segunda-feira, 25 de abril de 2011

O mar, a música e a porcaria

Afastou-se da porcaria que era o seu marido, juntou umas poucas peças de roupa que realmente prestavam, empacotou alguns discos que ela achava imprescindível para começar uma vida: Joni Mitchell, Petti Smith, Clapton, Coltrane, Stanley Jordan. Claro, era uma melancólica e contempladora, gostava de vodca vagabunda e baseado, mas em matéria de uísque, só aceitava os de 12 anos. Ouvia, sempre ao chegar do trabalho, música na penumbra do apartamento, com aquele mar batendo em ritmos jazzísticos. Aí ele chegava e acabava com tudo, com o jazz arenoso e salgado, com o uísque cowboy e a música, sempre no contraponto das tragadas de cigarro. Afastou-se da porcaria porque não aguentava mais aquele cheiro de perfume que não tinha na penteadeira, nem no banheiro; não aguentava o jantar de negócios que terminava às duas da manhã todas as terças e quintas, nem as vísceras do domingo com a família dele e todo aquele papo furado do “eu te amo” antes do sexo mensal e muquirana que não a deixava gozar. Planejou com cuidado o aluguel de um flat, telefonou para o filho que morava em São Paulo, desperdiçou outras “n” ligações para amigos e colegas de trabalho, colocou na mensagem do facebook o novo endereço e gastou todo o batom no espelho da penteadeira. Afastou-se da porcaria antes dele chegar à casa e ler o que ela havia escrito: “Vai tomar no cu você e a sua puta!”

sexta-feira, 8 de abril de 2011

?!

...e era ele a ser tragado pelos desdobramentos de sua mente, percevejo de si, acabou por indecifrar o sentido do cosmos resolvendo ser Jesus e pregando o sentido cartesiano de Buda. Entre a espada de Jorge ou a de Moisés, intitulou-se a besta dos tempos modernos e recitou Crowley, mas o que queria mesmo era provar-se islâmico para, mais tarde, defender a Cabala. Era exatamente a personificação do que desejamos expurgar de nós mesmos.

Reinventar o Todo e subvertê-lo aos caprichos humanos, humanizando-o ao limite da irracionalidade é o que fazemos diariamente, contudo, não se admite que o Leiteiro morra! Não o Leiteiro de Drummond! A sua natureza pura e primaveril, bela e angelical, o seu amanhecer é a nossa salvação! O Leiteiro é o redentor dos nossos demônios.

...e era a besta a ser tragada pelo labirinto, queimando o Rei de Espadas, no vazio absoluto de Malkuth invertido. Ele era o intrago de se sentir Kether.

Foi neste desnorteio que adentrou a escola.

Foi nesta ânsia de ser supremo que baleou os brasileirinhos.

Foi querendo ser Shiva que rebatizou-se Louco, simplesmente. Não era mais um homem, mas o animal, o criminoso, a loucura central, o desnível niilítico, a catarse da nossa própria miséria.

E foi neste atormentado acontecimento que o Leiteiro morreu.

E entre o sangue e o leite, transformando a cor, confirmando a aurora, foi que a besta teve o seu momento de vacilo e foi abatido por um Sargento carioca, que conhecia o João Hélio, que era pai da Lavínia e tio da Isabela.

O Sargento, cujo nome consta escrito no seu uniforme, junto com o seu tipo sanguíneo, lamentou não ter salvado mais. Não soube ele que tinha salvado o mundo inteiro.

A Morte do Leiteiro

A Cyro Novaes

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morador na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.


Carlos Drummond de Andrade


quinta-feira, 7 de abril de 2011

Jornalista

Hoje é dia do jornalista... Bom dia para lembrar que existem (e existiram) grandes homens na função difícil e amargurada do jornalista. Difícil? Sim. Procurar a verdade, custe o que custar, às vezes, custa mais caro do que se possa prever, querer, pensar. Difícil e amargurada porque a verdade não lhe traz alento algum, apenas àquela sensação de dever cumprido.

Verdade é uma palavra complicada, principalmente porque vem sempre desvinculada do absolutismo. Buscar a verdade é algo tão difícil quanto amargurado, pois não há olhos o suficiente para focar todos os fatos, fotos, formas, para analisar todos os ângulos, âmagos, âmbulos. Eis o caminho do jornalista. Mesmo quando a verdade é ululante e pulsa nos cornos, a dúvida precisa imperar. Jornalista é uma palavra complicada. Por isso, talvez, existam tão poucos jornalistas de verdade.

Minha amiga Ana Cristina, jornalista, postou a seguinte mensagem (extraída do Sindicato dos Jornalistas do Amapá):

Para muitos, o jornalista é testemunha ocular da história; para outros, é um narrador do seu tempo. Já o Sindicato dos Jornalistas do Amapá prefere uma definição mais ética e política: o jornalista deve ser um defensor intransigente da liberdade de expressão, da sociedade e da democracia.

Amém.