos: só está nele quem não sabe disso. Portanto, desconfie sempre, quem diz que está lá, não está. Da mesma forma, se você está tentando chegar a inocência, é porque já esteve e nem sabia. Não tente entender demais, passe para a próxima viajem.

Sonhos
Existem muitos lugares com este nome, por isso está no plural. Cada viajante tem seu predileto. A estrada é sempre ruim, cheio de quebra-molas, buracos e precipicios. Use pneus bons ou sapatos resistentes se for a pé. Não se incomode com as dificuldades, a demora é o segredo desta viajem: para quem alcança facilmente, o lugar simplesmente some do mapa. Isso mesmo. Os sonhos são uma espécie de lugares-mágicos e tem um monte de outras características inexplicáveis, sobrenaturais. Nem todos acreditam. Você que gosta de magia, não pode perder.
(Fernando Palma)

quarta-feira, 11 de julho de 2007

Mais Fausto Wolff

Essa eu tirei de uma crônica do Fausto Wolff intitulada As 1002 noites, O Lobo (http://www.olobo.net/):
"Quando Sartre esteve no Brasil, o chefe de reportagem do Diário da Noite mandou o único repórter que falava francês decentemente para entrevistá-lo. O rapaz que não era exatamente brilhante, bolou uma frase de efeito. No meio da entrevista coletiva no Hotel Glória perguntou em francês sem acento:- O senhor acha que o existencialismo sobreviverá? Sartre olhou para o moço por um meio minuto, quase eternidade, e perguntou:- A quê?Todos os presentes caíram na gargalhada e o jovem repórter retirou-se envergonhado para voltar correndo cinco minutos depois Fez caminho entre os representantes da imprensa e quando estava bem na frente de Sartre, disse em alto e bom som:- O senhor sabe que a sua mulher trepa com um repórter de Chicago chamado Nelson Algreen? E era verdade."
O ser humano é isso mesmo? Pois é. E como melhoramos? Voltando a ser a barata dA Paixão Segundo G.H ou deixando de sê-la, fugindo dA Metamorfose?
Outras do Fausto, só que agora, de uma crônica (que eu reduzi) chamada Folheando o diário antes do embarque, Jornal do Brasil, 19/5/2007:
  • "Só sei que nada sei, mas às vezes me surpreendo sabendo coisas que não poderia saber absolutamente."
  • "Não se pode nem falar em democracia enquanto o Estado - não importa qual - não garantir casa, comida, hospital, escola, trabalho, transporte e educação a todos os cidadãos. Qualquer outra coisa é escravidão."
  • "Deus não está preocupado comigo e nem eu com ele. Se ele existir, espero que trate da sua vida e não seja um canalha. Eu trato da minha e procuro me comportar como um homem de bem. Faço isso por mim e não por ele, que não sei se existe. Ser como sou tem me dado alegrias e tristezas, mas isso nada tem a ver nem com Deus nem com o Diabo."
  • "Escrever bem é importante mas não é essencial. Essencial é a sinceridade. Pelo menos tentar ser sincero de todo o coração. Isso, em si só, já é um estilo. Um livro que não é o autor não serve para nada."
  • "Não é fácil para mim compreender o sucesso das religiões cristãs quando tenho certeza de que o último cristão verdadeiro morreu na cruz."

terça-feira, 10 de julho de 2007

O ódio incerto

Já estava planejado e era certo que a operação seria demorada, pouco cirúrgica ou convincente, mas seria apoiada e oficialmente legal. Aos primeiros sons que acordaram, sem dúvida, os deuses (Ares e Hades, principalmente), não houve tempo para pensar, sequer na filha que deixara em casa com febre ou na discussão com a esposa horas atrás, foi lá e fez o que disseram para fazer. Simples assim. Ou não tão simples. Em sua roupa o cheiro de pólvora era inevitável, como inevitáveis eram os gritos de delírio e demência de ambos os lados. O que caiu à sua frente não eram restos do seu corpo, mas do seu espírito, um resquício de virgindade e inocência cultivada em banho-maria por anos de amor familiar e educação adequada. O que caiu à sua frente, em meio a fumaça do ódio e do gatilho automático, era antes uma carcaça que o sol não conseguiu atingir primeiro, que a sociedade não conseguiu abraçar. O que caiu, caiu como um pacote, atropelando o cenário já opaco, de beleza duvidosa e rejeitada, atrapalhando o tráfego, as botas pesadas que ecoavam em solo incerto. Teve a sensação de euforia injetada, uma adrenalina confusa que era medo misturado à ordem primeira, medo misturado à locomotiva da ação. Precisava seguir em frente e derrubar mais um. Queria sumir por um segundo, rasgar a roupa suja de dúvida e secadura, mas um segundo era o tempo de um zunido, não havia espaço para a piscada de olhos, uma reflexão sobre a vida. A vida não estava ali. Só os gritos que indicavam sobrevivência lacrimejante. Os músculos estavam retraídos, precisava beber alguma coisa rapidamente, precisava ouvir Chico Buarque, amar, visitar os amigos, fazer um churrasco. Alguém colocou as mãos em seu ombro, era uma mulher que tremia nos lábios, que tremia com a alma, arrastando um garoto, pedindo ajuda. Como ajudar? E se ela cuspisse fogo redentor? Apontou o dedo indicador e mandou-a abaixar, mãos à cabeça, identificar-se. Estaria sendo humano? Não havia humanidade naquele momento. Os ponteiros do seu relógio andavam com preguiça, quase sussurrando algo aterrador. Mesmo com os ouvidos ocupados, pode ouvir do hálito roxo que saía da boca da mulher que o jovem era inocente, seu filho, seu mundo. O mundo havia desabado, o inocente mundo abria os olhos e gritava em terra vermelha algo gravitacional. Carajás estava ressurgindo na figura de uma favela.

segunda-feira, 9 de julho de 2007


Ao mestre dos mares!!
Domingo, dia 8 de julho, foi aniversário do grande mestre Fausto Wolff, o velho e ótimo Lobo. Li no blog do Pirata (comandante interino da nau do Fausto) que é possível até terça desejar um feliz aniversário para o nosso colunista em:
Não custa muito escrever ao Fausto, homem que dedicou muito da sua vida a nos ensinar conceitos de retidão, honestidade, jornalismo, ética, honra. Salve, grande Lobo! Você é um dos poucos que, mitológico, serve-nos de espelho e direção!
Longa vida ao Fausto!!

quinta-feira, 5 de julho de 2007

Um professor, certa vez


Pomba branca sobre gambiarra e urubu em teto de zinco quente
(Sandra Camurça)




Um professor uma vez, disse para seus alunos que não conseguia entender o brasileiro. Nem ele e nem a classe abastada econômico-social que insistia em matar o povo, subvertê-lo em máquina, “Construção Buarqueana”; reduzi-lo ao menor grau, intelectualmente falando, panfletariamente fazendo. Não entendia como essa gente não morria. Insistia em não morrer. Como dizia àquela letra do Milton: “uma gente que ri quando deve chorar e não vive, apenas agüenta”.

Ao dirigir-se à turma e declarar sua enorme falta de entendimento sobre como sobre-vive o povo brasileiro, mirou ao longe, talvez avistando algo palpável na parece branca da sala, um ponto-de-fuga mental e metálico, e vocalizou algo do tipo: “o povo é como uma fênix, quando você pensa que morreu, ele renasce das cinzas”.

1350 policiais invadiram a favela do Alemão e há indícios de extermínio no ar. Isso fica evidente subtraindo o número de mortos (oficiais ou não-oficiais) pela quantidade de armas encontradas, como bem debruçou, de maneira sóbria e contundente, o jornalista Marcelo Salles no site do Observatório da Imprensa (O elogio do massacre):

Quem não se deixou levar pela irracionalidade, percebeu o seguinte (usando apenas os dados oficiais, reproduzidos pelas corporações de mídia): foram 19 mortos e 14 armas apreendidas. 19-14 = 5. Ou seja, se cada morto portasse pelo menos uma arma, temos que cinco pessoas estavam desarmadas. Há fortes indícios de que foram executadas.

A sociedade (ricos) exigiu tal atitude da polícia, quase a lançou à favela, por motivo simples: é melhor, para ela, a “barbárie fardada”, matando os “marginais” que a “barbárie de chinelos”, vomitando ódio às elites inoperantes. Portanto,há uma forte possibilidade de logo, logo termos notícias “normais” sobre abuso de poder, execução sumária, e coisas do tipo, mas tudo já estará cagado e bosta na praia de pobre não fede.

Mesmo assim, apesar da autoridade invertida, desrespeitosa, incompetente e desafiadora da paciência popular, o povo continua. Apesar de tudo ter começado com uma simples “caraca” na pele do poder, escondido pelas mangas compridas da corrupção e pelos acordos de “paz” entre chefes de Estado e traficantes, o povo continua; ganhando uma miséria de salário, uma miséria de governo. E a miséria é a miséria. Como já escreveu Renato Russo: “Não existe beleza na miséria, e não tem volta por aqui, vamos tentar outro caminho”.

Outro caminho sempre há, difícil é enxergá-lo depois da implosão cultural, educacional, explosão da saúde e dos transportes coletivos, depois de muitos relaxarem e gozarem (exatamente por que não precisam da caridade-esmola do Governo, mas se beneficiam com a generosidade infinita do poder) sem dar a mínima para os que realmente fazem e são a coluna e o alicerce do país. Mas outro dia sempre pode chegar.

É a fênix brasileira que, por ler muito Drummond, apesar dos pesares, resolve furar o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

quarta-feira, 4 de julho de 2007

Dos amigos e das crianças

Ela brincava sozinha – gostava de brincar sozinha, sentia-se feliz assim, ou assim parecia para a sua mãe. Um dia, a mulher acabou de passar as roupas cedo e ficou sem nada mais para fazer. Guardou as peças passadas e decidiu dar uma olhada na filha que se encontrava na sala e sobre o que a criança brincava. Ao se aproximar do cômodo, notou que a prole falava alto, como que conversando e/ou discutindo com alguém. “Mas ela está sozinha!” Sim, a garota estava só e dialogava com “alguém”. Aproximou-se mais um pouco, mas agora fazia isso devagar, com os passos lentos, sem fazer ruído. Olhou ao redor – sim, ela encontrava-se sozinha. No entanto, parecia, pela cor avermelhada, aborrecida com alguma coisa. “O que está havendo?” A resposta veio de forma imediata e alterada: “A Carol quer brincar com a boneca da Júlia e eu estou tentando explicar que não pode porque a Júlia sempre chora quando ela tira a sua boneca...” Quem era Carol e quem era essa tal de Júlia? A mãe olhou para as bonecas em um canto da sala, notou que eram as que sua filha nunca usava, apenas as pegava e colocava-as em um canto da casa. “Mas eu não vejo nada, minha flor...”, disse a preocupada senhora. “É que elas só aparecem para mim.” A mãe não sabia o que dizer ou fazer, havia assistido a um filme sobre um rapaz esquizofrênico que via “amigos invisíveis” e, o filme, associado ao que acabara de presenciar, deixara-a em pânico. Disse qualquer coisa com a voz muito baixa e confusa e começou a andar pelo corredor; chegou à cozinha, bebeu um copo d’água e pensou seriamente no assunto. “Será que ela vê mesmo essas meninas? Será tudo isso fruto da sua imaginação fértil? Será que isso acontece com todas as crianças nessa fase?” Ouvira falar uma vez que as pessoas nessa idade possuíam uma pureza muito grande e eram, por isso, altamente receptivas ao contato com... “coisas assim”. Ouvira falar também que algumas crianças com até mais ou menos três anos de idade viam “amiguinhos invisíveis” ou, como era denominado, amiguinhos psíquicos e, como dizia uma reportagem, era extremamente normal. De qualquer forma, era preciso procurar ajuda, orientação psicológica e tudo mais, nunca se sabe. Voltou para a sala e observou atentamente a menina brincar com a sua boneca e com as suas “amigas”, estava(m) calma(s) agora e tudo parecia correr bem. De vez em quando, sua filha sorria ou gargalhava, a mulher olhava ao redor e não via nada além das paredes e móveis. Era estranho, mas... será mesmo?... “Será que os adultos estão tão corrompidos e sujos em seus corações que são incapazes de ver as coisas desse nível?” A mulher não tinha as respostas. Na verdade, a única coisa que latejava em sua mente era: será mesmo?...

segunda-feira, 2 de julho de 2007

A ponte

A operação feita na Favela do Alemão pelas forças policiais federal, civil e militar agradaram em cheio à classe média e aos ricos como um todo. Dezenove mortos, segundo relatório oficial, na maior incursão em conjunto já realizada em favelas cariocas com o número de mortos oficiais e não-oficiais.

Agora, a OAB quer fazer justo levantamento sobre em que circunstâncias foram mortos os supostos bandidos e se todos os mortos, contabilizados oficialmente, de fato eram soldados do tráfico. Tal iniciativa mostra-se descabida para uns, mas extremamente contextualizada para a justiça, pois sempre há a possibilidade de abuso de autoridade, execução ou algo à altura, tão maléfico à integridade da polícia quanto as drogas que, sem exceção, atingem os menores utilizados como “aviõezinhos”, pelos “senhores da coca”. À polícia não cabe tomar atitudes marginais, nem focar seu direcionamento na satisfação pura e simples da sociedade mais abastada. Falar que investir em educação é mais eficiente que investir armas em direção às favelas não passa de clichê aborrecido e sempre visitado, contudo, alguém duvida de que seja um dos clichês mais lúcidos?

Na coluna do grande Mauro Santayana de hoje, no Jornal do Brasil (02/07), caderno Coisas da Política:

Se quiséssemos encontrar o início da guerra que se trava hoje no Rio, deveríamos voltar a 1896 e 1897, e ao sertão da Bahia, no cerco e aniquilamento do Arraial de Canudos. Ali não houve vencedores, mesmo que o governo haja comemorado a destruição do estado messiânico de Antonio Conselheiro como uma vitória da República. Os principais combatentes - os soldados e pequenos oficiais das tropas expedicionárias, de um lado, e os milicianos do Beato, do outro - foram vítimas das oligarquias assentadas na velha injustiça que sobrevivera à monarquia.
Milhares dos soldados veteranos de Canudos se deslocaram para o Rio, sob a vaga promessa de empregos permanentes, e muitos acamparam, com suas famílias, no morro atrás do Palácio do Itamaraty, então sede do novo governo. Deram-lhe o nome de Favela, em referência ao outeiro diante de Canudos, onde se travou a batalha decisiva contra Antonio Conselheiro.

Penso que Santayana chegou ao ponto com muita dignidade. Olhar as favelas como um processo excludente ou apenas de aglutinação da massa é um equívoco. Tudo passa pelo descaso em algum momento e é conseqüência de várias causas ao mesmo tempo. A favela é um exemplo nítido da ponte que foi construída no Rio de Janeiro e na maioria das metrópoles. Como a classe alta nunca conseguiu conviver com o pobre, criou-se um muro quase intransponível entre o rico e o pobre (generalizações à parte). Uma ponte entre o sucesso e o fracasso. Você pode atravessá-la sempre que quiser (principalmente em época de eleição), co-agir com os membros da cada extremidade da ponte, mas no final, precisa voltar ao seu lugar, senão, a própria sociedade lhe coloca na cadeira que é devida. No “seu” extremo da ponte.

Talvez a polícia tenha agido de forma inteligente e talvez esta forma de repressão seja a única capaz de deter o tráfico do jeito em que ele se encontra (quase incontrolável e intocável), mas é sempre bom pensarmos sobre múltiplos ângulos, não podemos nos abster do assunto.

Educação salvará este país de um colapso, sim, mas isso será a longo prazo, hoje é preciso tomar medidas e talvez a ocupação tenha sido a mais acertada. Tenho minhas dúvidas, mas também não sei como fazer de outro jeito, portanto, não posso criticar por criticar.

Aliás, a questão que também merece um levantamento é: será que tais medidas continuam depois do Pan?

Sei não.