quinta-feira, 9 de junho de 2016

O que Muhammad Ali, Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela têm em comum?


ESCRITO POR GUSTAVO HENRIQUE FREIRE BARBOSA

Qual a semelhança entre Muhammad Ali, Martin Luther King Jr. e Nelson Mandela? A resposta parece ser óbvia, afinal, trata-se de três personalidades negras de grande proeminência as quais marcaram seus nomes na história por meio de seus feitos, respectivamente, no mundo esportivo, no ativismo em prol do reconhecimento de direitos civis e humanos e na política institucional que derrubou um abjeto regime de segregação racial.

Esta, afinal, é a narrativa adotada pelos meios comerciais e hegemônicos de comunicação para se referir aos três, ignorando na maioria das vezes a considerável contribuição que deram a agendas que não se alinham às premissas do establishment.

As referências ao recente falecimento de Muhammad Ali, por exemplo, vêm se concentrando na sua refinada técnica, incontestável potência e assombrosa velocidade que lhe garantiram lugar de destaque no panteão dos grandes boxeadores. Ali, entretanto, incomodava muito mais fora que dentro dos ringues. Com sua militância contra o racismo, não perdeu a oportunidade de denunciar a forte permanência de uma cultura discriminatória em solo norte-americano, na época expressa também sob a forma da política externa belicista e imperialista dos EUA. Ao se negar de forma categórica a compor as trincheiras de seu país na guerra do Vietnã, provocou: não percorreria dez mil quilômetros para assassinar um país pobre e assim dar continuidade à dominação dos brancos sobre escravos negros. Ademais, nenhum vietcongue o chamara de “crioulo”, afirmou, diferentemente do que ocorre nos EUA. Por seus fortes posicionamentos, Ali acabou sofrendo várias ameaças e chegou a ficar na iminência de ser preso, além de ter sido punido com a confiscação de seus títulos e a cassação de sua licença de boxeador em um momento onde havia vencido até então todas as 29 lutas que fizera, das quais 22 por nocaute.

Em outro momento, meio a uma discussão com jovens estudantes universitários, brancos em sua maioria, desferiu sucessivos jabs nas provocações cuja fonte era o enfadonho discurso oficial de patriotismo e defesa da pátria: “se irei morrer, morrerei aqui, lutando contra vocês. Vocês são meus inimigos. Meus inimigos são os brancos, não os vietcongues, chineses ou japoneses. Vocês são meus opositores quando eu quero liberdade, são meus opositores quando eu quero justiça, são meus opositores quando eu quero igualdade. Vocês sequer se colocariam ao meu lado na América para defender minhas crenças religiosas e querem que eu vá a outro lugar para lutar”.

O constrangimento e ameaça representada por Ali teve uma resposta cinematográfica: a criação de uma franquia onde um boxeador branco — e dócil fora dos ringues — encampava com fervor o sonho americano de superação e trabalho duro rumo ao sucesso — chegando, inclusive, a representar o embate geopolítico da Guerra Fria entre os lídimos valores norte-americanos, derradeiro estágio do desenvolvimento da civilização humana, e a ameaça bolchevique. Sobre Rocky Balboa, Ali afirmou que tem sido um lutador tão excelente que foram obrigados a criar um personagem como o “garanhão italiano” eternizado por Sylvester Stallone, trazendo uma imagem branca nas telas para contrapor à sua imagem nos ringues. “A América tem que ter suas imagens brancas”, concluiu, “não importa do que se trate. Jesus, Mulher Maravilha, Tarzan e Rocky”.

Em mais uma emblemática demonstração de subversão à doxa norte-americana, Ali ignorou o embargo econômico e as restrições de acesso à ilha e pousou em 1998 em Cuba, onde fez questão de se encontrar pessoalmente com Fidel Castro e doar 1,2 milhão de dólares em remédios e suprimentos médicos à terra de Teófilo Stevenson, outro monstro sagrado do boxe, com quem manteve uma relação de admiração e amizade até sua morte em 2012.

Da mesma maneira, Martin Luther King Jr entrou para a história com seu famoso discurso em que afirma ter um sonho, qual seja, o de que seus filhos e filhas vivam um dia em uma nação onde serão julgados pelo seu caráter ao invés da cor de suas peles. King, um destacado militante dos direitos humanos e do reconhecimento de direitos civis dos negros e negras nos Estados Unidos, seria, na esteira das ofensas dirigidas também a Ali, certamente considerado um vitimista por setores da direita hidrófoba e pela horda ensandecida de comentaristas de portais. Entretanto, seria ofendido com muito mais intensidade se pesquisassem o real significado do inofensivo sonho repetido à exaustão em todas as inserções televisivas em que aparece.

King era um declarado adepto da desobediência civil anti-imperialista adotada por Gandhi, e o fazia como tática de resposta à ofensiva conservadora e racista de autoridades e da mídia empresarial às manifestações que organizava contra o sistema e as tradições segregacionistas norte-americanas. Da mesma forma que Ali, posicionou-se contra a Guerra do Vietnã, além de ser um simpatizante de ideais socialistas, não vendo na dinâmica do modo de produção capitalista as possibilidades emancipatórias e libertadoras que alçou como propósito de vida, principalmente no que diz respeito à população afrodescendente.

John Edgar Hoover, o mítico primeiro diretor do FBI e que hoje empresta o nome ao seu quartel-general, foi ao encalço de King. Enxergando-o como uma figura perigosa e subversiva, investigou-o por possíveis ligações com o comunismo soviético, grampeou seus telefones e, em um verdadeiro ato de gangsterismo institucional, chegou a lhe enviar uma carta anônima sugerindo o suicídio, onde constavam, em tom ameaçador, as fitas contendo os áudios dos grampos de suas conversas telefônicas.

King foi assassinado em Memphis, onde havia ido com o objetivo de manifestar apoio à greve de trabalhadores da limpeza urbana. Vê-se a razão da conveniência em não se debruçar sobre o verdadeiro sentido do famoso seu sonho, limitando-se à icônica frase que, fora do contexto, pode significar qualquer coisa. Na esteira da criminalização dos direitos humanos e de seus militantes, King, definitivamente, não seria benquisto por nossos veículos de comunicação oligopolistas.

Na mesma esteira, Nelson Mandela se consagrou como o grande conciliador do século XX, homem provido de inigualável espírito público que, numa sublime demonstração de estadismo, pôs fim ao apartheid sul-africano e deu início à convivência mútua e harmoniosa entre as populações branca e negra da África do Sul. A simpática imagem de um homem sorridente e bem relacionado com outras lideranças foi reproduzida à míngua quando de sua morte, obnubilando seu passado de liderança rebelde, clandestina e revolucionária de inspirações marxistas.

A lista de desafetos de Mandela denuncia o incômodo que representou à ordem colonialista e aos interesses do capitalismo central. Margareth Thatcher o chamava de terrorista juntamente com o CNA, seu partido. Ataques de congressistas britânicos conservadores eram recorrentes, a exemplo de quando Teddy Taylor, ideologicamente alinhado a Thatcher, sugeriu que o líder africano fosse vítima de uma bala.

Nos EUA, Reagan chegou a inserir o CNA na lista de organizações terroristas, afirmando, com todas as palavras, que o regime segregacionista sul-africano era essencial para o mundo o livre. Durante a Guerra Fria, conferiram apoio logístico, financeiro e militar à manutenção do apartheid, ao passo que a União Soviética cerrou fileiras junto à oposição liderada pelo CNA. Mandela, a propósito, sempre demonstrou com entusiasmo sua forte e especial relação de admiração, respeito e gratidão a Fidel Castro e a Cuba, país que também prestou auxílio fundamental à luta contra o apartheid.

Em Problemas no Paraíso, Slavoj Zizek faz uma reflexão pertinente acerca da branda imagem de conciliador com a qual Mandela é comumente representado, arregimentando, praticamente, a unanimidade da opinião pública – e publicada – quanto ao aval acerca do símbolo de luta contra a segregação o qual se tornou. No entanto, em termos substanciais, o fim do apartheid não trouxe significativas mudanças sócio-econômicas para a África do Sul, permanecendo a população negra segregada pelo fosso da desigualdade e das parcas condições materiais de vida. Se houve uma mudança de fato, foi o surgimento de uma elite política e econômica negra, agora integrada aos restritos círculos antes limitados aos brancos. Seria exatamente por essa razão, pelo fato das mudanças terem sido essencialmente simbólicas em detrimento de seu sentido efetivo e substantivo, que Mandela, ao deixar de ser uma ameaça aos alicerces do sistema, consagrou-se com a unanimidade inclusive entre quem um dia o chamou de terrorista, sintoma de sua derrota, portanto, e não de seu êxito.

Com muita frequência as detrações, calúnias, perseguições e ameaças perpetradas por parte de arautos da ordem posta como John Edgar Roover, Margareth Thatcher e Ronald Reagan servem como termômetros referenciais do incômodo causado pelos perseguidos. Outro aspecto que evidencia isto é o processo de desideologização – ou contra-ideologização – ao qual são submetidos nomes cujo furor vulcânico de suas inspirações para lutas emancipatórias do não pode ser contido. É exatamente os casos de Ali, Mandela e Luther King Jr, moldados conforme as conveniências de um sistema feito para manter tudo como está e se apresentar com consectário do melhor dos mundos possíveis. A ignorância quanto a figura Malcolm X, outra grande personalidade negra contemporânea aos três, muçulmano como Ali, socialista como Mandela e líder de movimentos negros de luta por direitos humanos como King, demonstra como a impossibilidade de distorcer e domesticar suas radicais ideias acabou por relegá-lo, quando muito, aos rodapés da historiografia oficial, buscando enterrá-lo sem nome na lápide e ritos fúnebres de reconhecimento de sua luta. Esqueceram, todavia, que não há com desplantar sementes.