Até a queda do Muro de Berlim, vivíamos a proverbial Guerra Fria, que opunha os Estados Unidos e seus aliados no “mundo livre” (existe isso?) ao bloco comunista (que de livre não tinha nem a semântica). Livre ou não, o fim do mundo estava ao alcance de dois ou três botões de acionamento. Mas contava-se com a salvaguarda do chamado “poder de dissuasão” das bombas nucleares. Traduzindo: numa guerra entre duas potências atômicas o mundo acabaria, ou quase. Como ninguém teria peito de apertar o botão, ficaríamos em paz, e Hiroshima nunca mais.
Pois bem, caiu o muro, o capitalismo imperou, a globalização chegou a trator e, na ausência de um arquiinimigo explícito, os Estados Unidos, com a ajuda da Arábia Saudita, do Irã, da Síria e do Afeganistão, elegeram o terrorismo islâmico para encarnar o demônio. E avisaram: quem não entrar nessa guerra do lado certo vai direto para o Eixo do Mal e fica sujeito a levar porrada sem aviso prévio. Se necessário, em pleno desrespeito às convenções internacionais, flagrante afronta às liberdades civis consagradas pela democracia americana e completo desdém face à ONU.
A doutrina Bush verbalizava algo que, na prática, já vinha acontecendo quase desde a sua fundação: a ONU nunca apitou de fato, jamais foi democrática em suas deliberações, só foi respeitada quando isso era conveniente para os interesses nacionais predominantes e espelhou mais subserviência que independência. Para ficar no recente passado pré-Bush, Clinton, o democrata, o querido, tão pop e tão culto, deu bananas à ONU e cansou de bombardear países unilateralmente, casos de Líbia e Sudão.
Muito bem, ultrapassado o ápice da guerra contra o terrorismo (que os EUA começaram a perder ao invadir o Iraque), chegamos, enfim, à era da Guerra Quente, espécie de volta autorizada à barbárie mais fundamental e primitiva: o advento da Doutrina Bush começa a fazer escola, principalmente entre os que têm ou almejam ainda poderio atômico. Bush criou um forte precedente na realpolitik do direito internacional. Quase um passe livre para as Nações fazerem suas guerras sem dar a mínima bola para a tal comunidade internacional ou para a anuência da ONU.
Globalização, portanto, só vale para as relações econômicas (se é que vale, visto o fracasso em Doha). Quando se trata fazer guerra, cada nação — EUA, China, Rússia, e quem quiser, quem vier — resolve seus pepinos como nos bons tempos e assume todos os riscos. Uma espécie de redemocratização do unilateralismo.
Soaram ridículas, aliás, as declarações de Condoleezza Rice ao advertir o Kremlin sobre os ataques à Geórgia: “Não estamos mais em 1968, quando se podia invadir um país europeu e ficar impune”. Palavras que são a própria negação da Doutrina Bush e omitem o papel dos EUA nesta nova “anarquia” diplomática. E incrivelmente cínicas: se “não se pode invadir um país europeu”, que países, então, se pode invadir? Resposta: países irados não-portadores de bomba, como Irã e Venezuela, ou países comportados que pingarem fora do penico da nova ordem. O Brasil, por exemplo, se vacilar nos seus alinhamentos diplomáticos, ou qualquer outro país.
Por outro lado, em conversas recentes sobre os ataques à Geórgia, ouvi muito dizer que a Rússia tem toda razão, pois “foram os georgianos que começaram”. Esse tipo de pseudo-razão vai bem com a dinâmica da Guerra Quente: se as potências podem reabrir questões do passado, vamos todos botar pra quebrar, separatistas de toda ordem, índios donos verdadeiros da terra, e dane-se o status internacional. Para que olhar adiante se a gente pode remexer eternamente o caldo do ódio? Para que negociar quando se pode atacar e vender mais e mais armas?
Desarmamento nuclear? Muito pelo contrário: o mercado paralelo de mísseis “velhos” já assombra o imaginário do planeta, assinalando para um futuro em que a hecatombe não mais dependa de meia dúzia de possíveis acionamentos de botão, mas de dezenas e até centenas de cérebros em ebulição com os dedos trêmulos e muito crack, vodca, bourbon ou até um bordeaux honesto na cabeça.
Há quem torça para que a chegada de Obama (se chegar) mude esses ventos radicalmente: Obama seria um antibush capaz de fixar a biruta do mundo numa direção segura, um vetor de maior convergência, uma aposta ousada, crença de que estamos todos no Eixo do Bem. E de que o Eixo do Mal está em todos nós, à espera de ser expurgado coletivamente.
A História às vezes dá mesmo uns trancos. A queda do Muro de Berlim, por exemplo, provocou incredulidade geral. Coincidentemente, a visita de Obama à Berlim hoje unificada gerou imagens que fazem sonhar com uma multidão planetária rumando pela estrada da Paz, comemorando a queda do Muro de Bush.
Mas as coisas não são tão simples assim. Nem a queda do Muro de Berlim trouxe a Paz nem o fim da Era Bush é a salvação da lavoura. Num mundo de imagens fortes e comunicação cada vez mais simbólica é preciso lembrar que a natureza humana ainda é a mesma e a realidade, longe dos monitores, é chapa quente, na Rocinha ou na Geórgia.
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O Globo, 16 de agosto, Segundo Caderno