terça-feira, 17 de novembro de 2009

sábado, 14 de novembro de 2009

Os talebans da Uniban e a tensão entre a saia curta e a orelha comprida

Por Marcelo Soares
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do (ótimo) blogue E você com isso?
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Pois a Uniban expulsou a hoje famosa Geisy Arruda, que causou alvoroço na faculdade por ir de vestido curto pra aula. Segundo anúncio publicado pela universidade hoje, a culpa pelo tumulto foi da aluna, por ir à aula em trajes inadequados e fazer um percurso maior do que o habitual. Os próceres da academia sentenciam que a aluna feriu a ética, a moralidade e a dignidade acadêmica.

Eu continuo achando que, se a universidade institucionalmente considera que a roupa era inadequada, tinha jeitos menos selvagens de informar isso à estudante. Quando ela entrou, a batata-quente do ridículo estava na mão dela. Quando ela saiu, estava na mão de centenas de alunos e no colo da faculdade, muito mais quente e muito maior. E, sinceramente, também continuo achando que entre adultos o que se veste é problema de cada um. O blog do Marcos Guterman resume bem: a culpa acabou sendo da vítima.

Mas não era exatamente da loira da Uniban que eu queria falar. Queria falar de educação, num sentido mais amplo. Acho que o caso comprova, mais do que nunca, um ponto importante e que volta e meia volta à discussão de maneira rasa: a diferença abissal que existe entre educação e canudo.

Nesta semana, o presidente Lula entrou no foco desse debate. Começou com o Caetano Veloso botando lenha na fogueira ao elogiar por contraste a ex-ministra e futura presidenciável Marina Silva com um "ela não é analfabeta como Lula". É um tipo de argumento que sempre aparece e no qual eu nunca toco porque eu acho de uma imbecilidade colossal. Verdade que o Lula teve tempo suficiente pra fazer supletivos e até uma faculdade, mas não fez - a Marina Silva fez, o Vicentinho fez. Só que nem por isso ele é "burro" - pelo contrário, é esperto o suficiente pra saber quando dizer que não sabia de nada. Ele e seu governo têm problemas mais sérios do que isso.

O presidente tem respostas muito boas pra esse tipo de crítica. Está acostumado, enfim, após tantos anos de vida pública. Em discurso no congresso nacional do PC do B, Lula falou uma grande verdade em serviço próprio:

"Tem gente que pensa que a inteligência está ligada à quantidade de anos de escolaridade que você tem. Não tem nada mais burro que isso. A universidade te dá conhecimento, aperfeiçoamento. Inteligência é outra coisa."

De uma maneira mais comprida, ele basicamente explicou a frase antológica do mestre Barão de Itararé: "canudo não encurta orelha".

Já tive longas discussões com minha avó sobre isso. Mulher sábia, do alto de seus 90 anos, ela insiste em se dizer "burra" porque só estudou até a terceira série. Porém, alguns insights que saem de sua cabeça, a partir do que viu e viveu, são mais profundos do que a maior parte da produção intelectual de ciências humanas do Brasil, ou pelo menos na área da comunicação. (Antes que venham com pedras: sim, eu tenho o hábito de ler trabalhos acadêmicos. Geralmente acho que sou masoquista.)

Outro debate interessante em que essa confusão se fez notar recentemente foi no rolo da obrigatoriedade do diploma para jornalistas. Eu, pessoalmente, acho que estudar jornalismo é muito útil para um futuro jornalista. Mas acho que a obrigatoriedade era um prêmio para as faculdades ruins. Prêmio que elas aproveitaram bem, no boom de faculdades de esquina que surgiu a partir dos anos 90. Lucraram muito com isso. Durante quatro anos, ensinavam qualquer coisa basicamente para justificar as mensalidades. Ao final, entregavam um canudo que valia tanto quanto o de uma faculdade boa - afinal, era isso o que importava - e o aluno que se virasse pra aprender tudo no mercado de trabalho. Ou para achar outra profissão, sei lá.

Muita gente bem-intencionada critica a decisão do STF de derrubar a obrigatoriedade do diploma. Acham que isso "desvaloriza" a profissão. Eu acho que não. Acho que isso tira o prêmio das faculdades ruins. As boas estão seguras. As médias vão ter que melhorar pra sobreviver, e isso é ótimo. A finalidade de estudar jornalismo não é ter acesso a um pedaço de papel, e sim a um conjunto de conhecimentos. Ainda nesta semana, meu mestre Plínio Bortolotti, do jornal O Povo, publicou em seu blog a informação de que, após a decisão do STF, o Ministério do Trabalho não está mais fazendo registro profissional de jornalistas. Também acho ótimo: acho que obrigar jornalistas a pedir licença para exercer sua profissão é resquício ditatorial. Quando precisava pedir, estávamos acompanhados de atores, sociólogos e flanelinhas. Agora, que não precisa mais pedir, estamos na companhia de engenheiros, advogados e médicos. Se não tinha critério, melhor não ter. (Que desobriguem também os atores e sociólogos!)

Mas esse pessoal bem-intencionado gosta da segurança que o papel dá. O canudo, o carimbo, a marca d'água, as assinaturas de três testemunhas, as diferentes destinações de vias de cores diferentes, a firma autenticada em cartório, a obrigatoriedade de apresentar certidão de nascimento junto da carteira de identidade indo pessoalmente ao local.

Isso está na base da cultura brasileira, cartorial e bacharelesca. O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, que morreu nesta semana, foi um dos fundadores da Universidade de São Paulo. Em seu clássico "Tristes Trópicos", porém, Lévi-Strauss fez observações ácidas sobre os hábitos intelectuais dos estudantes brasileiros:

"Nossos estudantes queriam saber tudo; mas, em qualquer campo que fosse, só a teoria mais recente parecia merecer-lhes a atenção. Fartos de todos os festins intelectuais do passado, que aliás só conheciam por ouvir dizer, já que não liam as obras originais, conservavam um entusiasmo sempre disponível pelos pratos novos. No caso deles, conviria falar mais de moda que de gastronomia: idéias e doutrinas não ofereciam, em seu entender, um interesse intrínseco, consideravam-nas como instrumentos de prestígio cujas primícias deviam conseguir. Partilhar uma teoria conhecida com outros equivalia a usar um vestido já visto; expunham-se a um vexame. Em compensação, praticavam uma concorrência ferrenha à custa de muitas revistas de vulgarização, periódicos sensacionalistas e compêndios, para conseguir a exclusividade do modelo mais recente no campo das idéias. (...) No entanto, a erudição, da qual não tinham o gosto nem o método, parecia-lhes (...) um dever; de modo que suas dissertações consistiam, qualquer que fosse o tema, numa evocação da história geral da humanidade desde os macacos antropóides, para terminar, por meio de algumas citações de Platão, Aristóteles e Comte, na paráfrase de um polígrafo enfadonho cuja obra tinha tanto mais valor na medida em que, por sua própria obscuridade, era bem possível que nenhum outro tivesse a idéia de pilhá-la." (evoé, @mrguavaman)

Isso era bem antes dos tempos atuais. Ele viveu no Brasil entre 1935 e 1939. Em 1936, o brasileiro Sérgio Buarque de Hollanda escrevia, em "Raízes do Brasil":

"A dignidade e importância que confere o título de doutor permitem ao indivíduo atravessar a existência com discreta compostura e, em alguns casos, podem libertá-lo da necessidade de uma caça incessante aos bens materiais, que subjuga e humilha a personalidade. Se nos dias atuais o nosso ambiente social já não permite que essa situação privilegiada se mantenha cabalmente e se o prestígio do bacharel é sobretudo uma reminiscência de condições de vida material que já não se reproduzem de modo pleno, o certo é que a maioria, entre nós, ainda parece pensar nesse particular pouco diversamente dos nossos avós. O que importa salientar aqui é que a origem da sedução exercida pelas carreiras liberais vincula-se estreitamente ao nosso apego quase exclusivo aos valores da personalidade. Daí, também, o fato de essa sedução sobreviver em um ambitente de vida material que já a comporta dificilmente. Não é outro, aliás, o motivo da ânsia pelos meios de vida definitivos, que dão segurança e estabilidade, exigindo, ao mesmo tempo, um mínimo de esforço pessoal, de aplicação e sujeição da personalidade, como sucede tão frequentermente com certos empregos públicos".

E o que é que o caso da Uniban tem a ver com isso?

Bom, pra mim pareceu mais ou menos claro que aquelas centenas de alunos não estavam lá para estudar. Se todo mundo podia sair da sala de aula pra chamar uma colega de puta, é porque isso era mais importante do que estudar. Se a faculdade acha que é mais importante expulsar a aluna saliente do que tomar medidas contra os alunos talibãs que mataram aula pra linchar moralmente a aluna saliente, é porque a faculdade não apenas sabe desse vezo como também o apoia - ao menos nesse caso, em que atribuiu a culpa do tumulto de centenas alunos a uma aluna só.

E como não apoiaria? É mais negócio perder uma mensalidade ou 700? O canudo está garantido lá no final. E, afinal, é ele que importa. Com o canudo na mão, ninguém vai chamá-los de burros como chamamos o presidente, não é?

Como eu falei no comentário da TV, mais dia menos dia esses caras estarão nas empresas e na política. Com seu senso de moral peculiar reforçado, porque até a faculdade lhes deu razão no caso, e toda a empáfia da cultura bacharelesca brasileira.

O problema do Brasil nunca foi a saia curta. É a orelha comprida.

por Marcelo Soares

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Relato de um sol eterno


Este lindíssimo poema em prosa me surpreendeu. Uma tremenda confissão de amor. Roubei do blogue da Vanessa Bencz.
Boa aventura!
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Relato de um sol eterno
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A primeira pessoa que vejo, ao abrir os olhos pela manhã, é a minha irmã mais velha. Dividimos o mesmo quarto faz 23 anos. Ela dorme na cama à minha direita. Como se fosse meu braço direito, meu leste. Ela me amanhece.
Em pequena, eu tinha dificuldades para pronunciar seu nome. Me acostumei a chamá-la por uma simples sílaba: Di. Só eu a chamo assim, ela só atende ao apelido quando é dito pela minha voz. A alcunha necessita de tom musical, carga emocional e um riso no canto da boca que apenas eu sei dar.
Di é dois anos mais velha que eu. Quando eu tinha seis anos, minha tia fez para mim a fatídica previsão que os parentes sempre fazem para adivinhar as crianças da família:
- Essa menina vai dar baixinha. Sua irmã mais velha, não. Vai dar moça alta, de pernas compridas.
Escondi-me ainda mais na baixa estatura e na franja loira. Di era criança alta, bonita e precoce. Criança irreal de filme estrangeiro. Criança que sabe conversar sobre a previsão do tempo, o governo Collor e a queda da bolsa de valores. E eu mal sabia soletrar meu próprio nome. Tinha dificuldades com a letra s.
Tornei-me uma pré-adolescente tímida e egoísta. A lição de solidariedade veio pela minha irmã. Certa vez, no colégio, meus colegas riam de mim por um motivo que não lembro mais. Di chegou, fez um sermão com dedo em riste, e as crianças se calaram. Exceto por um menino gorducho e feioso, que teimava em continuar rindo. Di deu-lhe quatro murros na orelha, e o moleque se calara. Tempos depois, eu faria o mesmo pelo meu irmão mais novo.
No começo da fase adulta, Di precisou fazer uma cirurgia de emergência. Fui visitá-la no hospital e, ao vê-la na cadeira de rodas, desabei num choro frenético e desmaiei de pressão baixa. Saímos juntas do hospital, cada uma em sua cadeira de rodas.
Hoje em dia, Di e eu temos a mesma altura. Nós somos o mesmo território vasto de lembranças. Nossos sonhos se misturam de noite e nossa telepatia se entrecruza durante o dia. Di me amanhece.

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Como escrever sobre o amor

A mão da mãe manhava

Trêmula, fosca, fatigada

Ao perder a direção, prumo

Do mar do filho curvo

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Chegou e quase não disse

Sua voz miava quinze

E eu perguntava: quinze anos?

Enganos? Sem planos? Cu?

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O filho no mundo voava?

Ela, sem chão, mergulhava

Perdendo a procura, o tempo

O nome, a febre, a dor

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Quem sabe se vive?

A polícia não sabe ou suspeita

Como não sabe ou suspeita

Da Baixada e da chacina.

Por indicação do Professor Halem, no seu blogue, reproduzo uma ótima visão sobre o homem e a sua incontestável humanização.
Como não sou mais assinante da folha, nem do UOL, peguei a crônica aqui.
Boa leitura!

A turba da Uniban


CONTARDO CALLIGARIS
Folha de S. Paulo - Ilustrada - 5/11


As turbas têm um ponto em comum: detestam a ideia de que a mulher tenha desejo próprio


NA SEMANA passada, em São Bernardo, uma estudante de primeiro ano do curso noturno de turismo da Uniban (Universidade Bandeirante de São Paulo) foi para a faculdade pronta para encontrar seu namorado depois das aulas: estava de minivestido rosa, saltos altos, maquiagem -uniforme de balada.

O resultado foi que 700 alunos da Uniban saíram das salas de aula e se aglomeraram numa turba: xingaram, tocaram, fotografaram e filmaram a moça. Com seus celulares ligados na mão, como tochas levantadas, eles pareciam uma ralé do século 16 querendo tocar fogo numa perigosa bruxa.

A história acabou com a jovem estudante trancada na sala de sua turma, com a multidão pressionando, por porta e janelas, pedindo explicitamente que ela fosse entregue para ser estuprada. Alguns colegas, funcionários e professores conseguiram proteger a moça até a chegada da PM, que a tirou da escola sob escolta, mas não pôde evitar que sua saída fosse acompanhada pelo coro dos boçais escandindo: "Pu-ta, pu-ta, pu-ta".

Entre esses boçais, houve aqueles que explicaram o acontecido como um "justo" protesto contra a "inadequação" da roupa da colega. Difícil levá-los a sério, visto que uma boa metade deles saiu das salas de aula com seu chapéu cravado na cabeça.

Então, o que aconteceu? Para responder, demos uma volta pelos estádios de futebol ou pelas salas de estar das famílias na hora da transmissão de um jogo. Pois bem, nos estádios ou nas salas, todos (maiores ou menores) vocalizam sua opinião dos jogadores e da torcida do time adversário (assim como do árbitro, claro, sempre "vendido") de duas maneiras fundamentais: "veados" e "filhos da puta".

Esses insultos são invariavelmente escolhidos por serem, na opinião de ambas as torcidas, os que mais podem ferir os adversários. E o método da escolha é simples: a gente sempre acha que o pior insulto é o que mais nos ofenderia. Ou seja, "veados" e "filhos da puta" são os insultos que todos lançam porque são os que ninguém quer ouvir.

Cuidado: "veado", nesse caso, não significa genericamente homossexual. Tanto assim que os ditos "veados", por exemplo, são encorajados vivamente a pegar no sexo de quem os insulta ou a ficar de quatro para que possam ser "usados" por seus ofensores. "Veado", nesse insulto, está mais para "bichinha", "mulherzinha" ou, simplesmente, "mulher".

Quanto a "filho da puta", é óbvio que ninguém acredita que todas as mães da torcida adversa sejam profissionais do sexo. "Puta", nesse caso (assim como no coro da Uniban), significa mulher licenciosa, mulher que poderia (pasme!) gostar de sexo.

Os membros das torcidas e os 700 da Uniban descobrem assim um terreno comum: é o ódio do feminino -não das mulheres como gênero, mas do feminino, ou seja, da ideia de que as mulheres tenham ou possam ter um desejo próprio.

O estupro é, para essas turbas, o grande remédio: punitivo e corretivo. Como assim? Simples: uma mulher se aventura a desejar? Ela tem a impudência de "querer"? Pois vamos lhe lembrar que sexo, para ela, deve permanecer um sofrimento imposto, uma violência sofrida -nunca uma iniciativa ou um prazer.

A violência e o desprezo aplicados coletivamente pelo grupo só servem para esconder a insuficiência de cada um, se ele tivesse que responder ao desejo e às expectativas de uma parceira, em vez de lhe impor uma transa forçada.

Espero que o Ministério Público persiga os membros da turba da Uniban que incitaram ao estupro. Espero que a jovem estudante encontre um advogado que a ajude a exigir da própria Uniban (incapaz de garantir a segurança de seus alunos) todos os danos morais aos quais ela tem direito. E espero que, com isso, a Uniban se interrogue com urgência sobre como agir contra a ignorância e a vulnerabilidade aos piores efeitos grupais de 700 de seus estudantes. Uma sugestão, só para começar: que tal uma sessão de "Zorba, o Grego", com redação obrigatória no fim?

Agora, devo umas desculpas a todas as mulheres que militam ou militaram no feminismo. Ainda recentemente, pensei (e disse, numa entrevista) que, ao meu ver, o feminismo tinha chegado ao fim de sua tarefa histórica. Em particular, eu acreditava que, depois de 40 anos de luta feminista, ao menos um objetivo tivesse sido atingido: o reconhecimento pelos homens de que as mulheres (também) desejam. Pois é, os fatos provam que eu estava errado.


ccalligari@uol.com.br

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Esta é a capa da edição de hoje do jornal carioca O Dia. Impossível não postar!

"O Rio não é violento"
Assinale com um X quem disse ontem a frase acima.
1- Homem-Aranha - que está no Rio para shows no Maracanizinho a partir de amanhã;
2 - Secretário Beltrame - diante da Comissão de Segurança Pública na Câmara, em Brasília;
3 - Papai-Noel - que ainda se recusa a blindar seu trenó para distribuir os presentes da criançada.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Queria postar todo o blogue do professor Moacy (Balaio Porreta 1986), mas os dois poemas já é abusar do roubo. Então, fiquem com estes e, depois, confiram o resto!
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CONFISSÃO DO LATIFÚNDIO
D. Pedro Casaldáliga
[ cf. Barbaridades críticas, de Marcius Cortez ]

Tudo é relativo
menos Deus e a fome.
(Noemas 34)

Por onde passei,
plantei
a cerca farpada,
plantei a queimada.
Por onde passei,
plantei
a morte matada.
Por onde passei,
matei
a tribo calada,
a roça suada,
a terra esperada...
Por onde passei,
tenfo tudo em lei,
eu plantei o nada.
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POEMA

Líria Porto


não queiras ser o único
o último
o primeiro
sê aquele de quem eu me lembre
todas as noites