sábado, 26 de maio de 2012

Poema sobre o desastre de Lisboa


Ó infelizes mortais, ó terra deplorável.
Ó ajuntamento assustador de seres humanos! Eterna diversão de inúteis dores!
Filósofos alienados que proclamam: — tudo vai bem. Venham contemplar essas ruínas horrendas, esses destroços, esses farrapos, essas cinzas malditas, essas mulheres e essas crianças amontoadas sob mármores partidos, seus membros espalhados.
Cem mil desafortunados que a terra devora, que sangrando, dilacerados, e ainda palpitando, enterrados sob seus tetos, sucumbem sem socorro, no horror de tormentas findando seus dias!
Diante dos gritos de suas vozes moribundas, do horror de suas cinzas ainda crepitantes, vocês dirão: é a consequência de leis eternas que um Deus livre e bom resolveu aplicar?!
Vocês dirão, vendo esse amontoado de vítimas: Deus vingou-se, e a morte deles é o preço de seus crimes?!
Que crime, que falta cometeram essas crianças esmagadas e sangrentas sobre o seio materno? Lisboa, que não mais existe, teria mais vícios que Londres, que Paris, submersas em delícias?
Lisboa está destruída e dança-se em Paris.
Espectadores tranquilos, intrépidos espíritos, contemplando a desgraça desses moribundos, vocês procuram  — em paz — as causas do desastre: Tudo vai bem — dizem vocês — e tudo é necessário.
Por acaso o universo, sem esse abismo infernal, sem submergir Lisboa, estava sendo pior?
Voltaire

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Quando tudo acaba


Olhou-a com um gosto de trovoada na boca. Queria desviar o foco, mas só o que conseguiu foi encolerizar. Queria se desvencilhar de qualquer tipo de conversa, mas o som da voz alheia o atraia de forma sagaz, quase como chuva de verão. Queria fugir, mas para quê? Não adiantava mais.
Foi quando verbalizou e todo o ar ficou morno e paradoxalmente invernal. Cuspiu toda a vontade de louvar e lavar de muitos anos, toda a nicotina tragada, toda a resistência do tempo e do amor; foi como estivesse se livrando de chagas espalhadas pelo corpo, como ulceras. Verbalizou até o improvável, o piano de deus tocando uma incerta sinfonia demoníaca.
Quando acabou, tudo havia acabado. Quando acabou, seu peito ainda marcava as batidas intensas do seu coração. E tudo tremia, pulsava, chovia e acabava. Quando acabou, parecia que havia sofrido um parto. Quando acabou, seus músculos recusaram-se a enrijecer novamente e ficaram todos largos, desafinados. E foi dando um sono inconfessável. O outro corpo, e não era mais do que isso, queria, ainda, gritar, estremecer, mas a serenidade do seu coração estava em um estado de completa sinceridade e certeza; não podia mais aumentar a voz, não fazia mais sentido algum.
Quando acabou, tudo acabou. Simplesmente.