sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Shosholoza

Por Arthur Dapieve
Jornal O Globo, 13 de dezembro

Miriam Makeba

Miriam Makeba não conseguira passar o som e hesitava antes de subir ao palco no Centro Internacional de Convenções da Cidade do Cabo. A produção até tentara esvaziar a sala, mas parte do público do show anterior não arredara a bunda dali com medo de não conseguir recuperar um dos 1.500 assentos. Era o meu caso.

Miriam Makeba não era apenas uma das maiores — talvez a maior — cantoras da África do Sul. Era também um símbolo da luta contra o racismo. Em 1960, o regime branco cancelara seu passaporte, impedindo-a de voltar de uma longa excursão para assistir ao funeral da mãe. Crime? Ter aparecido num documentário anti-apartheid.

Miriam Makeba não voltara a residir no país nem quando seu banimento fora suspenso, em 1990, e nem mesmo quando outro perseguido político, Nelson Mandela, havia sido eleito presidente, em 1994. Cada vez que ela retornava à África do Sul, portanto, havia uma comoção elétrica. Esta era uma dessas ocasiões, em abril de 2004.

Miriam Makeba demorava para aparecer, o que só multiplicava a ansiedade. Então, do fundo do auditório, uma voz masculina começou a entoar uma canção. Logo, todos os negros presentes — aproximadamente 75% da plateia, como na população — se juntaram num coro de pergunta e resposta. Eu estava sendo apresentado a “Shosholoza”.


Perguntei que música era aquela. Uma mulher branca explicou que a canção era um hino não oficial da África do Sul negra. Depois apurei que se tratava originalmente de um canto de trabalho dos mineiros da etnia Ndebele, do Zimbábue, submetidos a terríveis condições no país vizinho. “Shosholoza” quer dizer algo como “vá em frente”.

Escutar o auditório cantando à capela, espontaneamente, aquele brado de solidariedade, como se a sua voz coletiva se erguesse da própria terra, foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida. Diante daquilo, o show de Miriam Makeba foi quase anticlimático. A apresentação era parte do North Sea Jazz Festival, sediado na Holanda, mas que mantém filial na África do Sul. Se apresentavam naquela edição, entre outros, Cassandra Wilson, Al di Meola, Femi Kuti, Lou Donaldson e o nosso Azymuth, além de outra lenda sul-africana, o pianista Abdullah Ibrahim.

No “maior encontro da África”, comemoravam-se dez anos da eleição de Mandela à presidência e antecipava-se a iminente reeleição de seu sucessor, Thabo Mbeki, dali a dias. Mbeki renunciaria nove meses antes do final do mandato, em 2008, depois que seu próprio partido, o Congresso Nacional Africano (CNA), retirou-lhe o apoio por abuso de poder. Makeba morreria também em 2008, aos 76 anos, do coração, na Itália, após um concerto em benefício do jornalista Roberto Saviano, autor de “Gomorra”.

Naquele momento, porém, tudo era festa na Cidade do Cabo. Eu viajara a convite do escritório de turismo sul-africano e da South African Airways, para cobrir o festival para o GLOBO e para o finado site NoMínimo (versão modesta e autoirônica do ainda mais finado NoPonto). Fazia parte do pacote um guia turístico à minha disposição nos três dias e meio de Cidade do Cabo. Para minha surpresa, era um argentino.

Depois de concluir o doutorado em Micropaleontologia em Londres, em 1976, Hugo Valicenti optara por um emprego no setor petrolífero da África do Sul. As opções eram ou retornar à Argentina dos militares ou vir trabalhar na Petrobras, de onde, temia, a Operação Condor poderia arrancá-lo. Instalado na Cidade do Cabo, jurara combater o apartheid. Adotara um garoto negro com problemas mentais. Servira como motorista ao CNA, que já criticava pesadamente, pelo hoje notório festim de corrupção. Ele me sacaneava, perguntando aos garçons se eu não era um negativo de Jacob Zuma.

Certa manhã chuvosa, impedidos de subir pelo teleférico até a Table Mountain, Hugo começou a inventar programas. Perguntou-me se eu topava ir a uma favela, Langa, conhecer um amigo músico dele. Calhou de eu conhecê-lo de nome: Dizu Plaatjies, fundador do grupo Amampondo, então em carreira solo. Ele estava na lista de CDs a comprar que eu levara. Conversamos sobre música sul-africana e brasileira na construção de alvenaria que Hugo chamava de “Casa Rosada”. Em Langa, cruzamos com meia-dúzia de procissões fúnebres. “Aids”, garantiu-me o guia, tristemente.

Algumas experiências são decisivas na vida. A viagem à África do Sul foi uma delas. Tudo me era estranho, mas ao mesmo tempo tudo me era familiar. Como escrevi na época, lá do outro lado do oceano eu enxerguei melhor o Brasil. Diante de um país que, com toda a simpatia do mundo, pelejava para esquecer e para fazer os visitantes esquecerem o apartheid, afinal entendi o quão nós somos racistas, de maneira diversa, “cordial”, mas ainda assim racistas — e entendi que é preciso lutar contra isso. Esta é minha dívida pessoal com a África do Sul de Nelson Mandela. “Shosholoza” veio-me imediatamente ao peito quando soube que ele não estava mais entre nós.



quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Sobrevida ao absurdo

Por Rafael Gregório
Revista Carta Capital, 11 de dezembro

Está nos jornais: o suposto intérprete que, na terça-feira 10, passou quatro horas traduzindo para a linguagem dos sinais dos surdos a cerimônia do funeral de Nelson Mandela, morto no último dia 5 aos 95 anos, era um “fake”.

O governo da África do Sul ainda não explicou se o incidente se deve a uma escolha errada, a uma elaborada e fraudulenta trama ou a um mero trote, prosaico como a piada do carro de gelo. Ainda assim, o assunto teve fôlego para abastecer a máquina da zombaria virtual.

Bem-humorados louvaram o aventuroso e ainda não identificado intérprete, cujos sinais pareciam infantis e bizarramente improvisados. Naturalistas de plantão não hesitaram em associar a gafe ao subdesenvolvimento e à “africanidade”. Austeros, por sua vez, foram rápidos em condenar o ocorrido.

Não sem legitimidade, diga-se. Surdos sul-africanos ficaram indignados por terem sido tolhidos do direito à compreensão dos discursos e ritos da cerimônia de despedida de seu ídolo. Durante o evento, Wilma Newhoudt-Druchen, a primeira mulher surda eleita para o Parlamento Sul-Africano, publicou em sua conta no Twitter que “O intérprete do CNA (Congresso Nacional Africano, partido da situação) no palco está gesticulando lixo. Ele não pode interpretar. Por favor, o tirem”.

Também escapou da compreensão dessa parcela da população a sonora vaia do público presente no estádio ao presidente Jacob Zuma, que em poucos meses enfrentará delicada campanha pela reeleição.

David Buxton, CEO da Associação dos Surdos Britânicos, afirmou que o homem, que deveria sinalizar a linguagem de sinais sul africana (fixada para abarcar todas as 11 línguas oficiais do país e mais uma miríade de dialetos), estava “balançando as mãos, mas sem nenhum sentido”. Segundo ele, eram meros “sinais de mão infantis e de bater palmas, como se ele nunca tivesse aprendido uma palavra sequer na linguagem de sinais”.

A despeito das críticas, porém, e seguros de que o fato será devidamente escrutinado pelas vias oficiais e pela sempre vigilante e vociferante “opinião pública”, muitos viram no ocorrido motivos para celebrar. Entre eles, este humilde escriba.

Afinal, são tempos difíceis para a espontaneidade. Além de marombados e plurais seguranças para garantir privacidade e integridade física, artistas, políticos e celebridades em geral há tempos desfilam cercados por um séquito de “guarda-costas morais”.

Salvo exceções cada vez mais raras, não se obtém uma palavra – quanto mais um amontoado conjugado delas em frases e declarações – de uma pessoa pública, ou nem tanto, sem que cada vogal seja antes dissecada por um exército de patrulheiros do politicamente correto.

Esse condicionamento da verdade às conveniências afeta de maneira peculiar o campo da educação. Encontrar um parlamentar ou administrador público que não vomite frases feitas como “é preciso valorizar o professor”, “devemos aumentar os investimentos no ensino” ou a corrente e odiosa “por que não nos espelhamos na jornada integral e rigorosa da Coreia do Sul?” é tão fácil quanto presenciar um enterro de anão (sarcasmo espontâneo e alheio à correição detectado).

Quando troquei o Direito pelo Jornalismo, o fiz (também) sob a influência de certos textos magistrais. Um deles, uma entrevista da cantora Maysa a Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral, do lendário semanário Pasquim. Em três perguntas e respostas que abrem a conversa, um retrato de um tempo bom que se foi:

Jaguar – Você acha que valeria a pena vender o Piauí para trazer o Frank Sinatra ao Brasil?

MAYSA – Para falar a verdade, nem que vendesse o Piauí haveria dinheiro pra pagar o que ele pede. Acho que teria que vender Brasília com o lago e tudo dentro. E não compensaria.

Sérgio – Você concorda com a afirmação de que Frank Sinatra é o maior cantor de todos os tempos?

MAYSA – Eu acho que sim. Além de ser um mau-caráter genial.

Tarso – O que você achou da música Sabiá, vencedora do Festival da Canção do ano passado?

MAYSA – A melodia é daquele gênero que só poderia ser do Antônio Carlos Jobim que costuma plagiar a si mesmo. A letra não tem nada. Acho que o Chico poderia fazer coisa melhor.

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Isso, hoje, é impensável. Assessores de imprensa, relações públicas, secretários e aspones em geral trabalham 24 horas por dia para evitar vacilos de espontaneidade. Fixam, desta forma, relações limpas e frias, sempre filtradas de quaisquer das manifestações de amor e ódio a que se sujeitam, por definição psíquica e biológica, a alma e a mente humanas. Opiniões do calor do momento são reduzidas a manobras e apostas calculadas. Afinal, há muito em jogo: os contratos de publicidade, as relações com poderosos, os patrocínios públicos de cidades, estados, País.

Ao leitor, o pão velho da comunicação: discursos assépticos, frios e estéreis, migalhas simpáticas que nada dizem e a ninguém afetam.

Pelo respeito que nutro pela comunidade que depende da tradução para os sinais, lamento celebrar. Lamento o prejuízo a esse público, lamento o atentado à igualdade de condições e à democracia.

Não posso, contudo, deixar de celebrar o valor de uma imagem: Barack Obama, homem mais poderoso do mundo, capaz de ceifar ou salvar milhões de vidas com um “sim” ou um “não”, a proferir louros a Nelson Mandela – e, durante longos minutos, ladeado por uma farsa improvisada.

Algo saiu do roteiro.


*Rafael Gregorio é editor-assistente de Carta na Escola e Carta Fundamental


segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Um colosso de caráter moral inatacável

Jornal O Globo, 09 de dezembro de 2013

Vocês poderiam imaginar o que teria acontecido a nós se Mandela tivesse saído da prisão em 1990 eriçado de ressentimento contra a grande injustiça que ocorreu no Julgamento de Rivonia? Vocês poderiam imaginar o que a África do Sul seria hoje, se ele tivesse sido consumido por um desejo de vingança, de querer ressarcimento por todas as humilhações e toda a agonia que ele e seu povo haviam sofrido nas mãos de seus opressores brancos?



Nunca antes na História um ser humano foi tão universalmente reconhecido em vida como a personificação da magnanimidade e da reconciliação como Nelson Mandela foi.
Ele colocou de lado a amargura de suportar 27 anos em prisões do apartheid — e o peso de séculos de divisão colonial, subjugação e repressão — para personificar o espírito e a prática de ubuntu, ou bondade humana. Ele compreendeu perfeitamente que as pessoas dependem das outras para que os indivíduos e a sociedade prosperem.
Esse era o seu sonho para a África do Sul e a esperança que ele representava em todo o mundo. Se fosse possível na África do Sul, seria possível na Irlanda, seria possível na Bósnia e em Ruanda, seria possível na Colômbia, seria possível em Israel e na Palestina.
Claro que, no espírito de ubuntu, Madiba foi rápido em apontar que não poderia levar sozinho o crédito dos muitos elogios que surgiram em seu caminho e que estava cercado por pessoas íntegras que eram mais brilhantes e mais jovens do que ele.
Isso é apenas parcialmente verdadeiro.
A verdade é que os 27 anos em que Madiba, como era conhecido, passou no ventre da besta do apartheid aprofundaram sua compaixão e capacidade de empatia em relação aos outros. No topo das lições sobre liderança e cultura a que ele foi exposto, e de seu desenvolvimento de uma voz para os jovens na política anti-apartheid, a prisão parece acrescentar uma compreensão da condição humana.
Como o diamante mais precioso formado nas profundezas da Terra, o Madiba que emergiu da prisão em janeiro de 1990 era praticamente perfeito.
Em vez de querer o que lhe era devido, ele proclamou a mensagem de perdão e reconciliação, inspirando outros pelo seu exemplo de atos extraordinários de nobreza de espírito.
Ele personificou o que proclamou, colocou em prática o que disse. Ele convidou seu antigo carcereiro para participar de sua posse presidencial como convidado VIP, e chamou o homem que conduziu o caso do Estado contra ele no Julgamento de Rivonia, pedindo a pena de morte, para almoçar em seu escritório presidencial.
Ele visitou a viúva do sumo sacerdote do apartheid, Betsy Verwoerd, no enclave branco exclusivamente africâner de Orania. Ele tinha um talento único para atos espetaculares e simbólicos de grandeza humana que seriam acanhados se fossem realizados pela maioria dos outros. Quem vai esquecer o momento eletrizante da final da Copa do Mundo de rúgbi em 1995, quando ele entrou em campo no Ellis Park com o número 6 do capitão Francois Pienaar na camisa do Springbok que estava vestindo? Foi um gesto que fez mais pela construção e pela reconciliação da nação do que qualquer número de sermões de pregadores ou discursos de políticos.
Apesar de sempre um homem da equipe, Madiba também sempre esteve suficientemente confortável em sua própria pele, seguro em sua capacidade de discernir o certo do errado, que evidenciou algumas das inseguranças associadas a muitos políticos. Ele era capaz de aceitar críticas — e apto a pedir desculpas, quando sentia que um pedido de desculpas era devido.
Ele teve a coragem moral e ética, durante e depois de seu período na Presidência, para fazer e dizer coisas que nem sempre estavam de acordo com a política oficial de seu amado Congresso Nacional Africano (CNA).
Quando a Comissão da Verdade e da Reconciliação publicou seus resultados, contra alguns dos quais o CNA se opôs fortemente, Madiba teve o dom de aceitar publicamente o relatório.
Outro exemplo foi a criação do primeiro local rural de tratamento da Aids da África do Sul, por sua fundação, num momento em que o governo sul-africano foi hesitante e confuso em sua resposta à pandemia.
Quando um dos integrantes da Comissão da Verdade e da Reconciliação foi acusado numa audiência de anistia de estar envolvido no caso, Mandela nomeou uma comissão judicial para investigar. Mais tarde, recebi uma chamada da secretaria do presidente para obter os detalhes de contato do comissário. Eu percebi que o presidente queria colocá-lo à vontade, mas disse que, como presidente da comissão, eu deveria conhecer as conclusões da comissão judicial primeiro. Em poucos minutos, o próprio presidente estava na linha , dizendo: “Sim, Mpilo, você está totalmente certo. Sinto muito.”Os políticos acham quase impossível se desculpar. Somente pessoas verdadeiramente grandes pedem desculpas facilmente, elas não são inseguras.
Vocês poderiam imaginar o que teria acontecido a nós se Mandela tivesse saído da prisão em 1990 eriçado de ressentimento contra a grande injustiça que ocorreu no Julgamento de Rivonia? Vocês poderiam imaginar o que a África do Sul seria hoje, se ele tivesse sido consumido por um desejo de vingança, de querer ressarcimento por todas as humilhações e toda a agonia que ele e seu povo haviam sofrido nas mãos de seus opressores brancos?
Em vez disso, o mundo foi surpreendido, na verdade ficou admirado, pela inesperada transição pacífica em 1994, seguida não de uma orgia de vingança e retaliação, mas pela maravilha do perdão e da reconciliação sintetizados nos processos da Comissão da Verdade e da Reconciliação.
Foi sem surpresa que seu nome se ergueu acima de qualquer outro quando a BBC realizou uma pesquisa para determinar quem deveria dirigir um governo mundial para guiar os assuntos da nossa aldeia global conflituosa. Um colosso de integridade e caráter moral inatacáveis, ele era a figura pública mais admirada e mais venerada do mundo.
As pessoas sabiam, sentiam que ele se importava genuinamente. Ele se consumia por essa paixão em servir, porque acreditava que um líder existe para o benefício dos que são guiados, não para auto-engrandecimento ou autopromoção.
As pessoas sentem isso, você não pode enganá-las. Foi por isso que os trabalhadores da fábrica da Mercedes-Benz na Cidade do Cabo lhe presentearam com um carro especial que tinham feito com apreço. Foi por isso que, quando ele foi para a Grã-Bretanha em sua visita de Estado de despedida, a polícia teve de protegê-lo das multidões que poderiam esmagá-lo por amor. Normalmente, os chefes de Estado são protegidos em visitas do tipo para garantir a sua segurança contra quem pode ser hostil.
Sua paixão em servir o levou a continuar sua longa caminhada prodigamente, mesmo depois da aposentadoria. Assim, ele fez campanha vigorosa para os infectados pelo HIV e continuou a angariar fundos para crianças e outros projetos — tudo para os outros, não para si mesmo.
Ele tinha pontos fracos? Claro que sim. Sua principal fraqueza era a lealdade à sua organização e aos colegas. Ele manteve em seu gabinete ministros de baixo desempenho e incompetentes que deveriam ter sido demitidos. Esta tolerância com a mediocridade, sem dúvida, lançou as sementes para maiores níveis de mediocridade e corruptibilidade que estavam por vir.
Ele era um santo? Não se um santo é totalmente impecável. Creio que ele era santo porque ele inspirou outros poderosamente e revelou em seu caráter, de forma transparente, muitos dos atributos da bondade de Deus: a compaixão, a preocupação com os outros, o desejo de paz, perdão e reconciliação.
Dou graças a Deus por essa dádiva extraordinária para a África do Sul e o mundo.
Que ele descanse em paz e se eleve em glória.

*Desmond Tutu é arcebispo emérito da Cidade do Cabo, África do Sul, e vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 1984

sexta-feira, 6 de dezembro de 2013

Obrigado!

O Dia, 06 de dezembro
A democracia sempre foi e será um conceito caro a todos, pois coloca, dentro do mesmo saco, você, o seu excluído, os ricos que pisam, os miseráveis que chocam, o homicida e o zen budista. A democracia é para quem tem coragem e resignação, só serve aos racionais e aos buscadores da verdade.
Defender o ódio, a morte, a exclusão, a meritocracia é saciar uma vontade animalesca com pedras de crack: o prazer é tão catártico que a vontade nunca vai embora. Democracia é dar gotas de leite ao bebê faminto na Somália; é a longa espera e dedicação que o salva, e mesmo assim, às vezes, é preciso um pouco mais de alguma coisa.
Não, democracia não é para punir, é para fazer justiça, e a justiça quase sempre escorre por entre os dedos dos doutores e seus anéis maciços e teóricos.
Claro que o conceito, a teoria, a teogonia, todos conhecem.
Mas na prática eu só conheci você. Com seu olhar sorridente, sua dança Thembu, sua pele preta, seus cabelos brancos e sua vontade de ser. E você foi.
Você é um pouco de nós, agora, porque as idéias, quando arrebatadoras, entram em nossa estrutura como átomos em ligações moleculares e enraízam-se. Logo, toda vez que alguém levanta a voz na defesa do essencial, há um pouco do Madiba fervendo no sangue.
Portanto, diante da capa do jornal carioca O Dia, devo enxugar o choro e discordar: não estamos de luto. Somos, hoje, todas as cores, todas as formas, todos os tipos, todas as raças. Estamos dançando, trazendo o colorido para o mundo, abraçando o outro dentro de nós, ficando em paz com a nossa luz, querendo ser melhor.

E graças a você, somos.  


quinta-feira, 21 de novembro de 2013

1 x 1

Não era para se encontrarem. Quis a vida que fosse assim, num fast food qualquer. Ele com o seu filho e, ela, com o mais velho dos seus três meninos. Ambos eram infelizes à maneira deles, logo, sobravam longos dias de alegria, uns lampejos de tarde eufórica. E assim viviam porque era óbvio e fácil viver no mundo moderno. Ela dedicava-se a educar os filhos e a cuidar da carreira de médica. Ele dedicava-se a ser melancólico e irremediavelmente chato, principalmente quando bebia, e isso era sempre.

Os filhos de ambos pediram hambúrgueres nojentos e gordurosamente gostosos, ele se contentou com fritas e refrigerante que veio com uma quantidade absurda de gelo; ela pediu milk-shake. Ele disse algo básico do tipo “como vai, faz tanto tempo... Você continua a mesma, seu filho é lindo...”, enfim, as coisas simples e seguras de sempre que anulam qualquer gafe. Ela sorriu um sorriso filho-da-puta de encantador e sugeriu que se sentassem na mesma mesa e os filhos na outra, ao lado.

Ele se sentou e iria encaixar outra frase-feita e desnecessária quando recebeu a frase dela primeiro: “Eu não sou feliz, Pedro.” Ele congelou. Jogou uma boa quantidade de refrigerante aguado na boca e esperou pelo prosseguimento da frase. Fez bem.

– Às vezes penso que foi um erro terrível não ter insistido na relação. A verdade é que quando ele sai, eu sei que ele está trepando com outra e... Quer sinceridade? É a parte feliz do meu dia.

“Deve ser difícil”, e isso foi tudo o que conseguiu dizer sobre aquele bálsamo que recebera sem pedir. Ficaram um longo tempo com os olhos nos olhos. “Você deveria ter casado comigo” foi a outra frase que disse enquanto ela fazia alguma força para que o milk-shake chegasse à boca. Fez mal.

Então, a mulher colocou o copo na mesa, entrelaçou as mãos e disse a única coisa que poderia ser dito naquele momento:

– Vai à merda, Pedro.  

“Você vem deprimida, fala de infelicidade, mas não quer ouvir o que tenho pra dizer? Eu não entendo”.

– Eu te disse algo muito importante e a única coisa que você pode afirmar é que deseja me comer. Eu acabo de confessar que estou infeliz e você joga isso. O que quer? Que eu aceite essa frase e foda contigo? Eu disse que estou infeliz, não disse que seria feliz ao seu lado.

“Você não ama o seu marido”.

– Pergunte pro seu orixá, amor só é bom se doer. E eu também não te amo.

Ela desistiu do resto do milk-shake e as crianças não quiseram outra coisa, logo, levantar da mesa e dizer até logo foi o que se seguiu e o que fazia sentido naquele momento. Ele ainda se deixou por mais alguns minutos ali com o filho e com a sua estranha infelicidade. Ela entrou no carro e soube, finalmente, o porquê de não ter casado com Pedro ao responder uma pergunta comum do filho mais velho. “Quem era aquele moço, mamãe”?

– Alguém qu`eu pensava ter um pinto, mas era só fanfarronice.

E dirigiu até a sua casa, fez as malas e carregou um pouco de alguma alegria. Mudou de consultório e de cidade, matriculou os filhos no bairro vizinho, alugou uma casa e teve doses de infelicidade como todo mundo, mas dessa vez, um infelicidade independente, passageira, sem angústia ou discriminação. Uns dias de prazer bobo, outros intensos, com os seus, com os outros e consigo.


E um dia ela sentiu dor. E outras dores depois. E foi feliz ou infeliz à sua maneira. E viveu até deixar de viver.




sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Inverno na praia

      Estava ele ouvindo Pavarotti cantar bravamente a sua ária e a sua filha debochando bravamente daquela música estranha aos ouvidos inocentes e alegres da menina acostumada com a alegria de um Palavra Cantada ou Bia Bedran. E ele, olhando-a com sorrisos nos olhos pela brincadeira, colocou mais um gole daquele fabuloso e encorpado cabernet na boca. Pensou na possibilidade de ser mais um dia sem dor, sem embaraços, mas a campainha soou estridente e penetrou na sala, rasgando a imortalidade de Puccini, inundando o ambiente doce.
      “Chegou cedo”, ele disse com o rosto simpático e totalmente pronto para absorver algum rompante. “Achei melhor vir cedo por causa do trânsito”, foi a resposta esperada por ele e dita sem muita vontade por ela. “Trouxe o boleto da escola e, antes que você reclame, gostaria de dizer que quem bebe estes vinhos pode muito bem pagar a escola sem fazer cara de bunda”. Ele sorriu porque achava que a hostilidade viria em algum momento. “É natural o aumento escolar no começo do ano”, disse abrindo o talão de cheques. Ela olhou com o semblante aflito, mas com alguma esperança de conseguir uma confusãozinha antes de deixar aquele apartamento espaçoso e limpo. Quadros da família em espalhados pelo corredor junto aos vasos de flores guardavam duas ou três fotos dela. “Por que eu ainda estou aqui junto às outras fotos”? Ele viu a casca de banana e desarmou a bomba: “Você vai estar sempre aí, como parte importante da vida da gente”. Ela quis chorar e, portanto, disse o óbvio: “Vai se foder, João Carlos”!
      Pegou a menina pelos braços e arrastou-a até a porta sob protestos da criança. “Eu venho segunda-feira pela manhã ou, se preferir, levo à escola e você só tem que buscar”. Ele olhou-a seriamente, mas sem nenhum tipo de irritação e disse algo como “fique a vontade” ou “você é quem decide”. Ela optou por uma das duas hipóteses e, sem deixar tempo para uma terceira, bateu a porta.
      Elas se foram e ele atirou-se numa daquelas poltronas do papai que tanto adorava quando estavam juntos, mas que agora estava apenas ali na sala, ocupando espaço. Pavarotti encontrava-se com Tosca e chovia E Lucevan Le Stelle sobre ele, dando uma beleza maior àquele triste buquê na taça e o melancólico sol caindo no mar. Precisava recuperar aquela mulher enquanto ainda existia ódio dentro dela. Usaria o ódio para poder dançar mais algumas vezes com ela. A primavera que nasce depois do inverno.

Claude Monet



terça-feira, 29 de outubro de 2013

Duas belezas da B. Galvão

Bea Galvão
do (excelente) blog Por um Triz




nós.
mas, se desenlace:
linhas
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4 anos. a ausência, agora, tem até cheiro. presença física. a ausência abraça doído. e não acalma nada.
a ausência é como um frasco da memória rachado, que exala o aroma líquido da saudade. e não te deixa esquecer, não aquece nem faz dormir.
pai, a ausência é foda.


Escrevi em 27 de março de 2010:

Foi ontem, meu pai, lembra? Você se sentava aqui, ao lado da cama, e contava histórias para a gente dormir... Mas acordávamos cada vez mais. Elas estão guardadas em uma parte da memória que não deixa esquecer.

Você se lembra, meu pai, foi ontem: vc me esperava chegar do trabalho, cansada e de madrugada, para, juntos, jantarmos e dividirmos a sobremesa. Se lembra?

E dos vinhos regando diálogos impertinentes, polêmicos pelo simples prazer da retórica, apimentados... sempre entre um queijinho e outro.

Quantas partidas jogamos sem que teu rei tombasse? Quantas histórias inventamos sobre os quadros que nos emocionaram? E os filmes que assistimos, os livros que tanto amamos, em edições que sonhamos, sonhamos...

Se lembra, meu pai, foi ontem: vc e eu, no quintal desta casa, medindo o terreno para a construção de nosso território... Você estava melhor que eu!

Foi tudo ontem! Tão ontem!

Para onde você foi que não aceita meus abraços? Onde está o seu sorriso, que já não me alcança? Onde as janelas tão abertas do seu quarto? Onde o sol?

O computador, os livros, os discos, os projetos: silêncio.
Janelas cerradas. Vinhos calados.

Ourivesaria sem palavras, esperando, ainda, aquele último abraço se prolongar, sem pressa, sem tempo, no não-espaço da estação de metrô... que jamais partirá... jamais partirá... Partirá.
Adeus!



domingo, 27 de outubro de 2013

Aquele Cantinho

Ele pediu para ela o encontrar naquele cantinho que há tempos era só deles. Desde o começo do namoro, 07 anos atrás, era ali, naquela mesinha que eles tomavam o chope, pediam os petiscos e sugeriam uma música para eles. Aliás, sugeriam não, ele sugeria, pois ela achava que aquilo não era muito elegante com o músico.

Mas, enfim, ela estava sentada naquele cantinho, com uma caneca de chope na mão e uma isca de peixe sobre a mesa e aquele som bem tirado do violonista e da percussão que o acompanhava. Se um dia a gente se encontrar e eu confessar que vi um filme tantas vezes pra desvendar os olhos teus.

E ela deixou-se levar por tão mágica melodia e lembrou do primeiro encontro deles ali, naquele cantinho, a maravilhosa penumbra iluminando todos os gestos dele, a mão no queixo, os lábios no chope, a boca no beijo. Ela ficara maravilhada com a decoração e o acolhimento: as antigas máquinas de costurar transformadas em mesas com granito preto sobre elas, o balcão rústico e as fotos em preto e branco emolduradas e espalhadas pela parede, além, é claro, dos dois músicos que ora descolavam um Milton, um Chico, ora Beatles, Lou Reed; nos intervalos, Parker, Miles, Monk, Coltrane, salpicados pelo mp3 do dono. Ela já admitiu que trepara com ele na primeira vez porque o lugar torporizava mais que a cevada? Já. Depois de um bom sexo e um chuveiro quente.

Estava com um meio sorriso nos lábios quando ele chegou e disse alguma coisa sem a menor importância diante da música executada com todo o carinho pela dupla. Ele perguntou se estava tudo bem e ela fez que sim com a cabeça, a voz saiu quase sofrida, tirando-a do Éden: “tudo bem, sim, e com você”? E ele levou uns dois minutos para filosofar dentro de um tema que apenas servia como prato de entrada. A dupla pediu vinte minutos de descanso, as caixas de som acopladas no forro do teto deram os primeiros acordes. Long Way Home, do Waits. E ela meio que fechou os olhos e melodiou com a cabeça. O lugar embriagava.

Depois de muito falar e nada dizer, ele parou e ficou longos segundos observando a mulher que, independente dele e do mundo, ziguezagueava a cabeça a medida que a rouquidão do Tom deslizava pela atmosfera. Ficou excitado. Como não queria ficar com hálito de peixe, bebeu e pensou naquelas longas pernas entrelaçadas na sua cintura. Pediu caneta e papel ao garçom e ela fez cara feia. “Não quer pedir nada para eles”? “Nem que você peça também” foi a afirmação definitiva dela.  

A música foi acabando e ela perguntou se ele não queria comer nada. Ele levantou a cabeça e mostrou os dentes. Pensava no longo caminho que faria para casa com ela. Ela pensava no curto caminho que faria se dissolvesse logo aquilo e mandasse ele à merda. Ela pediu outro chope, ele disse dois. Ele procurou a sua mão e encontrou as coxas. “Tudo bem, mas qualquer dia eu vou embora”. “Eu sei, benzinho”. E beberam mais outros tantos chopes e tomaram outros tantos banhos quentes até que um dia aquele cantinho passou a outros tantos com tantos outros amores e dissabores e já escutavam a Norah ao invés do Tom.

Let's go out past the party lights
We can finally be alone

Come with me and we can take the long way home




quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Duas da Cynara e outras duas observações

Folha de S. Paulo - 1984

Por  Cynara Menezes
Do (ótimo) blog Socialista Morena, revista Carta Capital

Adeus, jornais impressos

Caí de amores pela Folha de S.Paulo aos 17 anos, em 1984, quando entrei na faculdade e o jornal apoiou a campanha pelas Diretas-Já. Até então, menina do interior da Bahia, não conhecia bem a grande imprensa. O jornal que estampava em sua primeira página o desejo de todos nós, brasileiros, de votar para presidente, me cativou. Como para vários da minha geração, trabalhar na Folha se tornou um sonho para mim.

E de fato trabalhei no jornal, entre idas e vindas, quase 10 anos. Tive espaço, ótimas oportunidades, conheci de perto figuras incríveis: Ulysses Guimarães, Darcy Ribeiro, Florestan Fernandes, Leonel Brizola, Lula. E principalmente: na Folha escrevi como quis –ninguém nunca mudou meu texto e jamais adicionaram nem uma frase sequer que eu não tenha apurado, ao contrário do que viveria nos oito meses que passei na Veja (leia aqui).

Em 2009 meu respeito pela Folha morreu. Naquele ano, o jornal publicou um artigo absolutamente execrável acusando Lula de ter tentado estuprar um companheiro de cela, um certo “menino do MEP” (antiga organização de esquerda), quando esteve preso, em 1980. Qualquer pessoa que lê o texto percebe que Lula fez uma brincadeira (de mau gosto, ok), mas o autor do artigo não só levou a sério, ou fez de conta que levou a sério, como convenceu o jornal a publicar aquele lixo.

Como eleitora de Lula, aquilo me incomodou. Por que nunca fizeram algo parecido com outro político? Por que o jornal jamais desceu tão baixo com ninguém? Apontar erros, incoerências, fazer oposição ao governo, vá lá. Dizer que Lula estuprou uma pessoa! Por favor. Me pareceu que alguém na direção do jornal estava sob surto psicótico ao permitir que algo assim fosse impresso. Vários amigos da Folha me confidenciaram vergonha e indignação com o texto.

Continuei a ler o jornal nestes últimos quatro anos mais por hábito do que por outra coisa. Quando veio o editorial em que a ditadura foi chamada de “ditabranda” não fiquei surpresa. Quando a Folha publicou a ficha falsa da candidata Dilma Rousseff no DOPS quando atuou na luta armada, tampouco. A minha própria ficha já tinha caído, lá atrás. O jornal a favor das Diretas-Já deixara de existir –ou será que nunca existiu? Afinal, antes disso a Folha havia apoiado o golpe militar. Terei eu caído num golpe –de marketing?

Hoje, 24 de outubro de 2013, tomei a iniciativa de cancelar minha assinatura da Folha de S.Paulo. O jornal acaba de contratar dois dos maiores reacionários do País para serem seus “novos” colunistas. Não é possível, para mim, seguir assinando um jornal com o qual não tenho mais absolutamente nenhuma identificação. Pouco importa que minha saída não faça diferença para o jornal: é minha grana, trabalho para ganhá-la, não vou gastá-la em coisas que não valem a pena. O mundo não é capitalista? Pois não quero, com meu dinheiro, ajudar a pagar gente que me causa vontade de vomitar.

O mais triste é que, ao deixar de assinar a Folha, deixo também de ler jornais impressos. Nenhum deles me representa. Esta é literalmente uma página que viro, dá a sensação de que perdi um amigo querido. Mas a vida é assim mesmo: às vezes amigos tomam rumos diferentes. Sem rancores.

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Por que entrei na Veja. E por que saí

No final de 1997, após minha aventura espanhola –economizei um dinheirinho e fui estudar Literatura Espanhola e Hispanoamericana em Madri–, voltei ao Brasil para morar em São Paulo. Desempregada, fui convidada por uma grande amiga a fazer um frila para a revista Marie Claire, onde ela era editora: uma entrevista com o pré-candidato a presidente Ciro Gomes que acabou sendo um dos mais marcantes trabalhos da minha carreira. Ciro abriu a alma, talvez mais do que gostaria, e a matéria de uma revista feminina surpreendentemente repercutiu em todos os jornais.

O sucesso foi tão grande que aquela entrevista, publicada na edição de janeiro do ano seguinte, foi a responsável por minha reinserção no mercado brasileiro após dois anos fora. Fui sondada por alguns veículos e acabei sendo convidada para voltar à Folha de S.Paulo, onde havia trabalhado na sucursal de Brasília, para ocupar uma vaga na editoria de Cotidiano. Meses depois, mudei para a Ilustrada, que almejava quando fui para a Espanha. (Qualquer hora tiro um tempinho para digitar a entrevista com o Ciro e postar aqui para vocês. É muito divertida.)

Sete anos mais tarde, em maio de 2004, eu estava havia apenas três meses trabalhando no Estadão quando a mesma querida amiga me procurou para fazer um convite: iria assumir a editoria de Brasil da revista Veja e queria que eu fosse para lá fazer coisas bacanas, reportagens especiais, entrevistas. “Quem você gostaria de entrevistar?”, ela perguntou. Respondi que sempre quis entrevistar Diego Maradona sobre política. Até hoje acho que seria uma entrevista e tanto. Ela ficou entusiasmada e eu também. Mas e hard news?, perguntei. Este nunca foi meu forte. “Ah, você vai ter que fazer, mas ocasionalmente”. Pensei uns dias e topei. Lembro que até comprei, num sebo de São Paulo, um livro de Oriana Falacci, a grande entrevistadora italiana, para me inspirar…

Costumo dizer que existem dois tipos de repórteres: os que têm boas fontes e apuram muito, mas têm um texto apenas razoável, e os que não têm tantas fontes nem são incríveis apuradores, mas escrevem bem. Eu não tenho fonte nenhuma e apuro o suficiente; o texto é o diferencial. Portanto, o primeiro choque para mim após a estreia na Veja foi que a alentada matéria de capa sobre corrupção que eu e dois colegas apuramos não foi escrita por nós. Eu escrevi o texto inteirinho. E ele foi inteirinho modificado para publicação. Obviamente não recebi aquilo de bom grado, mas uma colega que estava lá há mais tempo me acalmou dizendo que logo eu “pegaria o jeito” para escrever no estilo da revista e não mexeriam tanto no texto.

Bom, hoje sei que nunca iria “pegar o jeito” de escrever da Veja porque, para começo de conversa, não é o meu. Meus textos em geral têm bastante aspas, adoro colocar frases boas de entrevistados e especialistas para dar um colorido. Na Veja, podem reparar, os textos quase não têm aspas, é tudo assumido pelo redator. Além disso, tem uns clichês do tipo “os números impressionam” que eu não conseguiria incluir num texto meu nem que trabalhasse lá durante 100 anos.

Vi, de cara, que tinha entrado numa enrascada, que só piorou quando me destacaram para cobrir a campanha de Marta Suplicy à reeleição em São Paulo. Não havia ninguém no PT que aceitasse falar com a Veja. As fontes das reportagens tinham que ser pessoas, mesmo dentro do partido, de oposição à prefeita. Eu fazia a apuração possível, mas absolutamente nenhum daqueles textos foi escrito por mim. Àquela altura, eu só pensava num jeito de sair da Veja sem ficar desempregada –afinal, eu acabara de entrar no Estadão quando decidi ir para lá. E tinha um filho para criar, não sou nenhuma filhinha-de-papai para me dar ao luxo de ficar sem trabalhar.

Para driblar as dificuldades, minha amiga e chefe escalou outra repórter para trabalhar em parceria comigo: eu fazia a apuração pelo lado petista a partir de uma pauta sugerida por mim e ela redigia o texto e apurava o lado do PSDB, incluindo os obrigatórios elogios ao tucanato, como na reportagem dos políticos “picolés de chuchu”. Quem acompanha meu trabalho há mais tempo sabe que essa é uma pauta tipicamente minha, para tirar sarro de políticos. Foi transformada por Veja em uma peça de bajulação a Geraldo Alckmin –reparem que a reportagem em questão é assinada em dupla com outra pessoa, assim como várias outras do meu curto período na revista.

Algumas alterações foram menos dramáticas: o perfil do advogado Kakay, apesar de nenhuma frase do texto ter sido escrita por mim, pelo menos manteve-se fiel ao que apurei, não tem nada do que me envergonhe ali. A hilária história do “embargo auricular” foi descoberta minha, e já foi citada em vários perfis dele depois. Mas o único texto integralmente meu, desde o título, é a ótima entrevista que fiz com a namorada do senador Eduardo Suplicy, Mônica Dallari. Um furo. Sou, antes de tudo, uma repórter. E minha maior especialidade (é a segunda vez que volto a elas neste texto) sempre foram as entrevistas. Tenho um belo portfólio, modéstia à parte: escritores, políticos, atletas, cineastas.

Em revista, mais do que em jornal, pode acontecer de o redator-chefe modificar um pouco seu texto, isso não é incomum. Mas o difícil de tolerar em Veja, para mim, além de eles mexerem no texto todo, eram as torcidas de raciocínio. Certa vez, fui convocada a colaborar em uma reportagem sobre educação e me pediram alguém para falar sobre cotas. Lembrei de um antigo colega da faculdade que era do movimento negro, liguei para ele e peguei uma frase favorável às cotas. Qual não foi a minha surpresa quando a autora do texto simplesmente transformou a frase dele em contrária às cotas! Fiquei furiosa e felizmente, neste caso, consegui reverter. Mas o pior estava por vir.

Quando as discussões com minha chefe começaram a desandar em gritaria na redação, decidi que estava na hora de sair. Escrevi um e-mail para ela dizendo que preferia manter sua amizade e me demiti da revista. Ela aceitou, me pediu um mês para arranjar outra pessoa e saiu de férias. Neste meio tempo, me pediram uma matéria sobre as dívidas que Marta Suplicy deixaria a seu sucessor na prefeitura de São Paulo, que não eram mesmo coisa pequena. Mas no texto aconteceu algo pelo qual nunca passei em mais de 20 anos de carreira: foi incluída uma frase, entre aspas, que não apurei.

Em 14 anos de Folha de S.Paulo, entre indas e vindas, como repórter fixa ou colaboradora, jamais modificaram um texto meu desta maneira. Em seis anos de CartaCapital, muito menos. Em nenhum lugar onde trabalhei aconteceu algo nem sequer parecido. Está lá a frase, no primeiro parágrafo da matéria: “Parece a madrasta de Cinderela”. Não sei quem disse isto. Eu não a ouvi de ninguém, mesmo porque não tenho ascendência italiana nem conheço ninguém em Roma. Quando minha chefe chegou de férias, me encontrou arrasada. Tenho certeza que, se ela estivesse ali, a frase não teria aparecido magicamente no texto. Detalhe: não me importaria de fazer uma reportagem crítica ao PT ou a quem quer que fosse, desde que eu a tivesse escrito –e que fosse verdade. Isso se chama profissionalismo.

Felizmente, almas boas me ajudaram a sair da Veja logo depois das férias coletivas de final de ano, e em fevereiro eu começaria na revista VIP, onde já havia atuado como colunista, no ano anterior. Passei dois anos e meio na VIP, de onde não tenho nenhuma queixa, pelo contrário. Voltei a ter a coluna, fiz matérias engraçadas e algumas entrevistas bobas com bonitonas da capa, mas também com pessoas interessantíssimas, como o cineasta Hector Babenco, o jogador Zico e o produtor musical Nelson Motta, entre outras. (Com o tempo, postarei elas aqui, na seção vintage do blog.) Ironia: enquanto na Veja o que escrevia era trucidado, na VIP uma coluna minha concorreu ao prêmio Abril de 2006 como melhor texto do ano na categoria artigo.

Uma tarde, na VIP, uma das advogadas da editora Abril entrou em contato comigo para me comunicar que Marta Suplicy estava processando a Veja por conta daquela reportagem, e me perguntou quem foi o “jornalista italiano” que me disse a frase. Perguntei se tinha conhecimento de que as matérias da Veja eram mexidas depois de escritas, e ela me disse que sim. Falei, então, que não fora eu quem apurara aquela história e não tinha falado com jornalista italiano algum. Nunca soube o resultado do processo.

Se você me perguntar: mas isso acontece com todos os jornalistas que trabalham na Veja e eles aceitam, são coniventes com essa prática? Não sei, só posso falar por mim. Não sou o tipo de jornalista que coleciona inimigos. Coleciono amigos, essa é minha natureza. Tenho amigos em todos os lugares em que atuei como repórter, inclusive na Veja. Posso dizer que tem vários jornalistas excelentes na revista, por quem tenho apreço genuíno – minha querida amiga, por exemplo. Mas desprezo o veículo onde trabalham. Tenho razões de sobra para isso. Sinto consideração e carinho por todas as redações por onde passei. Respeito a editora Abril. Veja, não.

E sabem o que é pior disso tudo? Nunca entrevistei Maradona.


Cynara Menezes é jornalista e editora do blog Socialista Morena, na Carta Capital.

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OBS.: Eu tenho a mesma fascinação pela Folha, assinava até. Infelizmente, em Mesquita, Baixada Fluminense, poucos a leem (bem, acho que não era apenas eu) e isso tornou inviável (para o diário) a sua entrega. A Morena pelas tantas manchates, eu, por ser um jornal muito bem escrito, diagramado, com cadernos culturais que dão banho nos outros (O Globo não chega perto do cheiro). Até me inscrevi online, certa vez, para trabalhar na Folha (eles nunca me chamaram, é certo). Assim como a Morena, nutro a mesma decepção. Uma pena um jornal com essa grandeza ficar fadado a virar a Veja.

OBS2.: A Veja... Bem, escrevo apenas isso: uma vez o A. Nunes escreveu uma besteira sobre o Lula não ter o hábito da leitura. Aliás, dizer que o Nunes escreve besteira é uma redundância. Digitei no comentário, daquele artigo específico, o verso "Eu presto atenção ao que você diz, mas você não me diz nada", do (ou quase do) Humberto Gessinger. O que sai publicado? Isto: "Eu presto atenção ao que você diz." 
Preciso dizer mais alguma coisa sobre este panfleto reacionário?

 

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

Os deuses devem peidar


Minha monografia de conclusão do curso de Letras (Literatura), ano 2002, chama-se Uma Construção: alicerces, tijolos e operários e traz a análise do poema Construção, de Chico Buarque. Claro que, para falar do poema, foi preciso falar do autor e do momento histórico em que estava inserido enquanto artista e cidadão.

Gostava do Chico, achava algumas músicas totalmente maravilhosas e, essa (Construção), um dos muitos marcos zero da música universal. Ela é brilhante em todos os aspectos estruturais, rítmicos, desde o encaixe das proparoxítonas na última palavra de cada verso à desconstrução das orações, da lógica, da humanização. Poema brutal, raro diamante. E a música em pleno sexo com o poema, alimentando-o, elevando-o. Evolui junto com o poema, acrescentando, crescendo em corpo junto aos versos. Quando o operário morre, os metais dão vida às sirenes e buzinas de todos os tipos. É o trânsito sendo atrapalhado pelo “pacote” flácido, tímido, náufrago. Coisa de gênio.

Confesso que foi a partir desta pesquisa que descobri o grande artista. Humano, bastante humano. Filho da classe média intelectualizada, fora proibido pelo pai de sair à rua até completar a maior idade, pois, ainda adolescente, tinha como passatempo “puxar carros” para dar uma volta pelo bairro; depois os abandonava. Um gostoso delinquente, como muitos dos nossos jovens.  

Eu adoro os gênios humanizados, portanto, virei um grande admirador das obras do Chico.

Isto responde, certamente, ao meu completo desapego às religiões. São todos muito divinos para mim. O homem Jesus, este marxista lindo, este quese-feminista glorioso, que quis dividir igualmente, em irmandade, tanto corpo quanto alma, não importando se homem ou mulher, intelectual ou bruto, rico ou pobre; o maior socialista daquelas terras áridas, o grande humanista antes mesmo do ocidente europeu surgir. Enfim, deste homem, que quis revolucionar a partir da justiça e da igualdade, eu tenho o maior amor, a maior das emoções. Mas esse que anda sobre águas, ressuscita mortos, esse misto de X-men bebendo red bull, esse que o status quo “divinou”; esse não me diz muita coisa.

Eu adoro os deuses humanizados, portanto, virei um fã do Jesus, aquele antes do cristo.

Faço esta singela revelação porque o mundo anda com uma vontade enorme de consumir divindades. Nós compramos, vestimos, comemos, multiplicamos o divino. O artista não precisa ter talento. Hoje, basta ser famoso. “O que você faz”? “Nada, sou famoso”. Ser celebridade virou profissão e, mais perigoso, o caminho para a felicidade. E são muitos peitos e muitas bundas que nada dizem e nem querem dizer; são músculos, sucos, dietas, em busca de um corpo e sorriso que nunca teremos porque aqueles da revista e dos programas não passam de photoshop e maquiagem pesada.

Quando as celebridades são pesos pesados então... A assessoria de imprensa deles (sim, porque todos têm uma assessoria de imprensa) quer fazer você acreditar que eles não peidam, não cagam e nem ficam bêbados ou arrotam ou fabricam remela. São cristãos que frequentam sinagogas e batem cabeça para Alá. São para todos os gostos e tentam agradar a todos. Uma divindade, enfim.

Pena.

Então, quando alguém resolve contar a vida desse deus, desse falo imprescindível, e revela que, aos cinco anos, o pequeno sol urinava na cama ou, aos 15, cigarro só o de maconha, alguém pula lá do vigésimo andar convocando os arcanjos! Heresia! Fogueira no escritor ateu! Ele tem as duas pernas, por Júpter!
Procure saber se não é assim.

 Pena.

Eu adoro o artista com defeitos, a dedicação impregnada de suor, o trabalho honesto. Se os meus gênios cometem erros, tanto melhor, sinal de que estão mais pertos de mim e valem o dinheiro que gasto nos seus livros e discos.

Do contrário, é melhor beber um red bull ou ir à igreja. Artista, para ter o meu respeito, tem que ser humano. E peidar.

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quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Os segredos de uma prisioneira esquecida


Por Bolívar Torres
Caderno Prosa e Verso

Jornal O Globo, 12 de outubro, página 06

Assessora da Comissão da Verdade do Rio, a jornalista Denise Assis vive assombrada por interrogações, mistérios e lacunas. Desde maio deste ano, ela investiga, em uma sala do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, o destino de 148 desaparecidos ou mortos durante a ditadura militar. Uma rotina em que se equilibram as funções de historiador, detetive, guardião da memória, entre muitas outras responsabilidades.

O trabalho exige paciência e esmero, um mergulho nos arquivos confidenciais, registros de polícia — uma infinitude de fichas e listas que, ao serem cruzadas e associadas, abrem frestas para um dos períodos mais sombrios do país. Cada pasta empoeirada pode esconder uma pista. Um desfecho. Um consolo para as famílias daqueles que sumiram inexplicavelmente do radar da sociedade.

— Durmo e acordo pensando no destino destes procurados — conta Denise. — É uma preocupação constante, porque existe uma expectativa enorme da sociedade e, principalmente, dos familiares. A cada uma dessas pessoas corresponde um drama.

Trajetórias interrompidas e histórias mal contadas sempre moveram a carreira de Denise. Mas há uma, em especial, que nunca saiu da sua mira: trata-se do caso de Maurina Borges da Silveira, uma freira presa por “atividades subversivas”. O fato real rendeu a Denise uma série de reportagens publicadas no “Jornal do Brasil” em 2003. E serviu de inspiração para a protagonista fictícia de seu primeiro romance histórico, “Imaculada” (Topbooks), lançado no último dia 8, em uma rara pausa no seu trabalho para a Comissão da Verdade.

Em 1969, Maurina dirigia um orfanato de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, quando foi avisada de que deveria esconder da polícia panfletos políticos e outros materiais “subversivos” pertencentes a jovens militantes que se reuniam no abrigo. Mais tarde, a freira justificou em uma carta que apenas pensava em proteger as crianças da instituição. Exilada no México contra sua vontade — em uma ainda mal esclarecida negociação que envolveu Igreja, militantes de esquerda e militares — suplicou para responder ao processo no Brasil, independentemente do que aquilo lhe custasse.

Denise Assis é jornalista e assessora da Comissão da Verdade do Rio
Embora desconhecido da opinião pública, o caso chegou aos ouvidos de Denise em 1977, na época recém-formada em jornalismo. Naquele momento, corria o rumor de que a madre teria sido abusada por seus torturadores — e engravidado. O fato embaraçoso — tanto para a Igreja quanto para o governo — explicaria o seu exílio forçado e todas as negativas posteriores para que voltasse ao país.

Obcecada por pontas soltas, a jornalista passou mais de 20 anos tentando remontar o percurso de Maurina. Acessando arquivos até então secretos, descobriu que o próprio Ministro da Justiça de Emílio Garrastazu Médici, Alfredo Buzaid, ficou perplexo quando o governo obstruiu, por meios inconstitucionais, o regresso da exilada ao Brasil. Afinal, a madre poderia se tornar um símbolo da luta contra a violência do regime.

Não há provas de que Maurina engravidou. Pelo que foi constatado, a hipótese parece improvável. Em suas investigações, porém, Denise recuperou uma carta desconcertante, em que a religiosa relata como foi abusada por seus torturadores. Passando a mão em seus joelhos, um deles a atormentou com provocações: “Vamos, me dá uma colher de chá... Pensa que eu estou há dias longe da minha mulher!...” Em outra carta, endereçada a Buzaid em 1971, a madre reitera seu desejo de ser julgada no Brasil: “Tenho eu obrigações para com o meu país, demonstrar a minha inocência”, insistiu. Com a anistia de 1979, Maurina enfim regressou. Denise conseguiu localizá-la sete anos antes de sua morte, em 2011. Encontrou-a adoentada em um convento no interior de São Paulo, mas a congregação proibiu a madre de relatar o seu passado.

— Ela estava disposta a falar, reconhecia que já era hora de recuperar este assunto. Mas não pôde — lembra Denise. — O que me impressiona é que ela se manteve fiel aos dogmas religiosos, perdoando seus torturadores. Com o jornalismo, confirmei muitas indagações, mas não a história da gravidez. O fato de não se configurar verdadeira não atenua os horrores enfrentados por ela, mas ainda assim era a grande pergunta em torno de seu nome. O romance tenta respondê-la da minha maneira. Na ficção tudo é possível.

A freira de “Imaculada” vive um drama semelhante ao de Maurina. Mas Denise faz questão de esclarecer que compôs um personagem romanesco. No voo livre da ficção, a jornalista se autoriza a criar fatos não confirmados. Também narra sentimentos que não cabiam na esfera objetiva do jornalismo. Realça o medo, os dilemas e, principalmente, a perplexidade de uma vítima inocente. Como reagir à repressão absurda, injusta e desumana?

— Ficamos vinte anos sem tratar o tema da ditadura com a profundidade e a assiduidade que ele merece — avalia a jornalista. — Talvez a ficção seja uma maneira de fazer com que a dimensão deste período seja compreendida. Acredito que a ditadura não pode ser dividida em diferentes fases, algumas mais brandas, outras mais duras. É um bloco só: a perda da liberdade. É a opressão.

Bolívar Torres
bolivar.correa@oglobo.com.br


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

Satanás rindo

Carlos Latuff  2010

Jornal O Globo, 13 de outubro de 2013


No meu segundo dia de DOI-Codi, nos fundos do quartel da PE da Rua Barão de Mesquita, no Rio, foram me buscar na cela onde eu tinha sido jogado na véspera sem entender os motivos daquela prisão.

Bem, eram tempos complicados, o embaixador americano no Rio tinha sido sequestrado (estamos em setembro de 1969), a ditadura levara um susto. Fácil de imaginar, mostrara-se incapaz de garantir segurança para o embaixador do país mais rico do mundo.

O diplomata, Charles Burke Elbrik, fora levado de Botafogo para o Rio Comprido, isto é, da Zona Sul para a Zona Norte da cidade, sem que ninguém reparasse naquela carga valiosa.

Uma demonstração de incompetência impressionante do governo brasileiro e da própria Embaixada dos Estados Unidos. Agora era a caça desesperada para consertar de algum modo o desastre.

Sem me chamar Joaquim nem morar em Niterói, fui preso logo na noite seguinte em meio a essa caçada. Assim conheci a verdadeira sucursal do inferno em que se transformara aquele centro de torturas, numa variedade que ia das mais primárias às mais brutais.

Amigo de um dos idealizadores do sequestro eu era, sim, mas, no momento de minha prisão, não o vira pelo menos nos seis meses anteriores, não sabia rigorosamente nada de suas atividades recentes. Não tinha a menor ideia de seu envolvimento com o sequestro.

Mas isso era de pouca importância para o pessoal do DOI-Codi. Caçar era o que eles queriam, assim mostravam serviço.

Só depois da primeira noite na cadeia do DOI-Codi, no 2º. andar, é que me chamaram para interrogatório. Desci certo de que tudo se explicaria em dois minutos e eu seria libertado. Apresentaram-me a um certo tenente cujo nome não cheguei a saber, pois no DOI-Codi ninguém usava o nome no uniforme, ao contrário de todo o resto do Exército.

O tenente apontou-me uma porta e disse que o interrogatório seria na sala a que ela dava acesso. Mandou-me seguir à frente, ele iria atrás.

Depois de meia dúzia de passos deu-me um golpe tão violento no ouvido direito, com a mão em concha, que até hoje ouço mal desse ouvido, garantindo-me meu otorrino que a causa foi esse golpe brutal, a que lá chamavam de “telefone”. Foi o cartão de visitas para mim.

O interrogatório não seria com esse competentíssimo tenente. Na sala de interrogatório entregou-me ao comandante do DOI-Codi, Francisco Moacir Méier Fontenelle, tenente-coronel, se não faço confusão com essas qualificações complicadas.

Depois de rápidas formalidades, ele me disse que eu só sairia dali se desse o nome dos sequestradores do embaixador americano e as circunstâncias do sequestro. Enquanto eu ia explicando que não sabia o nome de nenhum sequestrador, muito menos as circunstâncias do episódio, ele ia amarrando os fios de um telefone de campanha em quatro dos dedos da minha mão direita, dando folga ao dedão.

E enquanto amarrava, ria, ria gostosamente, o que me fez lembrar o porão do “Navio Negreiro”, de Castro Alves, as chicotadas zunindo nas costas dos negros caçados na África para serem escravos no Brasil. “E ri-se Satanás”, diz o poeta.

E Fontenelle não parava de rir enquanto amarrava meus dedos aos fios do telefone elétrico. “E ri-se Satanás”, eu repetia comigo mesmo, sem imaginar nem de longe a força de um choque de fios elétricos ligados a um telefone de campanha.

Não vou descrever aqui os pulos e berros que dei, que qualquer um dá, com aqueles choques. A impressão que se tem é que se trata de um choque mortal. Impossível dizer quantos minutos aquilo durou, ao fim dos quais ele me assegurou que repetiria a dose muitas vezes, diariamente, até que eu desse o nome dos sequestradores.

Seguiram-se dias tão tumultuados no Brasil, ao fim dos quais o general Garrastazu Médici assumiu a Presidência, para um período em que a tortura iria virar método institucional. Tortura e assassinato.

Naquele mesmo DOI-Codi de Fontenelle foram assassinados Mário Alves e Rubens Paiva. Mas chegou o momento de tornar tudo claro em relação às torturas e aos crimes no Brasil da ditadura militar. A Comissão da Verdade do Rio faz um trabalho extraordinário.

Um torturador é o mais baixo dos seres humanos, pois a tortura é por definição covarde, aplicada sempre a alguém indefeso, não poucas vezes gente de pés e mãos amarradas.

Nossa Comissão da Verdade quer transformar o local onde foi o DOI-Codi, na Tijuca, num Centro de Memória. Nada mais patriótico.

Um país que foge de sua verdade é um país de mentira. Há um certo Bolsonaro que parece ser contra a revelação dessa infâmia. Deixemo-lo investir contra a verdade, ficar a favor da covardia.

Tudo que pretendo com este depoimento simples é dar mais um passo a favor da Verdade, assim mesmo, com maiúscula. Verdade histórica, pois um país não pode fugir de sua História, ou jamais há de encontrar-se com um destino maior e mais digno.


Marcos de Castro é jornalista.


quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Os livros queimados

MÁFIA DO DENDÊ ALTERA RAZÃO SOCIAL PARA “PROCURE SABER” E LANÇA LISTA DE LIVROS PROIBIDOS


Publicado por Fora do Beiço

Semanas atrás, a Máfia do Dendê, como é fofamente conhecida a organização de artistas da MPB (Música de Padrinhos Baianos), resolveu abrir suas fileiras para músicos que, embora não-baianos, tivessem uma atitude dendê para com a vida, a carreira e os súditos. Logo, juntavam-se a Caetano, Gil e cia. astros como Chico Buarque, Djavan, Milton Nascimento, Erasmo Carlos e Vossa Majestade o Rei Roberto. Esse Os Vingadores da música nacional não poderia ter um nome que não fizesse jus à pica das galáxias ali representada, assim, Paula Lavigne, frontman do grupo, foi buscar inspiração na Via Láctea, mais especificamente, na filosofia de “Busquem conhecimento” do ET Bilu. Nascia o Procure Saber, que tem se reunido toda quarta-feira em um castelo medieval no Leblon, após as peladas de Chico e o ritual de desencatiçamento do Rei. Assim como os lendários Illuminati, os membros do Procure Saber passam suas horas de conclave imaginando melhorias para a humanidade. No intervalo de uma dessas ocasiões, Djavan, que devora literatura tal Caetano a Leonardo DiCaprio, procurava um bom lugar pra ler um livro quando, preocupado com o material literário a que os brasileiros possam estar expostos, teve a ideia de uma campanha para manter a censura a biografias não autorizadas pelo biografado. A sugestão foi imediatamente aceita pelos demais, que, sendo demais, fizeram mais: elaboraram uma lista de livros proibidos. “Se somos monstros sagrados da MPB, somos sagrados, ainda que monstros, então por que não fazer como a Santa Inquisição e criar um Index Librorum Prohibitorum, bicho?”, explicou Robertão, sempre cheio de fé cristã. De forma sábia, o primeiro Index do Procure Saber proíbe livros como “Marley e Eu” – que trata de um cachorro, e não, como deveria ser, da célebre amizade entre Bob Marley e Chico – “Ulisses” – por almejar ser tão incompreensível quanto as letras de Djavan – e a coleção “Game of Thrones” – porque Caê não quer spoilers de sua série favorita depois de “The Carrie Diaries”. Quanto às biografias, já estão liberados títulos como “Deus é Dez, Gil é Mil”, “Estacionando Carro no Leblon Sem Lenço e Sem Documento: a Arte de Caetano” e “Coroa Enxuto, Olhos Lindos, Gênio da Língua Portuguesa, Centroavante Incomparável, Escritor Jabutizado, Ex-Maridão da Marieta: Simplesmente Chico”. Já biografias caluniosas e degradantes que repassem 10% do lucro para o biografado estão totalmente autorizadas. A presidente Dilma ainda não decidiu se irá aprovar o projeto do Procure Saber. “Mulher encalhada é foda!!!”, brincou Paula Lavigne no Twitter.

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Fique por dentro dos grandes que pensaram pequeno:

Fala sério, Caetano (Carta Capital)

Paula Lavigne critica reportagem sobre biografias não autorizadas (Folha de São Paulo)

Artistas reagem (O Globo)

Alceu Valença (O Globo)