quarta-feira, 17 de junho de 2015

Lei das Biografias: comemorar o quê?



A liberação de biografias não autorizadas é, sem dúvida, um marco importante da luta pelas liberdades, pela preservação do patrimônio histórico e pela pluralidade democrática. Nada mal para a autoestima nacional que tem andado, ultimamente, muito arranhada pela recente onda de intolerância, preconceitos de toda ordem e um patrulhamento ideológico inexplicável.

Biógrafos comemoram justamente, intelectuais celebram, juristas se dão as mãos e editores se lançam na disputa para trazer à luz biografias que andavam esquecidas nas gavetas. Sim, nesse período trevoso em que qualquer juiz tinha nas mãos a caneta para decretar a censura e o recolhimento de uma obra, editoras e escritores se retraíram, e muitos preferiram optar pela autocensura, comportamento típico dos anos de chumbo da ditatura militar.

É emblemática, portanto, a disputa que já se dá pela publicação do livro Roberto Carlos em Detalhes, cuja proibição foi o estopim do movimento entre intelectuais para derrubar os dois artigos do Código Penal, herança da era FHC, que dava margens a interpretações equivocadas de juízes. Paulo Cesar de Araújo, o autor, há que se registrar, esperneou, protestou e participou ativamente durante todas as fases dessa batalha contra a obscuridade.

Não foi, por certo, a primeira vítima. Outros casos escabrosos, e sempre devidamente lembrados – como as biografias de Garrincha, Carmen Miranda e mesmo Guimarães Rosa –, sofreram, antes, na pele. Eu mesmo publiquei, como editor, em 1998, às vésperas da Copa da França, uma biografia sobre Ronaldo (que ainda não era o Fenômeno), em seus tempos de bom menino, que acabou censurada, a pedido dos empresários dele e da família, e recolhida das livrarias. Levei dez anos para ganhar o processo na Justiça – mas aí Inês já era morta…


Oxigênio vital

Essa vitória recente da luz contra o obscurantismo percorreu caminhos tortuosos até chegar aqui. Vale a pena recordá-los, e por uma só razão. Isso porque, ao mesmo tempo em que há motivos de sobra para comemorar, vem igualmente à tona um aspecto preocupante demais para a democracia que precisa ser levantado e urgentemente debatido. O episódio escancara o processo de esvaziamento, e mesmo esfacelamento, do Poder Político e sua inapetência para se envolver e enfrentar questões que realmente importam à Nação.

Só, dessa vez, o Congresso passou recibo.

Em duas ocasiões, Câmara e Senado tiveram em suas mãos a oportunidade de corrigir a distorção jurídica e não o fizeram. No primeiro semestre de 2007, quando houve a proibição da biografia de Roberto Carlos, fiz um debate intenso entre especialistas e internautas no meu blog – o Blog do Galeno, voltado para as questões em torno do livro, leitura, literatura e bibliotecas – e dali saiu o anteprojeto de lei, a chamada Lei das Biografias, que o então deputado federal Antônio Palocci (PT-SP) se dispôs a apresentar e a defender em Brasília.

A matéria andou, mas acabou atolada na Comissão de Justiça e Constituição, onde três parlamentares – dois paulistas (um do PSDB e outro do PP, Paulo Maluf) e um nordestino, do clã dos Maia – brecaram a iniciativa, por considerá-la um “absurdo”. Com o arquivamento da matéria com o fim do mandato de Palocci, pedi ao deputado Newton Lima (PT-SP), ex-reitor da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), e ele a defendeu com gosto e dedicação. Foi esse novo texto que chegou para ser apreciado pelo Senado, porém maculado por uma emenda do deputado goiano Ronaldo Caiado (DEM), que tornou, literalmente, a emenda muito pior que o soneto. Se aprovada, institucionalizaria o ritual de censura pós-publicação das obras.

O Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL) percebeu a pusilanimidade do Congresso e criou uma associação específica só para patrocinar a ação judicial. Dessa vez, a Justiça pode até ter tardado, mas não falhou. O mico ficou nas mãos do Poder Político, o que certamente rendeu risinhos de maldade e satisfação entre aqueles que buscam demonizar e criminalizar a atividade política.

Isso é muito ruim e preocupante para a democracia, que depende do oxigênio da atividade política dos seus cidadãos para sobreviver. O vácuo deixado pelo Parlamento que transferira, há mais tempo, a prerrogativa de legislar para o Executivo e, de tempos para cá, para o Judiciário. A pauta equivocada e conservadora atual do Congresso só faz piorar esse quadro e a insatisfação da sociedade diante dos políticos e da política. Talvez esse fundo do poço venha a ser a parteira de uma nova história…


domingo, 14 de junho de 2015

Inferno social


foto pescada de Hugo Pontes, no feicebuque, com o comentário
"um pouco sobre o tal sistema que pretende 'ressocializar' os jovens".
Todas as promessas do nosso sistema social, no que diz respeito às suas funções básicas constitucionais, são falsas.

O sistema prisional é produtor de monstros - destruídos em sua sensibilidade humana -, que irão infernizar a sociedade e bater de frente com monstros - destruídos em sua sensibilidade humana - produzidos pelas forças de segurança do Estado.

Constróem-se mais cadeias pra "conter a criminalidade", mas não se procura a fonte, a origem de tanta criminalidade. Na miséria, na pobreza, na exploração extrema do trabalho com salários insuficientes, não se fala, não se pensa, não se percebe, "vai pra Cuba", dizem os idiotas prisioneiros dos seus condomínios e das suas bolhas, apavorados com o mundo "lá fora".

As causas são fáceis demais de se ver, como seria fácil demais resolver. Se os artigos constitucionais fossem prioridade, apenas isso resolveria. Há condições, tecnologia, transportes, conhecimentos, produção, grana - relativamente pouca - pra acabar com miséria, ignorância, alienação, desatendimento, abandono, pra acabar com essas vergonhas na sociedade.

A principal falta que o povo tem é de respeito. Se o Estado respeitar o povo, a sociedade se harmoniza, supera essas situações primárias que nos prendem ao passado e não nos deixam seguir adiante. Mas seqüestrado como está pelos poderes econômicos, o Estado viola sua lei hipocritamente chamada "máxima", sua constituição, rouba direitos da população pra gerar privilégios pra uma minoriazinha insignificante no contexto social. Encastelados no topo do poder, controlando dali todo o funcionamento da estrutura, com a cumplicidade das marionetes políticas, de altos cargos na "república", de administradores, legisladores, juristas, régiamente pagos, ou propinados, esses vampiros da humanidade espremem o sangue dos povos.

A guerra das empresas contra os povos será ganha pelas empresas enquanto as populações não tomarem consciência de que são enganadas, ignorantizadas, alienadas e condicionadas a comportamentos e valores que constróem e mantêm a estrutura social. Não é à toa que o ensino é inexistente pras camadas mais pobres e enquadrador e violento pras outras camadas. Não é à toa que as comunicações são dominadas por empresas privadas. Não é à toa que se vê o mundo como uma arena competitiva onde é cada um por si e é preciso vencer a qualquer custo. É mentira em cima de mentira pra manter o mundo como é. Muitos sentem culpa por não se adequarem a um mundo inadequável, pensam que têm alguma coisa errada, ou a menos. Faz parte das induções.

Agora investe-se em cadeias. Leitura evidente, sem comentários. A idéia genial é privatizar o sistema prisional, que beleza, haverá incentivos às prisões, planos de metas, prêmios por quantidade de presos, juízes implacáveis ganharão cruzeiros marítimos com suas famílias a cada fim de ano. Cada preso vale uma grana e, de quebra, pode-se alugar o trabalho escravo. O inferno social resultante não afetará os que decidem, em suas fortalezas guardadas por empresas de segurança, seus carros blindados, jatos e ilhas.

Dá uma olhada de novo na foto. Essas são as salas de aula do inferno social.