domingo, 31 de agosto de 2008

Pretensão

Eu queria escrever um texto bonito . Por si mesmo. Um texto sem conflito latente,um texto competente . Um texto sofisticadamente simples e atraente .Um texto despudoradamente feliz.Um texto sem o rito dos poetas , sem o desvario dos apaixonados.Um texto de sexta-feira alforriada sem o pó das argamassas.Queria escrever um texto sem hora marcada , sem beira nem mote sem eira nem rima. Um texto sem lembranças ou reentrâncias . Um texto que não ultrapassasse o presente nem fincasse os pés no futuro . Um texto que não mandasse recados , não ditasse valores ou ensinasse conceitos.Um texto que tirasse o norte do pombo correio , que fosse o "cuidado, cão bravo" do carteiro.Um texto maneiro.Um texto cuja beleza mantivessem despidas as intenções e nuas as divagações.Que nada escondesse quando acenasse às claras.Um texto onde a vaidade estivesse de folga e o tédio no descompasso da emoção.Que sem ser tolo fosse verdadeiro , sem ser invasivo mostrasse ousadia . Queria escrever um texto sem vícios,carências ou frustrações. Um texto que de tão sucinto não deixasse saudade. Um texto de coragem guardiã, feminina , garrida , curvilínea .Que transformasse medo em proteção , raiva em atitude, mentira em desperdício, vontade em movimento. Que desafiasse idiomas , sotaques e divisas. Um texto de fé sem pieguice e que não (se ) traísse.Um texto sério. Um texto que provocasse riso nas mazelas . Um texto quase sem explicação.
.

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

.De segunda à sexta
a procissão segue no subsolo de Venda Nova
Tudo é substituído:Os andores e velas por carteiras e papéis
As rezas e ladainhas por lamentações
Oras andam, sentam, seguem
Semblantes carregados os levam
Não são seres, são investimentos.
Pobres, jovens e velhos
Crianças correm pelas linhas amarelas
Homens e mulheres
Eles andam, encostam, sentam
Quando chegam ao final
buscam fundos, seguros, bolsas, programas
E quando saem com as misérias nas mãos
Sob o sol, miseráveis outros os espreitam
Em busca dos míseros direitos.
.
Vais
.
.
A JORGE GUINLE FILHO
em memória
Tanussi Cardoso
[ in Viagem em torno de, 2000 ]
.
O que acontecerá aos céus
quando se morre um artista?
Que silêncios, que gritos
Que deuses riscam os ventos
quando se morre um artista?
O que dizer aos filhos
Aos pássaros, ao poema
quando se morre um artista?
Que pintura tão linda
Que natureza tão vil
Que fala tão amarga
quando se morre um artista?
Noiteluzsomdiapasãoharmoniavendavalfuracão?
O que sobra da vida
quando se morre um artista?
.
Publicado por Moacy Cirne

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Guerra Quente

Até a queda do Muro de Berlim, vivíamos a proverbial Guerra Fria, que opunha os Estados Unidos e seus aliados no “mundo livre” (existe isso?) ao bloco comunista (que de livre não tinha nem a semântica). Livre ou não, o fim do mundo estava ao alcance de dois ou três botões de acionamento. Mas contava-se com a salvaguarda do chamado “poder de dissuasão” das bombas nucleares. Traduzindo: numa guerra entre duas potências atômicas o mundo acabaria, ou quase. Como ninguém teria peito de apertar o botão, ficaríamos em paz, e Hiroshima nunca mais.
Pois bem, caiu o muro, o capitalismo imperou, a globalização chegou a trator e, na ausência de um arquiinimigo explícito, os Estados Unidos, com a ajuda da Arábia Saudita, do Irã, da Síria e do Afeganistão, elegeram o terrorismo islâmico para encarnar o demônio. E avisaram: quem não entrar nessa guerra do lado certo vai direto para o Eixo do Mal e fica sujeito a levar porrada sem aviso prévio. Se necessário, em pleno desrespeito às convenções internacionais, flagrante afronta às liberdades civis consagradas pela democracia americana e completo desdém face à ONU.
A doutrina Bush verbalizava algo que, na prática, já vinha acontecendo quase desde a sua fundação: a ONU nunca apitou de fato, jamais foi democrática em suas deliberações, só foi respeitada quando isso era conveniente para os interesses nacionais predominantes e espelhou mais subserviência que independência. Para ficar no recente passado pré-Bush, Clinton, o democrata, o querido, tão pop e tão culto, deu bananas à ONU e cansou de bombardear países unilateralmente, casos de Líbia e Sudão.
Muito bem, ultrapassado o ápice da guerra contra o terrorismo (que os EUA começaram a perder ao invadir o Iraque), chegamos, enfim, à era da Guerra Quente, espécie de volta autorizada à barbárie mais fundamental e primitiva: o advento da Doutrina Bush começa a fazer escola, principalmente entre os que têm ou almejam ainda poderio atômico. Bush criou um forte precedente na realpolitik do direito internacional. Quase um passe livre para as Nações fazerem suas guerras sem dar a mínima bola para a tal comunidade internacional ou para a anuência da ONU.
Globalização, portanto, só vale para as relações econômicas (se é que vale, visto o fracasso em Doha). Quando se trata fazer guerra, cada nação — EUA, China, Rússia, e quem quiser, quem vier — resolve seus pepinos como nos bons tempos e assume todos os riscos. Uma espécie de redemocratização do unilateralismo.
Soaram ridículas, aliás, as declarações de Condoleezza Rice ao advertir o Kremlin sobre os ataques à Geórgia: “Não estamos mais em 1968, quando se podia invadir um país europeu e ficar impune”. Palavras que são a própria negação da Doutrina Bush e omitem o papel dos EUA nesta nova “anarquia” diplomática. E incrivelmente cínicas: se “não se pode invadir um país europeu”, que países, então, se pode invadir? Resposta: países irados não-portadores de bomba, como Irã e Venezuela, ou países comportados que pingarem fora do penico da nova ordem. O Brasil, por exemplo, se vacilar nos seus alinhamentos diplomáticos, ou qualquer outro país.
Por outro lado, em conversas recentes sobre os ataques à Geórgia, ouvi muito dizer que a Rússia tem toda razão, pois “foram os georgianos que começaram”. Esse tipo de pseudo-razão vai bem com a dinâmica da Guerra Quente: se as potências podem reabrir questões do passado, vamos todos botar pra quebrar, separatistas de toda ordem, índios donos verdadeiros da terra, e dane-se o status internacional. Para que olhar adiante se a gente pode remexer eternamente o caldo do ódio? Para que negociar quando se pode atacar e vender mais e mais armas?
Desarmamento nuclear? Muito pelo contrário: o mercado paralelo de mísseis “velhos” já assombra o imaginário do planeta, assinalando para um futuro em que a hecatombe não mais dependa de meia dúzia de possíveis acionamentos de botão, mas de dezenas e até centenas de cérebros em ebulição com os dedos trêmulos e muito crack, vodca, bourbon ou até um bordeaux honesto na cabeça.
Há quem torça para que a chegada de Obama (se chegar) mude esses ventos radicalmente: Obama seria um antibush capaz de fixar a biruta do mundo numa direção segura, um vetor de maior convergência, uma aposta ousada, crença de que estamos todos no Eixo do Bem. E de que o Eixo do Mal está em todos nós, à espera de ser expurgado coletivamente.
A História às vezes dá mesmo uns trancos. A queda do Muro de Berlim, por exemplo, provocou incredulidade geral. Coincidentemente, a visita de Obama à Berlim hoje unificada gerou imagens que fazem sonhar com uma multidão planetária rumando pela estrada da Paz, comemorando a queda do Muro de Bush.
Mas as coisas não são tão simples assim. Nem a queda do Muro de Berlim trouxe a Paz nem o fim da Era Bush é a salvação da lavoura. Num mundo de imagens fortes e comunicação cada vez mais simbólica é preciso lembrar que a natureza humana ainda é a mesma e a realidade, longe dos monitores, é chapa quente, na Rocinha ou na Geórgia.
.
O Globo, 16 de agosto, Segundo Caderno

sábado, 16 de agosto de 2008

É muito óleo 'Rice'

Notícias de Terra Brasilis é sempre comentada por um enorme número de 0,1% da população, pois o resto anda muito ocupada em não passar fome. Mesmo assim, vamos a elas:
Finalmente, mesmo a contragosto de muitos que lá estão, descobriu-se o que é óbvio e ulula: o senhor Álvaro Lins é corrupto, patotinha e não tem como comprovar o patrimônio conquistado. Foi cassado e está foragido. O engraçado disso tudo é que, se a nossa (e verdadeira) Polícia Federal o encontrar e, por um lapso de memória, algemá-lo, corre o sério risco de ver tal figura se livrar da cadeia, pois, como todos já sabem, algemas só são permitidas em pulso de pobre, de suburbano e/ou de negro. Todos já sabiam, mas só agora resolveram tornar público e legal a garantia exclusiva dos que roubam muito. É isso aí! Palmas ao nosso judiciário! Aliás, será que o presidente da OAB de São Paulo não gostaria de se manifestar?
Depois do “Cansei”, vem aí o próximo movimento comprometido com o social: “Cansei de algemas no meu próximo”.
Enquanto isso, Marta, em Sampa, e Marcelo, no Rio, lideram as pesquisas de opinião. Opinião? Enfim. Se tudo der certo (desculpa, se tudo der errado!) e Marta ganhar essa eleição, teremos um imenso orgasmo toda vez que o PCC assumir a cidade, tornando-a inviável ao cidadão de bem. Marta, como todos sabem, relaxa e goza por demais...
Marcelo, por sua vez, entregará a Deus o que é de César e a César o que é de Deus, nas bênçãos cativas do tio Edir, o redentor. E meu Rio de Janeiro continua lindo...
E só para não dizer que é só no Brasil que acontecem coisas de outro país: vocês viram o ultimato do Bush na Rússia? Eu não consegui acreditar no que estava lendo, talvez alguém consiga explicar com mais claridade o que faz um presidente assassino repreendendo um presidente assassino. É muito óleo Rice passado na cara!
Fico por aqui, mas volto porque sou teimoso, ingênuo e porque acho que os 0,1% deveriam parar de saber apenas, agindo mais.

sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Afro-descendente com orgulho!

NEI LOPES
O Globo (Opinião - 31/07/2008)
.
Escrevemos este texto sob o impacto, profundamente negativo, do artigo “Visita à terra dos negros”, publicado nesta página, no último dia 24 de julho. E o fazemos para demonstrar, em poucas linhas, que, se o indivíduo afro-brasileiro e o brasileiro em geral conhecessem um pouquinho de História da África e da afro-descendência, no Brasil e no mundo, ninguém se surpreenderia ou se horrorizaria ao visitar a África de hoje, notadamente aquela parte do continente mais atingida pelo genocídio iniciado com a chegada dos europeus no século XV.
Quem se dispuser a conhecer um pouco dessa tragédia saberá que a mesma Humanidade que, hoje, justificadamente, se extasia diante de um Michelangelo, também há de se tocar com a beleza naturalista dos bronzes de Ifé e Benin, obras de autores africanos cujos nomes, infelizmente, a História não registrou — talvez como recurso para atribuir a extrema beleza dessas obras a artistas europeus, como já se tentou fazer sem sucesso. Como compreenderá também, por mero exemplo, a grandeza artística dos negros spirituals, canções que, segundo a melhor musicologia, produzem seu indescritível efeito pelo emprego de uma escala (pentatônica) completamente diversa das convencionais seqüências de tons maiores e menores da música ocidental, e desconhecida na Europa até pelo menos o século XIX.
Da mesma forma, quem, em busca de conhecimento, for além do que hoje, no Brasil, oferecem as universidades e as listas de best-sellers, vai saber que, bem antes de Alexandre, no século XV a.C., o negro Tutmés III, príncipe núbio (filho bastardo que Tutmés II levou para a corte faraônica), quando no poder, estendeu seus domínios até a Ásia, inaugurando a era do imperialismo egípcio. Com ele, o Estado egípcio atingiu o maior momento de sua expansão territorial, subjugando povos e reinos até a Mesopotâmia, chegando, mesmo, à Europa mediterrânea. Assim, até as vésperas de sua morte, todos os reinos das margens do Eufrates à quarta catarata do Nilo, eram seus tributários. Cerca de 700 anos após esse Tutmés, uma dinastia de reis núbios, negros portanto, tomou o Egito, governando-o por cerca de 90 anos. Esse período se inicia com o faraó Piye-Piankhi, o qual, liderando uma revolução nas artes de na cultura e, após unir as civilizações do Vale do Nilo, restaurou templos e monumentos, transferindo a capital de Tebas para Napata, no atual Sudão. Noutra dimensão histórica e geográfica, vamos ver que, antes de Cristóvão Colombo, Abubakar II, imperador do Mali, adentrou o Atlântico com cerca de duzentas embarcações de pesca e chegou ao México atual, por volta de 1312.
Na mesma medida, é preciso mostrar que a ciência que pauta seu saber pelos ensinamentos de Platão, discípulo do egípcio Chonoupis; de Sócrates, que estudou na cidade egípcia de Busíris; e de Aristóteles (“os que são excessivamente negros são covardes e isso se aplica aos egípcios e etíopes”, disse ele) ou mesmo pelos ensinamentos do Eclesiastes bíblico, igualmente inspirado na filosofia kemética (do antigo Egito); essa ciência talvez também pudesse guiar-se, acaso a conhecesse, pela visão de mundo contida no conjunto de muitos milhares de parábolas enfeixadas no corpo de ensinamentos do oráculo iorubano de Ifá. E mais: os que ainda acreditam que Hipócrates foi o “pai da medicina” certamente nunca ouviram falar no egípcio Imhotep. Como os admiradores de Napoleão seguramente nunca souberam do zulu Chaka, o comandante africano mais temido pelo imperialismo europeu no século XIX, por força de inovações, estratégias e armamentos que criou, até sua morte em 1828. Da mesma forma que até mesmo os cristãos mais esclarecidos certamente não sabem que o orixá Ogum é venerado, na África e nas Américas, por ser a divindade da tecnologia (que ensinou os homens a domarem o ferro), dos negócios militares, do trabalho e, conseqüentemente, da prosperidade e da saúde.
Finalizando este texto, sob a inspiração de W.E.B. Dubois, André Rebouças, Abdias do Nascimento, Milton Santos, e outros não menos, perguntamos: o que seria da música popular que se consome hoje em escala planetária se não fosse a arte musical criada pelos afro-descendentes nos Estados Unidos, no Caribe e no Brasil?
É por tudo isso que não nos consideramos “brasileiro negro” nem “negro brasileiro”. Somos, sim, com muito orgulho da ancestralidade que cultuamos, um afro-descendente, integrante de uma maioria etnocultural num país em que, por razões que muita gente esclarecida ignora ou finge ignorar, uma parcela minoritária da população detém o poder político e econômico e manipula o conhecimento, desde sempre. E a essa minoria é mais conveniente ensinar aos jovens, nas escolas, que a proposta de se estudar a África, “terra dos negros”, é uma “declaração de ignorância”.
.
NEI LOPES é compositor.