terça-feira, 31 de maio de 2011

A quem interessa o juro?


Chega de hipocrisia! Quando volta e meia, surge na mídia (sinhá-mídia, como gosta o Pirata - cadê você?) um novo trailer sobre o filme: Inflação, o retorno – uma penca de economistas (às vezes nem o são) de plantão televisivo (adiciona-se aí a Sra. Leitão) e políticos hidrofóbicos ululam favoráveis ao aumento da taxa de juros, como única e salvadora forma de conter a sanha consumista. Será (a única) verdade?

Quem me lê, já desconfia que não.

Primeiro, vamos entender como funciona o mecanismo do aumento e redução dos juros.

O juro não aumenta ao bel prazer do governo. O juro é determinado pelo mercado, visto que podemos traduzi-lo como o “preço do dinheiro”, ou seja, só existe juro se existir empréstimo, assim, o juro é o “aluguel” do dinheiro, dado pelo poupador ao tomador, intermediado pelos bancos. O problema (ou solução, dependendo do ponto de vista), é que o poupador recebe 1%, o tomador paga 10% e o banco fica com a diferença de 9%, a qual chama singelamente de spread.

Seja no Brasil ou qualquer lugar do mundo, a taxa de juros média, dependerá se existem mais poupadores ou tomadores no mercado.

Vamos ao nosso caso: No Brasil, existem mais tomadores, sendo o Governo um grande cliente, assim, quando ouvimos na televisão sobre SELIC, a mesma não é determinada pelo Governo, o mesmo apenas aponta o quanto (de juro) está sendo praticado no mercado interbancário. E o que é este mercado interbancário? Diariamente, os bancos são obrigados (pelo BACEN) a fechar suas posições zeradas (para frear a alavancagem), assim, uns emprestam aos outros todo santo dia. Tudo bem, a coisa é mais complexa, mas isso aqui é um post e não uma aula de economia...

Segundo, quem ganha e quem perde com o juro alto? Se a taxa de juros é um mau negócio para a maioria que vive da produção (empresários e trabalhadores), por outro lado, ela é um excelente negócio para aqueles que vivem da especulação. O aumento da taxa de juros se traduz em transferir riquezas dos que produzem para os que atuam nos mercados financeiros.

Esta defesa do aumento da taxa de juros, se a mesma acaba não se realizando (nos percentuais que a especulação sonha), acaba ao menos, dando para realizar alguns trocados, seja numa arbitragem de câmbio ou movimento de bolsa de valores, após uma notícia especulativa ou diria até mesmo terrorista.

Qual seria o estágio final de uma expansão (a qual o aumento do juro tentaria frear)? Uma retração! Nada é mais certo, que ao fim de um período de expansão, haverá uma contração na economia, sempre foi assim, não?

Quase concluindo com as palavras de Keynes em TGEJM (p.250): “(...) a elevação da taxa de juros como antídoto para a situação (...) pertence à categoria dos remédios que curam a doença matando o paciente.”

Desta forma, se o perigo é o pico, ou o boom, deve-se tentar manter a economia (a produção, o consumo e tudo que orbita na mesma) numa situação de “quasi-boom” (p.249). Sei que seu carro pode chegar a 200km/h, mas se basta 120km/h para concluir a viagem, por que fundir o motor? Ou como diriam alguns banqueiros na crise mexicana de 95: “Não é a velocidade que mata, mas sim a freada brusca.”

Mas como não aumentar o juro, se como dito, ele obedece à lei da oferta e procura (uma lei tão poderosa quanto à gravidade) e o Governo talvez seja o maior responsável pelo lado da procura? Quase que austriacamente (ave Hayek e Von Mises!) seria óbvio recomendar contenção nos gastos deste e equilibrar suas receitas com suas despesas. Mas aí, quem seria o indutor do multiplicador de trabalho (ave Keynes!), responsável por nosso irrefutável crescimento e inexorável competência em enfrentar a última das crises financeiras mundiais?

Não existe resposta simples. Por fim, o post era apenas para expor a quem (muito) interessa o aumento dos juros...

sexta-feira, 27 de maio de 2011

O caso de Bastos, e a censura midiática, em três atos


Ato 1: Stand-Up Comedy Internacional

O Brasil, há poucos anos, comprou a arte do stand-up, onde o comediante não sobe ao palco para interpretar personagens, nem criar cenas cômicas, mas apenas discursar, como se estivesse conversando entre amigos, em um ambiente descontraído, sobre qualquer assunto, tornando-o engraçado se bem sucedido. Para mim, há três níveis de comediantes desse estilo: Os que falam de assuntos engraçados; os que se comportam de modo diferente (picuinha, excêntrico, depressivo etc); e aqueles que usam da ironia e do sarcasmo, falando de coisas sérias, e extráem disso o humor. O gênio – George Carlin, Lewis Black, Robin Williams, para o autor, entre outros –é aquele que engloba os três estilos em um.

Antes de voltar ao Brasil, façamos um breve percurso pela história recente do humor internacional. Os cartúns adultos ganharam asas nos anos noventa, com uma das séries mais longas da televisão, Os Simpsons. Outros países já usavam o humor ríspido, fugaz e violento que depois se acirrou com a chegada de Beavis and Butthead, logo South Park, e por fim Family Guy, American Dad e The Cleveland Show, entre outros. No Japão, por exemplo, o estilo dos curtas violentíssimos exibidos pela MTV em meados dos anos 2000, Happy-Tree-Friends, já era apreciado e venerado pela juventude. Todos esses desenhos tem em comum o fato de que “empurram o envelope”, ou seja, no Português mais claro, criam polêmica, e competem entre si para ver quem cria maiores polêmicas. Nem todas tem causa ou objetivo social ou politicamente viáveis, mas todos representam alguma ordem ou desordem sócio-política criticada por segmentos da sociedade.

Cena de The Family Guy – Dumpster Prom-Night Baby

O filme The Aristocrats reúne muitos dos melhores comediantes nos Estados Unidos para contar sua versão da piada mais suja do mundo*. Esse estilo, pois, de criar polêmicas, de sujar a boca, de perturbar os censores, é moda nos Estados Unidos desde antes da chegada de Richard Pryor, que usou o humor judaico de se auto-difamar e falar de seus piores fantasmas, com sucesso estrondoso, pela primeira vez. É costume desde que George Carlin criou a lista das palavras censuradas pelos censores da mídia colossal, e que percorre o caminho de criar a comédia de maior “mal-gosto” possível. Nesse percurso, os sustos, os gáses e outros componentes orgânicos fisiológicos como fonte de risos, e o estilo Jackass de se arrebentar para sacar risos, como fazemos com os bebês, perdem lugar e ganham outra audiência.

Casos que ocorreram em South Park, Family Guy etc, inclúem uma criança assassinando os pais da outra e dando de comer a seu rival escolar, ironização de abortos súbitos de meninas em noite de formatura do Ensino Primário intermediário, exploração de prostitutas, uso de drogas por crianças e adultos, abuso sexual e físico de crianças e adolescentes, e por aí vai e nem termina. Há quem goste, e há quem desgoste. Eu gosto. A maioria de meus amigos e parentes da mesma faixa etária gostam também. Outros, mais velhos e maduros, gostam. Conheço quem não goste, mas poucos, mesmo, que se ofendam pelo nível humorístico.**

Ato 2: Rafinha Bastos, do CQC, e o Stand-Up no Brasil

No Brasil, esse estilo é ainda infante e engatinha. Rafa Bastos, como seus comparsas de CQC, até fazem algumas performances engraçadas, mas é difícil adaptar o modelo e o estilo de humor, e não é possível empurrá-lo goela abaixo dos brasileiros. O que criou o fusuê nas últimas semanas foi uma de suas piadas em seu stand-up, falando de estupro de mulheres feias.

“Mulher feia não pode reclamar de estupro,” disse algo similar o Bastos, “ tem mais é que agradecer.”

Todos sabemos que há gente nesse mundo, na América Latina ou do Norte, na Europa, na Ásia, África e Oriente Médio, que pensa assim. Para compreender o mecanismo do stand-up, só uma nota: Se não houvesse gente que pensa assim, qual a ironia e, logo, qual a graça do comentário? Entretando, a ofensa de muitas comunidades foi imediata, e o causo pegou fogo nas redes sociais. Grupos, feministas ou não, já exigiram que Bastos se desculpasse. Outros debateram o direito dessa espécie de humor no Brasil. Outra nota: Mesmo que ostand-up seja escasso, aposto que há gente fazendo piada pior e não levando lenha, e mesmo se não houvesse, o Brasil tem acesso integral às séries estadunidenses acima mencionadas. Ainda assim, a ofensa foi geral e, comprou um, como fizeram com o metrô de Higienópolis, como fizeram com a comparação dos crimes de Dominique Strauss ao affair de Bill Clinton e Nicolas Sarkozi, compraram todos.

Lola Aronovitch também deu sua opinião, e o debate em seu blogue correu solto. Sim, há considerações e um debate sério na rede social, e em outras redes, eletrônicas ou não. Não haveria, contudo, se toda vez que alguém se ofendesse, procurasse a censura como solução do problema. No caso de Bastos, pixaram seu clube e compararam seus ditos aos atos, concretos, de um estuprador. Para muitos nas redes sociais, Bastos é, para todos os efeitos, um criminoso do ódio. Outros disseram que Bastos “atacou as vítimas de estupro”. Há ainda quem diga que em um país com tantos crimes dessa natureza depredável, esse tipo de piada não tem graça. Lembrete da nota acima: Não teria piada, logo graça, se não fosse tão comum.

Bastos falhou como humorista, ao meu ver. Falo sem ter visto o show na íntegra, mas conhecendo outras de suas apresentações, afirmo que falhou. A ironia mal contada parece uma opinião. Reconhecimento de plateia, e tato, são também essenciais para o funcionamento dessas apresentações. Ainda assim, interessante seria saber o que todos da plateia, em todas as suas divergentes percepções, entenderam desse trecho. Depois disso, criou-se a “lei do bando”, onde o grupo, geralmente majoritário, espanca os julgados criminosos em conjunto. Falando em democracia, é essa “lei do bando” a temida por Aristóteles, que preferia a aristocracia consciente à democracia inconsciente das necessidades de todos, e não só de grupos, grandes ou pequenos. Portanto, seja qual for a falha ou a falta de tato, hoje a percepção de sua “piada” está totalmente contaminada.

Ato 3: Protestos nos Anos 90, EUA

Há uma música bacana da banda Sublime, em que o vocalista, Bradley Nowell, narra sua participação (não sei se fictícia ou não) nos protestos dos anos 90, na Califórnia. Vale a pena ouvir e traduzir a letra para entender o caso. Foram protestos de cunho civil e social, em que as minorias, sentindo-se ignoradas pelos governos crescentemente corporativistas, especialmente os afro-descendentes, desorganizados e estimulados por casos isolados de violência, iniciaram dias de saqueamento de lojas e violência urbana quase sem precedentes na história moderna do país. Negros atacaram negros, lojas e estabelecimentos e casas de negros, e bairros vizinhos, salientando os bairros chineses, sofreram a inconsequência da raiva dos negros contra o “homem branco”. Quase nenhum estabelecimento branco, em realidade, foi atingido, visto que os bairros mais abastados estavam bem armados e preparados para iminentes invasões.

Não há nada de errado em se ofender por uma piada. Quando vocês, leitores, ouvem ou leem alguma piada, a escolha é sua se aceitam a ofensa da piada e do piadista, ou se riem dela. Há piadas, claro, e há propaganda política, racismo, anti-semitismo e sexismo disfarçado de humor. A diferença é, geralmente, sutil, e depende geralmente de todos os elos de comunicação: Do emissor da mensagem, do método de emissão, da forma de emissão e dos receptores, como recebem, onde recebem, quando recebem e quem recebe. Muitas vezes, o comentário “humorístico”, fora de contexto, torna-se, realmente, ataque social. Em outras, como no caso de Bolsonaro, também popular nas redes sociais, a opinião não deve ser confundida com a ironia.


Na imagem, o Clube da Comedia, onde Rafael Bastos se apresenta

Em todos os casos acima, recorrer à censura e à violência me parece inconcebível, e tão errado quanto qualquer outra espécie de censura e proibição social. Forçar Bastos a se desculpar e modelar seu humor de acordo com o gosto popular, mesmo majoritário, não é diferente, ao meu ver, do que fizeram as grandes gravadoras e organizações éticas e religiosas nos Estados Unidos (e em casos mais sérios, na Alemanha Nazista), que diluíram a essência étnica do rock and roll no fim dos anos cinquenta e início dos sessenta. Pixar o clube que hospedou a apresentação de Bastos é idêntico a negros saqueando negócios de negros em prol da causa negra.

Independente de Bastos, o humor irônico serve, na grande maioria dos casos, para expôr o absurdo do pensamento humano, e os absurdos políticos, sociais e culturais, incluindo “leis de bando”, que se perpetuam em nossas sociedades. Sem esse humor, todo assunto é potencialmente tabú, e quando um tema é tabú, mesmo que banal, limita o pensamento de uma dada civilização. Se Bastos é machista e estuprador, ou ao menos se apoia o estupro de mulheres feias, e assim disser seriamente em qualquer entrevista, ainda assim sua piada só serviu para alertar que pessoas como Bastos existem. Eu não acredito, e assumo essa responsabilidade, que isso seja remotamente coincidente ao caso. Bastos é um humorista. Se bom ou mal, é questão do mercado do humor. Se seguem indo a seus shows, ele é eleito, novamente, comediante, como Bolsonaro, que censurado jamais exporia seu racismo e homofobia, e que, ao invés da censura, deveria ser derrotada em eleição.

O Brasil sofre com a censura midiática direta e indireta como sofrem muitos outros países, desenvolvidos e em desenvolvimento. Quando o jornalista torna-se quase sempre o culpado, quase sempre sem “juízo justo”, em cortes federais, municipais e civis, e assim qualquer outro macaco de mídia, e a censura é quase sempre a solução, de Sarneys a feministas, é mais fácil conceber a censura em primeiro lugar sempre. Talvez, em um país mais livre, apresentar material satirizando Bastos, e simplesmente deixar de comprar seu produto, seria mais inteligente e eficiente. Tenho dúvidas quanto ao Brasil. Dúvidas , creio eu, que em um país que quer mover-se em direção aos direitos humanos e à evolução cultural, que deve cessar a cultura da censura imediatamente, são cruéis e perfidiosas.

R.Frenkiel.


NDA: Caso acreditasse, ou venha a acreditar, que Bastos incitou o estupro a mulheres feias, pediria que desconsiderassem qualquer defesa a Bastos desse texto em meu nome. Não acredito. Abráx.

*É uma piada da época dourada pré-Broadway de Vaudeville, em que uma família se apresenta a um agente de talentos e produtor teatral contando que tem um ato brilhante que precisa ser produzido. O agente então pede que lhe mostrem, e a família, variando de acordo com quem conta a piada, faz as coisas mais bizarras e vulgares possíveis, desde incesto a bestialidade e abuso sexual de menores e, no fim, perante o agente chocado, que ainda consegue perguntar, “e o ato, como chamam?” respondem, “Os Aristocratas”.

**Aqui vale lembrar que quem expandiu esse humor nos EUA foram os sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Entre estes, meu avô, era um dos maiores e melhores piadistas de holocausto que já conheci e, eu, particularmente, ria muito de suas sacadas geniais sobre um dos episódios mais violentos da história contemporânea.

sexta-feira, 20 de maio de 2011

GUEST POST: OS LIVRO ENSINA, NÓIS APRENDE

Por: LOLA ARONOVICH


Tadinho do aluno que tiver que escolher entre certo e errado na língua

Apesar de não acompanhar as polêmicas vazias que a mídia costuma criar, eu me dei conta da dimensão do novo “escândalo” quando, na aula de quarta, uma aluna emendou sua revolta com o Bolsa Família com sua mais profunda indignação ao governo querer que a escola ensine o aluno a falar errado! Perguntei o que é errado, e do ponto de vista de quem algo é errado, e se competêncialinguística não seria justamente se comunicar de forma diferente em diferentes contextos. Fiquei preocupada que meus alunos de Letras nunca tinham ouvido falar em Preconceito Linguístico, do Marcos Bagno, mas talvez eles só não tenham entendido a referência no calor da discussão. Espero.
Este “escândalo” todo é
um bom modelo de como a gente não deve aceitar as “verdades” da mídia sem refletir, sem pensar, sem correr atrás de informação. Porque o livro do MEC que os reaças parecem querer queimar na fogueira não fala nada dissoque dizem que ele disse. No YouTube há um exemplo brilhante do que acontece quando uma jornalista chama especialistas pra uma entrevista e eles se recusam a repetir as besteiras previamente estabelecidas pela mídia (veja a Monica Waldvogel sugerindo, injuriada, se não discriminar um aluno que fala “errado” não equivale a confundi-lo).
Bom, eu quis chamar alguém muito mais gabaritado do que eu pra discutir o assunto, e portanto pedi pro Diego Jiquilin, umfofo que conheci (ainda não pessoalmente) pelo Twitter, pra escrever um guest post. E ele atendeu prontamente. Diego tem um excelente blogsobre língua e atualmente é professor leitor no Paraguai. É formado em Linguística pela Unicamp, fez mestrado em Filologia Hispânica na Espanha, e cursa doutorado em Linguística, também na Unicamp. E olhem só, nem todas essas credenciais fazem com que o Diego (e, pra ser franca, nenhum outro linguista que li) tenha a arrogância de dizer para um aluno “Você não sabe falar sua própria língua materna, seu pobre”. Mas é essa mesma arrogância que tanta gente da classe média quer manter. E sem apresentar credencial nenhuma além do seu privilégio de classe.

Na Idade Média (e por muito tempo depois dela), as pessoas validavam um conhecimento como verdadeiro se a igreja o confirmasse como sendo uma “verdade”. De lá pra cá, algumas coisas mudaram, porque trocamos a igreja pela universidade (bom, no caso da camisinha, a igreja ainda faz muita gente acreditar que usá-la é errado). E pudemos também relativizar cada vez mais essas verdades.
Mas, no resto, a universidade ganhou esse papel de abalizadora do conhecimento. Quantas vezes não escutamos: “segundo pesquisas da universidade X (e nesse X costuma vir o nome de alguma universidade poderosa dos EUA), a gordura TRANS faz Y (e nesse Y vem um monte de consequências ruins)”.
Por um lado, é bom que tenhamos substituído a igreja pela universidade, afinal existe todo um método científico para se desvendar o conhecimento. Mas, por outro lado, em muitos casos, apenas substituímos os velhos preconceitos por novos (ou o vestimos com uma nova roupagem). A academia também cria e legitima seus preconceitos, lembremos da psicologia evolucionista, por exemplo.
Se antes, qualquer um que contrariasse a ideologia da igreja, iria para a fogueira, hoje isso já não acontece (acho que porque já não fazemos fogueiras humanas). O que nos diferencia de forma capital de nosso passado é que a academia também combate esses preconceitos. E as polêmicas em torno desses problemas é que fazem as ciências e as sociedades caminharem.
No entanto, esse discurso da verdade é mais ou menos heterogêneo entre as distintas ciências. Aquelas que movimentam mais capital são “mais verdadeiras” que aquelas que movimentam pouco capital. Trata-se de uma equação muito simples. Na verdade, uma ciêncianão é mais verdadeira que outra, mas os seus discursos validam mais verdades que outras. E tudo isso tem uma relação com o poder político-econômico.
Com isso quero dizer que as ciências ditas humanas têm uma voz muito fraca na sociedade, enquanto que as ciências exatas e biológicas são as que geralmente respaldam as “verdades” do mundo.
A Linguística, que é a ciência de que me ocupo, é uma das que menos tem valor. Mas isso não se deve apenas ao fato de que ela faz circular pouco capital, como venho dizendo. Devo somar também dois outros fatores:
i) Quase ninguém sabe sobre a Linguística. O que ela é. O que ela estuda. Como ela estuda. Para que serve;
ii) A língua, que é seu objeto, está em toda parte. Todas as outras ciências são permeadas pela língua. A arte é perpassada pela língua. Tudo que é humano tem uma língua.
Então, nós, os linguistas, temos de lidar com nossa insignificância, porque não descobrimos petróleo, porque somos ignorados pela sociedade e porque qualquer um se sente apto a falar o que bem quer sobre as línguas.
E neste último ponto reside uma polêmica. Eu acredito que todo mundo deve discutir sobre as línguas, é um exercício saudável, como veremos no caso anedótico da vez. Mas opathos deve ficar guardado.
Toda vez que alguém fala de língua (geralmente da sua língua materna), ele evoca todo um sentimento ufanista, de proteção ao seu idioma etc.
Quase todo mundo é reacionário em matéria de língua! Quase ninguém sabe lidar com o fato de que a língua muda.
Mas por que as pessoas não conseguem ver o óbvio sobre a sua língua? De alguma forma, é porque a escola durante muito tempo as treinou para que elas não pensassem, não fossem criativas. A escola durante muito tempo só trabalhou com questões de memória. E memorizar uma gramática de normas (a gramática normativa) sempre foi, para a escola, mais fácil que observar a língua e seus usos. A gramática normativa sempre foi o escudo dos reacionários, o escudo das maiorias, o escudo do preconceito linguístico.
E agora que estamos diante de mais uma polêmica linguajeira fica evidente o quanto essa ideologia fascista, que não sabe conviver com as diferenças, é um sujeito oculto nas mentes brasileiras.
O livro didático de língua portuguesa adotado pelo MEC (Ministério da Educação) é quem traz a lebre dessa vez.
Armou-se o maior frisson, nos últimos dias, porque o MEC supostamente estaria propagando a mentalidade de que discutir a língua em uso é necessário. Já pensou?! Pobres das crianças, agora elas seriam obrigadas a pensar mais sobre a língua que elas usam!
Mas aí também há um equívoco: o livro, que se intitula Por uma Vida Melhor, não é destinado às crianças. Ele é adotado pelo programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
O capítulo “Escrever é diferente de falar” deu pano pra manga, porque as autoras mostraram as regras de funcionamento de uma variedade coloquial falada do nosso português brasileiro. Ou seja, elas fizeram as vezes de um linguista!
Ao contrário do que se anda dizendo por aí, o livro não prega que não se deva ensinar a gramática normativa ou a norma culta; pelo contrário, por meio da discussão das outras variedades do português é que se contextualiza essa norma culta. Como também sou professor de português para estrangeiros, sempre faço isso nas minhas aulas. Já pensou um estrangeiro falando como um livro? Seria muito estranho, não?
O que chama mais atenção nesse alarde todo é que a reação começa na mídia.Vocês viram como fala bonito o tal de Alexandre Garcia?[Nota da Lola, que não pôde resistir: só agora vi o discurso revoltado do jornalista, e meu deus! Ele fala em "vencer na vida", no valor de "uma educação tradicional e rígida" e da meritocracia, e lamenta que no Brasil, este país não-civilizado, bandidos não sejam algemados. Todo o ideário da classe média resumido em poucos minutos!].
“Aboliu-se o mérito para não constranger”. Eu morro de rir com essas frases, porque é gostoso ver um reaça se afogando com a voz da ciência (esse é um dos casos em que a ciência combate um preconceito!)
Gente, se abolirem a meritocracia, o que será dos bem-nascidos? Eu tô morrendo de dó deles. Imaginem só, os negrosteriam maior acesso ao ensino superior. As mulheres poderiam ganhar um salário mais igualitário ao do homem. Os homossexuais poderiam adquirir direitos civis. E os pobres poderiam falar como falam!
Sendo assim, nada de ensinar as variedades coloquiais faladas pelo povo!
E você também poderia me refutar: ensinar um estrangeiro não é como ensinar o falante nativo. Claro que não. Não se trata de ensinar a variedade popular para o nativo. Aposto que essa variedade ele já aprendeu por aí! Gente, é só uma questão de inclusão, de reflexão, de contextualização da tão importante norma culta.
Lembro-me sempre nas épocas de campanha do Lula. A imprensa caía matando, porque o Lula falava “errado”: um presidente que não sabe nem falar, vai presidir o país como?
Realmente, a mídia é completamente ignorante quanto aos assuntos sobre língua. Nesse nosso caso, ela só deixa evidente qual é a sua ideologia: a das direitas conservadoras.
Para que fique claro de uma vez por todas, não existe certo e errado na língua. “Gramática” não é sinônimo de “gramática normativa”. Toda língua, toda variedade tem gramática. Toda língua, toda variedade se organiza em torno de regras. “Os menino foi” tem regras de concordâncias mais parcimoniosas que “os meninos foram”.
E onde uma é usada, onde a outra é usada? Quem as usa, em que contexto as usa? Estas seriam indagações muito mais interessantes para aquele que reflete sobre sua língua.
Pergunto novamente: por que as pessoas não conseguem entender essas obviedades todas? Eu já disse que a escola tem muito a ver com isso. Mas a sociedade também tem. Andei lendo muitas besteiras no twitter e no facebook.
Quase todo mundo compra a ideia de “certo/errado”. Quase todo mundo achou um disparate o MEC gastar a verba publica com um livro desses. Quando o Bolsonaro também gastou grana publica para fazer a sua cartilha anitgay, todo mundo também achou um disparate. Todos entenderam o seu conservadorismo. Mas é uma pena que ninguém consegue entender o conservadorismo quando se discute sobre a língua.
Até mesmo os outros cientistas, os que não são linguistas, não entendem os mecanismos da língua. Eu já vi muito intelectual falar asneiras sobre linguagem. Já presenciei muitos educadores, filósofos, cientistas políticos, sociólogos, antropólogos falarem burradas sobre as línguas. O que não tenho a dizer dos cientistas que mais movem a economia? Estes sim, estão completamente do lado da mídia ignorante.
Como o professor Sírio Possenti costuma dizer: nós, os linguistas, não nos atrevemos a fazer xampu ou a criar aviões ou a buscar a cura para o câncer. Simplesmente por que não fomos treinados para isso! Mas, por que todo físico, químico e biólogo, por exemplo, fica à vontade para arbitrar sobre línguas? Acho que eles estão acostumados com o poder. Só pode ser isso.
Mas o pior de tudo são os jornalistas, porque eles cumprem o papel de mediadores entre o senso comum e a ciência. Jornalistas não são só ignorantes, conservadores, direitoides, são mesmo incompetentes. Eles sim são os que erram no uso da gramática normativa (porque a gramática normativa é a ferramenta de trabalho deles), eles sim são os que não perdem a oportunidade do sensacionalismo, tudo a troco de ibope, de audiência e de vendagens.
Quando a linguística ganha um pouco de voz e consegue chegar numa sala de aula, de EJA que seja, toda essa velha mídia ressurge e tenta destruir um passo gigante na democratização da cultura e da educação. Trata-se dessa mesma mídia que falta com o respeito aos profissionais da linguagem, aos professores e aos educadores. Que faz sensacionalismo com um massacre como foi o de Realengo, que acoberta um regime militar odioso, que tenta destruir o popular. Aposto que denunciar as reais mazelas da educação a velha mídia não consegue (aliás, ela só tem abafado e ocultado as greves de professores).
O que você faz com a sua língua? Chegou a hora de você pensar o que você faz com a sua língua! Você faz tudo o que gostaria? Ou faz aquilo que a mídia manda vocêfazer? Repete opressões? Repete o preconceito (linguístico)?
A lição, em tom de clichê, é antiga: não acredite em tudo o que você lê nos jornais. Nem acredite em tudo o que você vê na televisão. Nem acredite em tudo o que você ouve nos rádios. A opinião, o achismo dos jornalistas, no caso do livro didático do MEC, falou mais alto que o fato verdadeiro. E você o que fez? O que fez com sua língua?
Ao destruir os pressupostos de um argumento, destruímos o argumento. Se a Linguística diz que não há certo e errado, como pode ser verdadeira uma notícia assim, “Livro usado pelo MEC ensina aluno a falar errado”?
Quando todo mundo começar a entender que “escrever é diferente de falar”, e entender que a língua varia e se transforma, entenderemos porque a elite reclama que sua norma já não é a única prestigiada. Tampouco precisaremos mais escrever livros que já exprimem em seus títulos um desejo do povo, na variedade do povo, num engasgo próprio do povo, que é a de uma luta “Por uma vida melhor”.


quarta-feira, 18 de maio de 2011

A imprensa marrom e a divulgação virulenta

Esta é uma estória de uma imprensa que adora falar (escrever ou urinar) a verdade, nada além da verdade, custe o que custar, mas que, às vezes...

NOTA PÚBLICA

Livro para adultos não ensina erros

Uma frase retirada da obra Por uma vida melhor, cuja responsabilidade pedagógica é da Ação Educativa, vem gerando enorme repercussão na mídia. A obra é destinada à Educação de Jovens e Adultos, modalidade que, pela primeira vez neste ano, teve a oportunidade de receber livros do Programa Nacional do Livro Didático. Por meio dele, o Ministério da Educação promove a avaliação de dezenas de obras apresentadas por editoras, submete-as à avaliação de especialistas e depois oferece as aprovadas para que secretarias de educação e professores façam suas escolhas.

O trecho que gerou tantas polêmicas faz parte do capítulo “Escrever é diferente de falar”. No tópico denominado “concordância entre palavras”, os autores discutem a existência de variedades do português falado que admitem que substantivo e adjetivo não sejam flexionados para concordar com um artigo no plural. Na mesma página, os autores completam a explanação: “na norma culta, o verbo concorda, ao mesmo tempo, em número (singular – plural) e em pessoa (1ª –2ª – 3ª) com o ser envolvido na ação que ele indica”. Afirmam também: “a norma culta existe tanto na linguagem escrita como na oral, ou seja, quando escrevemos um bilhete a um amigo, podemos ser informais, porém, quando escrevemos um requerimento, por exemplo, devemos ser formais, utilizando a norma culta”.

Pode-se constatar, portanto, que os autores não estão se furtando a ensinar a norma culta, apenas indicam que existem outras variedades diferentes dessa. A abordagem é adequada, pois diversos especialistas em ensino de língua, assim como as orientações oficiais para a área, afirmam que tomar consciência da variante linguística que se usa e entender como a sociedade valoriza desigualmente as diferentes variantes pode ajudar na apropriação da norma culta. Uma escola democrática deve ensinar as regras gramaticais a todos os alunos sem menosprezar a cultura em que estão inseridos e sem destituir a língua que falam de sua gramática, ainda que esta não esteja codificada por escrito nem seja socialmente prestigiada. Defendemos a abordagem da obra por considerar que cabe à escola ensinar regras, mas sua função mais nobre é disseminar conhecimentos científicos e senso crítico, para que as pessoas possam saber por que e quando usá-las.

O debate público é fundamental para promover a qualidade e equidade na educação. É preciso, entretanto, tomar cuidado com a divulgação de matérias com intuitos políticos pouco educativos e afirmações desrespeitosas em relação aos educadores. A Ação Educativa está disposta a promover um debate qualificado que possa efetivamente resultar em democratização da educação e da cultura. Vale lembrar que polêmicas como essa ocupam a imprensa desde que o Modernismo brasileiro em 1922 incorporou a linguagem popular à literatura. Felizmente, desde então, o país mudou bastante. Muitas pessoas tem consciência de que não se deve discriminar ninguém pela forma como fala ou pelo lugar de onde veio. Tais mudanças são possíveis, sem dúvida, porque cada vez mais brasileiros podem ir à escola tanto para aprender regras como parar desenvolver o senso crítico.

Aqui está o link para:

Capítulo do livro na íntegra: http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/V6Cap1.pdf


Informações sobre o caso: http://www.acaoeducativa.org.br/downloads/ESCLARECIMENTOS_AE.pdf


quinta-feira, 5 de maio de 2011

Eros e Psique - A cupidez no Olimpo

Por: INÊS MOTAObjeto Obscuro

Conta a lenda que vivia uma asquerosa lagarta que em seu curto período larval passeava distraidamente pela horta de repolho roxo transgênico, daí a sua coloração. Ela era cleptomaníaca e roubava nacos do vegetal, não porque sentisse fome, mas para alimentar seu TOC e conferir uma corzinha vinho ao seu corpo e chamar a atenção quando fosse posar de fatal para fotos no red carpet.
Chamava-se Psique e, conforme está escrito na mitologia, pouco tempo depois, superando todas as dificuldades, infortúnios e sofrimentos, desperta do sufocante estado de pupa/túmulo e se transforma numa linda e leve borboleta de asas diáfanas, embelezando toda a plantação de soja florida na primavera que despontava em Mato Grosso do Sul. A soja da Amazônia será mencionada posteriormente e até lá talvez já não haja mais floresta alguma.

Está claro, entretanto, que isso tudo não passa de uma metáfora: Psique era em verdade uma delicada e formosa jovem com um par de asas que dava gosto ver e que se preparava para viver com plenitude um grande amor. Formiga, quando quer se perder, cria asas. Isso se aplica também às lagartas.
Entretanto, Vênus, a bela deusa vulgarmente conhecida como Afrodite aqui na Grécia, revoltada por haver desposado Vulcano – o deus manco, fedorento e impotente que forjava o ferro, mas sempre negava fogo quando ela precisava – e não com o gostosão Marte, com quem passou a ter uma relação adúltera, mas principalmente por invejar a beleza de Psique, resolve tramar contra esta.
Assim sendo, ordena a Eros, vulgo Cupido aqui em Roma, o seu filho, que dê um jeito de Psique se apaixonar por um ser horrendo. Mas o plano não transcorreu exatamente como esperado. Eros, embora ardiloso, esperto, jovem e mentiroso pela própria natureza, não resistiu aos encantos de Psique e acabou tornando-se seu amante. Na moita, evidentemente, pois Afrodite cortaria as asinhas deles se viesse a saber. Ele a levou para a cobertura de um belo apart-hotel com piscina, sauna e tudo que a tinha direito uma bela mortal e os traficantes dos morros do Rio de Janeiro, e só a encontrava sob o manto negro da escuridão. Dentre outras coisas, como não poder usar minissaia, calças jeans cintura baixa, decote profundo, batom, frequentar baile funk na Vila Andrade, conversar por internet ou telefone com as amigas, posar nua para Rafael – a exceção era para Michelangelo – e, principalmente, sair com amigos do sexo masculino, ela jamais deveria tentar vê-lo. Era pro-i-bi-do! E assim tudo transcorria na mais plena felicidade.
Ocorre que as ambiciosas irmãs de Psique, já devidamente instaladas em luxuosos apartamentos funcionais pagos com dinheiro do contribuinte, incentivadas pela mídia televisiva, começaram a encher o saco de Psique, insinuando que o tão misterioso amado era um monstro horrendo, que tinha chifres, calçava 52 e que quando ela menos esperasse ele iria comê-la. Além disso, insinuaram que ele ouvia Restart, Lady Gaga e Luan Santana, acabara de comprar a biografia de Justin Bieber e costumava assistir ao Domingão do Faustão. Foi a gota d’água.
Certa noite, Psique caminhou sorrateiramente até a alcova sagrada, decidida a descobrir a real identidade do seu amado. Empunhando uma facapeixeira (deveria ser assim pelas novas regras do Acordo Ortográfico) numa mão e uma vela preta de sete dias na outra, inclinou-se para mirar o rosto adorado e… “Ohhh…!!! jungle people, we are happy people!” – exclamou, tal foi a sua surpresa quando viu, placidamente adormecido com toda aquela candura e beleza em abundância, o Brad Pitt. Em carne, caras, bocas e sem a Angelina. Nesse exato momento uma bala perdida penetrou pela janela da cobertura, alojando-se no travesseiro esquerdo. Ou teria sido no direito? Indignado, ele exclamou: “PQP, esse travesseiro é de pena de ganso e me custou uma nota verde…” E, voando, desapareceu para sempre*.
Psique ficou inconsolável e, para punir as irmãs fuxiqueiras, usou todo o lobby possível na elaboração de um Projeto de Lei contra o nepotismo, propondo proibir a contratação de parentes nos órgãos públicos dos três poderes, alguns deles podres, o que acarretaria o fim do império de Niemeyer, transformando-o num deserto.
Decidida a recuperar a confiança de Eros, Psique o procurou dia e noite. Fez uma ronda por todos os bares da Avenida São João, juntamente com Maria Betânia, e nem sinal dele. Desesperada, comprou uma bolsa Louis Vuitton e foi pedir misericórdia à sogra, que de pronto aceitou o presentinho e, embora sabendo seu paradeiro, impôs algumas condições para trazer o filho de volta aos braços da nora. Afinal, ele estava internado numa clínica para menores infratores, atravessando sérios problemas psicológicos, pois não se conformava em haver sido queimado no ombro esquerdo – ou seria no direito? – com um pingo de óleo do rosa mosqueta. Uiii!
Assim sendo, não havia outro jeito. Psique teria que cumprir as quatro tarefas impostas por Afrodite:
A primeira e a mais difícil de todas era fazer com que o ex-Presidente Lula parasse de falar por metáforas e, como a própria Afrodite sabia tratar-se de perda de tempo, dado o grau de dificuldade, sem mais delongas pulou logo para o desafio seguinte.
A segunda consistia em conseguir identificar e separar todos os grãos de granola de uma tigela de açaí na tijela, inclusive especificando o tipo de banana usada no preparo, antes que a negra bomba energética concentrada se espalhasse como hábito alimentar pelo resto do mundo. Foi moleza. Uma amiga que gostava muito da banda Calypso, comovida com a tristeza da jovem, resolveu o problema sem maiores dificuldades.
Para realizar a terceira tarefa, Psique deveria ir até a Granja Solar e conseguir a maior quantidade possível de buchada de carneiro light que pudesse. As ovelhas, contrariando a contumaz subserviência, estupidez e alienação, a princípio se recusaram a deixar seus companheiros morrer pela causa, mas, doutrinadas por Napoleão e Bola de Neve, aliados dos humanos, e de alguns políticos inescrupulosos brasileiros que promovem a vergonhosa farra das aposentadorias vitalícias, ofereceram os couros às varas com relativa facilidade.


Na quarta tarefa, Psique teria que convencer Prometeu a devolver o fogo roubado dos deuses e resolver as pendências antigas da famigerada caixa de Pandora. Deveria então dirigir-se até Perséfone e trazer a tal Caixa que continha, dentre outras coisas, que iríamos saber posteriormente, um programa Photoshop pirata para retocar as fotos de Afrodite, que não podiam em hipótese alguma ser postadas no Orkut na forma original. Ela só teria que se desviar de um cachorro feroz de nome Scooby Doo e do seu amigo babaca chamado Salsicha. Ocorre que mais uma vez a pobre mortal se deixa levar pela curiosidade e abre a caixa. Ao invés da beleza, só o CD pirata, como já havíamos mencionado, uma fita do Senhor do Bonfim, um relógio ornado com strass comprado na 25 de Março, um disco duplo da Xuxa (Xuxa só para baixinhos/Xuxocão) e um vidro de Dramim B-6 que ela sorveu de um único trago, pensando tratar-se de absinto, e caiu num sono profundo, coitada, antes mesmo de o ônibus da Jardinense com destino a Caicó quebrar na ida (e na volta) próximo à entrada de Currais Novos.
Felizmente, Eros, que havia escapado da clínica, vem em seu socorro e mete rapidinho todo o sono dentro da caixa – bem lá no fundo -, deixando de fora só a esperança de Mário Quintana, uma meninazinha meiga que se atirara do décimo segundo andar de um prédio verde e ficara completamente louca.
Por fim, Zeus Júpiter (allegro ma non troppo), que no decorrer da Guerra de Troia tomou partido pelos gregos ou troianos, de acordo com os seus interesses pessoais, inclusive atendendo aos rogos carinhosos de Tétis para apadrinhar o mimado Aquiles, ou às constantes pressões incestuosas da esposa-irmã Hera, após consumir algumas caixas de viagra, consegue apaziguar Afrodite e esta permite a ratificação do casamento dos pombinhos – no civil e no religioso -, sendo conduzidos por Hermes, o fuxiqueiro-mor do Olimpo, até à Assembleia dos Deuses.


Olimpo, afresco, c.1850.
Luigi Sabatelli

Ali, após grandiosa farra regada a ambrosia, no devido tempo, quando o governo brasileiro ainda não tinha a menor ideia de como realizar as tão profundas e urgentes reformas fiscais, políticas e previdenciárias e as empresas de publicidade no país estavam longe de descobrir uma fórmula de produzir comerciais de dentifrícios menos idiotas, nasce um menino chamado Voluptas (Prazer!) e, até hoje, pasmem, ainda rola uma confusão com esse negócio de exame de DNA pra saber quem é o pai.


Fim

Nota

*Sempre – Unidade de medida de tempo usado antigamente na Grécia antiga, que equivale a “vou ali e volto já”.




Imagem: Pandora, de John William Waterhouse