quarta-feira, 22 de março de 2017

O juiz que sequestrou um jornalista

Por Felipe Pena
Jornal Extra

"Tenho Pena dele" é o nome da página no facebook que minha mulher fez pra mim.

No começo, não achei a ideia boa. Argumentei que não ficaria bem perante a minha comunidade, mas acabei cedendo às pressões do amor midiático da Karlinha, esposa amada e zelosa.

Como sabem, sou juiz da Liga de Futebol de Várzea do meu bairro. Quando me visto de preto, todos me respeitam a abaixam a cabeça. Apito com força e conhecimento. Sou formado pela Soccer Judge Association, em Harvard, capital intelectual do esporte.

No campo, minhas decisões são rápidas. Não hesito em distribuir cartões vermelhos. Já mandei muita gente pro chuveiro mais cedo. Em alguns casos, deixo o jogador trancado no vestiário por meses até que ele entregue o técnico que o instruiu a entrar de carrinho no adversário. Aí expulso o técnico, o massagista e até o porteiro do clube. Sou o justiceiro da liga.

Os torcedores me amam. Quer dizer, a quase totalidade me ama. Os de amarelo amam um pouco mais. Tiram até selfies comigo quando vou a restaurantes, shows e homenagens. Mas, no ano passado, tivemos um pequeno problema de comunicação e minha dileta consorte pediu vênia para fazer a tal página no livro dos rostos.

"Será um desagravo a você" – dizia, com uma admiração karnal, ultrapassando a metafísica e querendo me defender de um episódio controverso.

Ela se referia ao fato de eu ter divulgado gravações de conversas com os jogadores durante uma partida. Na época, vazei tudo para a imprensa, mesmo sabendo que era ilegal. O importante era garantir a transparência do jogo através do grampo no meu apito. Mas o pessoal da federação não gostou e puxou a minha orelha. Quer saber? Obrei pra eles.

O problema mesmo é que ficaram irritadinhos porque chamei o capitão do time adversário pra uma conversa coercitiva com meus lindos e poderosos bandeirinhas. Nada demais, só uma vasculhada nas gavetas e duas ou três invasões de domicílio pra causar um AVC nos familiares.

E ainda fui obrigado a adiar a conversa porque um jornalista cretino vazou a operação. Quem ele pensa que é? Só quem vaza informação nesse jogo sou eu, meu querido. "Vai se arrepender" – pensei, e aguardei um ano pra dar o troco. Um ano de paciência, mas a hora do sujeito finalmente chegou.

Hoje, meti uma coercitiva nele. O meliante do microfone foi arrancado de casa pelos meus bandeirinhas musculosos (comandados por um hipster todo trabalhado no fascismo) e conduzido para a sede da federação dos juízes. E ainda levei computadores, celular, tablet e aquela parafernália eletrônica do blog. Se ele conseguir sair do cativeiro, vai ficar um bom tempo sem trabalhar.

Os colegas do cara nem reclamaram. São todos meus amigos e vivem das informações que vazo pra eles. Se não fosse por mim, não teriam notícias. Acha que alguém é louco de me peitar nesse bairro?

O futebol é meu esporte.

Sou o dono da bola e faço as regras aqui na várzea.

Os poucos que não se enquadram enfrentam a fúria de Karla, minha esposa, minha protetora e minha blogueira.

Entrem na página que ela fez pra mim no facebook.

Hoje, deixei um vídeo pra vocês. Amanhã, mostrarei as algemas do cativeiro e as fotos do sequestrado para aumentar o número de views.

Eu sei, eu sei: quando um juiz se preocupa com a popularidade, não faz justiça, faz política.

Mas quem se importa?

Isso é apenas futebol.

De bairro.

E de várzea.

Tenho pena de mim.



Felipe Pena é jornalista, escritor e psicanalista. Doutor em literatura pela PUC-Rio, com pós-doutorado pela Sorbonne III, foi visiting scholar da NYU e comentarista da GloboNews. É autor de 15 livros, entre eles o ensaio "No jornalismo não há fibrose", finalista do prêmio Jabuti.


terça-feira, 21 de março de 2017

Do fluxo

“Por que eu? Minha irmã era, é muito mais bonita”. E ela nunca entendeu bem o porquê da escolha ou a movimentação dos astros. “Porque você brilha quando sorri com os lábios fechados, lábios carnudos e bem feitos, com os olhos grandes de jabuticaba e lindamente sedutores. Porque você explode quando gargalha, quando ajeita os cabelos rebeldes”. E ele gostava da voz rouca, do jeito triste de ficar séria, da facilidade em dizer foda-se.
Depois que ficaram, outras coisas e momentos incorporaram-se naturalmente àquela especulação. Ele tinha fascínio pelo formato do seu rosto, pelo jeito como ela beijava, sua paixão e excitação, seus seios pequenos, seu espírito decidido.
Claro que ele era muito infantil para ela, uma mulher completa em todo o seu estado de luz e sombras e, naturalmente, demorou pouco pra ela perceber isso. O término não foi grande coisa, ele sabia disfarçar a dor e atuar sobre a superfície do choro e foram abraçados e fazendo brincadeiras que se despediram àquela noite.
Ela não teve dificuldade de ajeitar a vida, pois pulsante e imediata, sabia de cor fazer omelete com os ovos quebrados; ele sofreu um pouco, pois pulsante e exageradamente abraçado a coisas como The Cure, e por que não? Ele era desse jeito meio dark e a beleza peculiar de se mover no mundo com essa visão niilista era um charme a parte; e ele viveu para desmentir isso e não ser convincente.
Certamente eles encontraram outros amores, pois viver demanda um bater de coração constante, mesmo que não ritmado. E soluços e contratempos fazem parte dos caminhos escolhidos. Uns falam que é preciso para que se haja evolução. Ele acha, apenas, que, enquanto matemática, números negativos e/ou fracionados também estão dentro do conjunto, e foi vivendo com ou sem dificuldade.
Um dia, encontraram-se num café, ela diz que havia sol, ele jura que ameaçava chover. Ela pediu frapê, ele, expresso. “Nunca entendi o porquê de você preferir a mim”, foi o que ela disse quando se sentaram. Ter respostas era algo absolutamente necessário para o seu espírito desbravador. Ele olhou-a com muita atenção enquanto fazia esta, para ele, pergunta boba, e reparou que ela sorria de lábios fechados, com o olhar radiante. Passaram-se 15 anos e a mulher continuava explodindo na retina dele.
“Eu te amo. Não sei explicar de outra forma.”
Despediram-se prometendo um novo encontro que nunca aconteceu. É do fluxo essas pequenas mentiras, um bálsamo.


 E ele nunca conseguiu esquecer a explosão de cores que eram o olhar e o sorriso dela, mas foi feliz à sua maneira e nunca deixou transparecer a energia atômica que carregava dentro de si. Seus filhos questionavam, às vezes, o porquê de tanto silêncio em dias de muito brilho e praia; ele apenas sorria e abaixava a cabeça. O amor também tem as suas quietudes.