quinta-feira, 27 de março de 2014

Nico, o mais importante também era o voo, porque destino não havia

Escrito por Adelaide Ivánova


Suprimento Cultural do Diário Oficial do Estado (PE)


Arte: Janio Santos

Drama of exile é um disco, é um nome de disco. Podia ser uma poesia, podia ser um outdoor, podia ser uma tatuagem. Dificilmente se conseguiria definir o que é o exílio em tão poucos toques. Fiona Apple tem um título de álbum com 90 palavras e entrou pro Livro dos Recordes. Nico, a dona de Drama of exile, no entanto, nunca ganhou prêmio pela concisão. Somos chegados a exageros, aumentos, superações. Mas o exílio é apenas isso, minha filha, é drama. Não se precisa de 90 palavras pra explicar.

O curioso é que não se sabe muito bem qual o drama do exílio de Nico, e em relação à qual cidade ele (o drama) estaria relacionado. Veja, a questão central do exílio não é para onde se vai, mas o que se deixa para trás. Mas onde está o drama, quando aquilo que se deixa pra trás lhe é indiferente? Desde quando ciganos sentem saudade?

Nico saiu de Berlim na década de 1950, como chegou — porque deu. Ela nunca mais voltou a viver na cidade. Em 1940, ela veio com mãe, aos 2 anos, fugindo da Colônia destruída durante a Segunda Guerra. Veio de uma cidade em ruínas para outra, porque o que estava em decadência era mais a vida do que as coisas.

E em 1956 ela foi embora para Paris e, daí em diante, Nico, nascida Christa Paeffgen, criada nas ruas elegantes da Berlim ocidental e americanizada, viveu em pelo menos mais cinco cidades: Paris, sim, e mais Nova York, Londres, Manchester, Ibiza. Não tinha endereço fixo, as correspondências retornavam a seus remetentes.

A condição do exilado — seja ele exilado por necessidade, como Neruda, ou por desgosto, como Saramago — é que sua nostalgia é geográfica, e nisto está tudo.

Mas em Drama of exile, embora o título seja o que é, em nenhum momento Nico trabalha com perda, abandono ou saudade de um lugar. Das sete canções compostas por ela, seis usam repetidamente a palavra “light”. No total, o termo é repetido 10 vezes. A mim me parece, então, que mais do que um lar, Nico sentia saudade de algo maior — não é isso que saudade é, afinal?, a falta de tudo? Na época que lançou o álbum, Nico vivia em Manchester. Manchester, diz ela numa entrevista de 1975, parece com Berlim em muitos aspectos, mas não diz quais.

O único lugar que merece menção, num disco que se chama “drama do exílio”, é o aeroporto. Em “Orly flight”, um poeminha besta sobre as luzes da cidade de Paris quando vistas de cima, ela até revela para onde vai — Madrid — mas cita a cidade de maneira tão frívola que é como se o mais importante fosse o voo, e não o destino.

Não por acaso, é com a frase “Ela era uma verdadeira cigana” que seu filho, Ari Päffgen, a define, no documentário Nico icon.


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Em 1964, quando já vivia em Nova York, Nico foi apresentada a Andy Warhol. Diz-se que a primeira coisa que ela falou, enquanto mordia uma laranja vinda de sua taça de ponche, foi: “Eu só gosto de frutas quando elas estão boiando no álcool”.

Uma década depois, Nico foi visitar seu filho, que ela não via há 36 meses. O menino era criado pela avó, mãe de Alain Delon, em Paris. Nico veio de Nova York para turnê europeia e passou em Bourg-la-Reine para vê-lo. O único presente que a cantora trouxe para o filho: uma laranja.

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Uma semana depois da morte de Lou Reed, num domingo de manhã (quando mais?), achei por bem visitar o túmulo de Nico, que foi enterrada ao lado da mãe, no Cemitério-floresta de Grunewald. Eu acho importante ritualizar as coisas. É a chance que a gente tem de deixar a vida vivível. Pouco importa se o cemitério fica à 14km da minha casa e o website da companhia de transporte de Berlim sugira que eu pegue um bonde, um trem e um ônibus, pelo qual deveria esperar um hora, e que depois ande mais uns 20 minutos no meio da floresta, num trajeto que leva duas horas e meia, dentro da mesma cidade. Já que é pra ritualizar, então que se faça assim, demoradamente.

Eu poderia ter ido de bicicleta, o que me tomaria apenas uma hora. Mas não se anda de bicicleta em Berlim, em outubro. Fiquei pensando: se estivesse em Berlim, em vez de Ibiza, Nico teria morrido? É assim: a morte é circunstancial, ou absoluta?

Quando Nico morreu, eu tinha seis anos e acabara de ganhar minha primeira bicicleta, e andava em círculos na rua sem saída em que morava, no Espinheiro, porque não tinha sido autorizada, pelas 300 mulheres que me criavam, a sair da rua. Aí o mais importante também era o voo, porque destino não havia.

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Eu levei uma vida pra chegar nas redondezas do terreno que era, outrora, necrópole dos suicidas. Os mortos chegaram primeiro — eram enterrados ou jogados por ali, no meio da floresta, ao acaso, sem lápide, porque um suicida era uma vergonha para família. A definição daquele espaço como sendo um cemitério, no entanto, só veio depois, em 1920, quando se decidiu que toda cidade deveria ter um cemitério não vinculado à Igreja, de modo que suicidas e outros mortos de pouca honra pudessem ter um enterro digno. Em 1929, por seu caráter idílico, defuntos de “morte morrida” começaram a ser enterrados no local. Nico chegou em 1988 e foi sepultada com seu nome de batismo, ao lado da mãe.

Quando eu desci do trem, na antepenúltima parte da minha viagem, o mundo cheirava a pinheiro, e dei de cara com estacionamento de bicicleta, que estava cheio. Ali, aboletada ao lado de não-sei-quantas magrelas, esperei uma eternidade pelo ônibus. É que ele só passa uma vez por hora, nos finais de semana. Nos dias úteis, três vezes ao dia.

Veja mesmo: cemitério está aberto todos os dias, inclusive no inverno. Mas fica aberto pra ninguém, porque o ônibus nunca chega.

Mas uma hora ele chegou e depois de 23 minutos de viagem, desembarquei e saí andando, seguindo as instruções do Google maps, anotadas num papel de padaria. Já andava há 45 minutos no meio do bosque, sem achar o cemitério. Ali, me sentindo Henry Hudson dos mortos, dando alto valor à minha missão poético-sociológica e citando pra mim mesma Oscar Wilde, dei de cara com um pato. Um pato. Um ordinário, roliço e concreto pato.

Eu nunca achei o cemitério, nem a tumba onde Christa está ao lado da mãe, sobrenomes identificados, afinal suicidas são os outros. Eu nunca encontrei Nico, nem fantasmas, encontrei foi um pato. E em sua companhia, finalmente vi coisas que existiam no caminho: uma bola roxa, uma casa, um tronco, papel alumínio, placa. Se não fosse o pato, não teria prestado atenção em nada, mais focada no destino que no voo.

Talvez, se Nico tivesse levado para Ari algo extraordinário, em vez de uma laranja, ninguém mais tarde mencionasse o fato em biografias. E se eu tivesse encontrado um fantasma, no lugar de um pato, não seria sacodida pela inevitável trivialidade das coisas. Ainda bem, tinha um pato.

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A hora que fiquei sentada esperando o ônibus pareceu infinita e inútil. Já a hora que passei procurando um cemitério que nunca encontrei, pareceu insuficiente. Como será que o tempo passa pros mortos? É o tempo lento da espera ou o tempo escasso da procura? Wislawa Szymborska diz que se devia morrer apenas o estritamente necessário. Já eu, pedindo licença pela intromissão do pitaco, penso que se é pra morrer, então que se morra totalmente, que se morra muito, para que não haja mais, nem que seja uma vez na vida, nem a espera, nem a procura.

Nico tinha um aneurisma não diagnosticado e, em junho de 1988, em Ibiza, levou uma queda de bicicleta e morreu. Dessa vez, afinal, tinha um destino: pedalava para casa.




quarta-feira, 26 de março de 2014

O gato e a lebre - O México é um país pobre e desigual


A OCDE – Organização para o Comércio e o Desenvolvimento Econômico, divulgou um relatório, na última terça-feira, classificando o México e o Chile, ambos formalmente sócios da “Aliança do Pacífico”, como os dois países com maior desigualdade do grupo.

Até aí, nada a estranhar, a OCDE reúne países teoricamente desenvolvidos, que exibem dados sociais – remanescentes do período anterior à crise economia – melhores do que a da maioria dos países latino-americanos, mas eles tem se deteriorado rapidamente nos últimos anos.

A dívida explodiu entre os 34 membros da OCDE, principalmente os PIIGS (Portugal, Itália, Irlanda e Espanha). E o desemprego aumentou para um total de 48 milhões de pessoas, 15 milhões a mais do que em 2007, alcançando em alguns lugares, como a própria Espanha, taxas próximas a 30%.

O Chile – costumeiramente apresentado como um “milagre” latino-americano, que muitos atribuem a Pinochet – consegue ser ainda mais desigual que o México.

Mas o México perde para o Chile em renda. A sua é a menor da OCDE, e uma das mais baixas entre os países latino-americanos.

O país de Zapata, também cantado pela mídia como “exemplo” para o continente, tem, segundo estatística do FMI de 2012, renda menor que a do Chile, Uruguai, Brasil, Argentina e Venezuela.

E o pior, no lugar de crescer, ela tem diminuído nos últimos três anos. Isso, considerando-se que o México não conta com uma legislação trabalhista ou uma rede de proteção social, ou programas de renda mínima, que possam garantir um mínimo de dignidade para a população.

Na nação dos tacos e da tequila – o que explica parte de seu “sucesso” manufatureiro na montagem e maquiagem, com peças de terceiros, de produtos destinados aos Estados Unidos – sequer existe seguro-desemprego.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho, quase 60% dos empregos no México são informais, contra 28% na Argentina, 34% no Brasil, 45% na Colômbia, e 45% no Peru. E quatro em cada dez cidadãos mexicanos não conseguem dinheiro para pagar uma cesta básica a cada 30 dias.

Como faziam os meios de comunicação espanhóis, que achavam que a Espanha estava uma maravilha, quando na verdade, já estava sendo engolida pela crise, os jornais mexicanos se gabam do país ter entrado para o NAFTA, o acordo que os uniu, economicamente, ao Canadá e aos Estados Unidos, e de terem assinado, com outros países, dezenas de acordos bilaterais de livre comércio.

Mas não falam dos déficits históricos em sua balança comercial, que sua renda per capita está praticamente estagnada há mais de duas décadas, e que seu poder de compra tem caído, no lugar de aumentar, nos últimos anos.

O problema da fome, do abastecimento e da inflação de alimentos também é muito grave no membro mais pobre do NAFTA.

Muita gente acha que o Brasil tem que parar de mandar alimentos para a Venezuela, mas não sabe que o governo mexicano está ultimando a compra, em nosso país, em caráter emergencial, de 300.000 toneladas de frango, para impedir que o preço das proteínas exploda, e que falte comida nos supermercados.

Muitos mexicanos também acreditam na balela de que o México é grande exportador de manufaturas, enquanto o Brasil só exporta commodities – esquecendo-se que somos o terceiro maior fabricante e vendedor global de aviões.

O fato de que sejamos o maior exportador mundial de suco de laranja, café, açúcar, carnes, – além de primeiro em minério de ferro e o segundo em etanol – e de que tenhamos triplicado nossa safra de grãos nos últimos 12 anos e estejamos a ponto de ultrapassar os EUA como o maior exportador de soja do mundo, só quer dizer uma coisa: soubemos dar mais valor à segurança alimentar do que outros países latino-americanos, e hoje temos comida para abastecer nossa mesa, e para vender para o resto do mundo.

Na hora de ler os jornais, ouvir o rádio, ou ver os noticiários de televisão, ao ouvir falar das ”reformas” e de supostos avanços mexicanos com relação ao Brasil – quando eles cresceram a metade do nosso PIB no último ano – é bom ficar com o pé atrás e colocar as barbas de molho.

Não podemos comer gato por lebre, e seguir os passos dos mexicanos, que venderam a alma ao diabo, ao se agregar – como pouco mais que escravos e camareiros – ao sistema econômico norte-americano.

Ao nos oferecer acordos semelhantes, como a UE está fazendo agora – e os EUA tentarão fazer logo em seguida – os países “ocidentais” não vão abrir seus mercados para nossas manufaturas – pelo contrário, eles têm reduzido suas compras e aumentado as vendas para cá nos últimos anos. Irão apenas tomar, implacavelmente, das nossas indústrias, o mercado sul-americano.


sexta-feira, 21 de março de 2014

Fardados e farsantes


Arquivo Estadão
Em março de 1994, no aniversário de 30 anos do golpe, não apareceu ninguém disposto a ressuscitar a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, apoio fatal dos privilegiados à deposição de João Goulart em 1964. O presidente era Fernando Henrique Cardoso, filho e neto de generais. Em março de 2004, com o operário Lula no comando do País, tampouco as viúvas da “revolução” se ouriçaram. O que explica essa agitação às vésperas dos 50 anos? Seria apenas o peso da efeméride ou o Brasil tornou-se ainda mais reacionário?

Convocada para este sábado 22, a reedição da marcha corre o risco de levar ao paroxismo a famosa frase de Karl Marx: “A história acontece como tragédia e depois se repete como farsa”. Mesmo nas redes sociais, onde a capilaridade das ideias grotescas e atrasadas é assustadora, a adesão à passeata não chega a empolgar. No Facebook, a principal página de convocação da marcha em São Paulo tem pouco mais de 20 mil seguidores. As demais, em outras capitais, não alcançam 3 mil. Em resumo: 100 mil nem na internet. Chama a atenção, porém, a tentativa dos organizadores de vincular o evento às Forças Armadas. Os pontos de encontro dos manifestantes são comandos estaduais do Exército e Tiros de Guerra. Militares da reserva e alguns poucos da ativa manifestaram apoio ao movimento.

Mais do que defender a possibilidade de uma intervenção militar, os oficiais de pijama parecem preocupados em salvaguardar o “legado” da “revolução” contra as “mentiras” disseminadas em seu 50º aniversário. É esse o teor, para citar um caso, do texto divulgado pelo general reformado Luiz Eduardo Rocha Paiva, ex-secretário-geral do Exército, em dezembro do ano passado.

Nos 50 anos do Movimento Civil-Militar, o Exército Brasileiro será o alvo principal de intensa campanha de desgaste a ser movida pela jurássica esquerda radical, sempre abraçada à ideologia socialista, responsável pelos maiores crimes contra a humanidade no século XX”, escreveu. “Diante desse cenário, a consciência do militar, da ativa ou reserva, com certeza lhe dirá: não se omita. Hoje, a esquerda domina a política nacional e seu ramo radical-revanchista controla amplos setores dos Poderes da União.” Uma datação científica com carbono provavelmente localizaria esse texto entre 31 de março e 1º de abril de... 1964.

No mês passado, foi a vez do também reformado general de Exército Pedro Luis de Araújo Braga, presidente do Conselho Deliberativo do Clube Militar, destacar o “jubileu de ouro” da “revolução democrática brasileira” e da necessidade de defendê-la dos “detratores” que a chamam de “golpe” ou “anos de chumbo”. Em tom de ameaça, recorreu a um discurso típico da Guerra Fria: “O Brasil, que nasceu sob a sombra da cruz e que, como diz o cancioneiro popular, ‘é bonito por natureza e abençoado por Deus’, será sempre uma nação cristã, fraterna e acolhedora, amante da paz, livre e democrata. Jamais será dominada pelos comunistas, mesmo que isto custe a vida de muitos”. Braga classificou a Marcha da Família de antanho de “extraordinária”.

Na revista da Sociedade Militar, outro general reformado, Paulo Chagas, saúda a marcha como “um bom começo” e assume o golpismo. “A debacle da Suprema Corte, desmoralizada por arranjos tortuosos que transformaram criminosos em vítimas da própria Justiça, compromete a crença dos brasileiros nas instituições republicanas e se soma às muitas razões que fazem com que, com frequência e veemência cada vez maior, os generais sejam instados a intervir na vida nacional para dar outro rumo ao movimento que, cristalinamente, está comprometendo o futuro do Brasil. Os militares em reserva se têm somado aos civis que enxergam em uma atitude das Forças Armadas a tábua de salvação para a Pátria ameaçada.”

O Ministério da Defesa admite ser difícil prever o tamanho da reedição da marcha e tem monitorado a movimentação na caserna por meio de conversas com os comandantes das três Forças. Há uma orientação expressa dos chefes militares: os subordinados estão proibidos de tratar do assunto. Segundo apurou CartaCapital, o ministro Celso Amorim não vê motivos para maiores preocupações, pois não há participação de militares da ativa. Amorim tem consciência de que oficiais da reserva não perderão a oportunidade para colocar as mangas de fora, mas entende as críticas nas redes sociais como parte da liberdade de expressão em um país democrático. Ou seja, está garantido aos milicos de pijama um direito que a ditadura suprimiu da vida dos cidadãos.

Se é natural esperar saudosismo em militares aposentados, causa espanto encontrar o mesmo sentimento em civis. Apresentadora dos vídeos que convocam para a manifestação em São Paulo, Cristina Peviani protagonizou uma cena dantesca durante o depoimento da ex-presa política e militante do PCdoB Maria Amélia de Almeida Teles, a Amelinha, em dezembro passado. Enquanto Amelinha relatava, emocionada, os choques na vagina, seios e outras partes do corpo, as sessões de palmatória e uma tentativa de estupro, Peviani mascava chicletes, ria ruidosamente e lixava as unhas. Só se conteve depois de ser advertida por um agente do fórum.

Fã de Carlinhos Metralha, ex-agente da ditadura acusado de assassinato e tortura, Peviani, atualmente desempregada, segundo ela, “graças às nossas faculdades falidas”, provocou os militantes de direitos humanos que acompanhavam o depoimento de Amelinha do lado de fora do fórum. “Cuidado, somos torturadores”, dizia, em tom de deboche, enquanto filmava o ambiente com a câmera do celular. Em um dos vídeos nos quais convoca para a passeata, afirma, categórica: “Nós estamos num período muito, muito, muito horrível”. As páginas pró-marcha comprovam a frase.

Outro entusiasta do revival golpista, o advogado Célio Evangelista Ferreira é conhecido nos tribunais de Brasília por suas petições fora do comum. Ferreira solicitou três vezes o impeachment de Dilma Rousseff à Câmara. Todas foram negadas. Em uma das petições, pretendia tirar a presidenta do poder por ela ter instalado a Comissão da Verdade, “um atentado à Pátria”. Em janeiro, solicitou à Procuradoria-Geral da República que protegesse a marcha da família da ação do “segmento do banditismo oligárquico comunista no poder encastelado no Estado”.

O mais engraçado: Ferreira assina, em nome das Forças Armadas, um “documento” de apoio à manifestação de muito sucesso nos blogs simpáticos ao militarismo. O advogado também tentou registrar no Tribunal Superior Eleitoral sua candidatura à Presidência da República. A solicitação foi rejeitada pelo fato de a legislação eleitoral não permitir candidaturas avulsas. O TSE privou os eleitores de um pouco de comédia no horário eleitoral gratuito.

Não há muitos registros de movimentos semelhantes ao redor do mundo nos últimos anos. O mais recente aconteceu no Chile há dois anos, justamente durante a Presidência do direitista Sebastián Piñera, que acaba de ceder o posto à esquerdista Michelle Bachelet. Em nome da “liberdade de expressão”, Piñera autorizou a realização de uma manifestação em homenagem ao ditador Augusto Pinochet. O centro de Santiago virou uma praça de guerra, embate que não se repetiria no ano passado, quando se completaram 40 anos da morte de Salvador Allende. Em São Paulo, grupos antifascistas agendaram protestos na Praça da Sé para a mesma hora da marcha. Pode haver confusão. Ou pode não acontecer nada, dada a incapacidade atual dos movimentos reacionários de trocar o anonimato covarde e confortável das redes sociais pelos riscos das ruas.




quinta-feira, 20 de março de 2014

O caminho da reportagem

Por Carlos Brickmann

Os jornais tentam imitar a internet, publicando matérias pequenas, usando cores, tentando ao máximo transformar textos em imagens. Bobagem: a internet é instantânea, tem movimento, é de graça. Jornal impresso competir com internet é suicídio – e, no entanto, quantos seguem este caminho!

Mas a deserção de boa parte dos veículos impressos não fez com que a grande reportagem desaparecesse: ela apenas migrou. Na semana passada, uma matéria antológica explodiu na tela da Rede Globo: elaborada por dois repórteres de primeiríssimo time, Eduardo Faustini e Luiz Cláudio Azevedo, a reportagem investigou as escolas públicas dos estados que tiveram as médias mais baixas no Programa de Avaliação Internacional de Estudantes (PISA). Os dois repórteres passaram dois meses percorrendo Alagoas, Maranhão e Pernambuco. Mesmo para quem já sabia que a situação era péssima, a reportagem surpreendeu: mostrou escolas sem água de beber, sem banheiro, sem transporte; há lugares em que não há salas de aula para dar aula. Como suprir a falta de banheiro? Alunos e professores vão para o mato. Há crianças que para chegar à escola tomam um caminhão que as leva até a rodovia por onde passa o ônibus escolar – isso se não chover. Se chover, o caminhão não consegue chegar à rodovia. Cadernos? Imagine!

Jaboatão dos Guararapes, a segunda cidade de Pernambuco, fica encostada a Recife. Ali não há papel higiênico, nem proteção contra as chuvas: choveu, a água entra. Vassoura, detergente? Só quando os pais de alunos se cotizam. E em duas escolas da cidade os esgotos estão abertos. Há seis anos é assim.

Numa escola indígena não há onde colocar os alunos. As aulas são dadas debaixo de uma mangueira, quando não chove. Já em Lagoa Grande, Pernambuco, a escola tem mais conforto: dispõe de um ventilador. Um ventilador para a escola inteira, para todas as salas. Em Codó, Maranhão, ventiladores não são o problema: como a escola não tem eletricidade, não haveria como ligá-los. E, como não há luz, as aulas são dadas apenas em dias ensolarados.

Merenda? Há em algumas escolas, mas apenas em parte do ano. Numa das escolas, a fossa aberta fica dentro da cozinha – a cozinha onde se prepara a merenda. E quando não há merenda? Saem os alunos para catar frutas no mato.

De acordo com a reportagem, 44,5% das escolas do país não dispõem da infraestrutura mínima necessária: água, banheiro, esgoto, eletricidade, cozinha. O ideal, claro, seria que a escola tivesse, além do básico, uma biblioteca, uma quadra de esportes, sala dos professores, parque infantil; e acesso à internet, alguns computadores, laboratório de ciências. Segundo a reportagem do Fantástico, só 0,6% das escolas públicas brasileiras dispõem desse tipo de equipamento.

Claro, claro, temos um ministro da Educação, todos os estados têm secretário da Educação, todos os municípios têm secretário da Educação. Só falta mesmo a educação propriamente dita. Exibida a reportagem, uma ou outra coisa foi resolvida – por exemplo, chegaram as cadeiras à escola onde as crianças não tinham onde acomodar-se. Dava para resolver, mas esperaram que alguém denunciasse.

E há quem estranhe o mau desempenho do Brasil no quesito Educação.

É uma reportagem cara, que envolve dois profissionais de primeira linha na reportagem, mais equipes técnicas, mais transporte, alimentação, hospedagem, tudo durante dois meses. Mas, se os meios de comunicação não existem para mostrar como é de verdade o nosso país, para que é que existem?


quinta-feira, 13 de março de 2014

Valladolid ‘forever’

Por Luis Fernando Veríssimo
Jornal O Globo

Valladolid é uma cidade de 300 mil habitantes no Noroeste da Espanha. Foi lá que se casaram e reinaram os monarcas católicos Isabel e Fernando, foi lá que viveu Miguel de Cervantes e morreu Cristóvão Colombo. E foi lá que em 1550 e 1551, diante de uma junta de doutores e teólogos convocada pelo rei Carlos V, o historiador eclesiástico Juan Ginés de Sepúlveda e o frei Bartolomé de Las Casas se reuniram para debater a colonização espanhola do Novo Mundo e o que fazer com seus nativos, além de catequizá-los. Las Casas voltara do Novo Mundo e tinha uma visão humanitária das suas populações subjugadas. Pregava a sua cristianização benévola. Sepúlveda era um escolástico sem experiência fora do mundo acadêmico e um seguidor da teoria aristotélica segundo a qual seres inferiores são naturalmente escravizáveis. Assim, para Sepúlveda, os nativos poderiam ser ao mesmo tempo cristãos, para o caso de terem almas a serem salvas, e escravos, para ajudar na pilhagem da sua própria terra.

No famoso debate de Valladolid o Império espanhol pretendia fazer um exame de consciência depois dos excessos da conquista, uma espécie de faxina depois da chacina. O que Las Casas e Sepúlveda estavam realmente discutindo era se índio é gente ou não é gente e, portanto, qual era o tamanho da culpa dos conquistadores. O fato de os nativos terem almas que respondiam à catequese não provava nada; na época também se discutia, com o mesmo ardor intelectual, se bicho tinha ou não tinha alma. Convencionou-se que Las Casas ganhou o debate, pois tinha os melhores sentimentos cristãos ao seu lado, mas Sepúlveda ficou com a razão. A pilhagem do Novo Mundo continuou, com a cumplicidade involuntária dos nativos — e continua até hoje. O debate de Valladolid se eternizou. Afinal, os miseráveis do hemisfério são gente ou não são gente? Os bons sentimentos cristãos de Las Casas impediram que a divisão entre saqueadores e saqueados no continente se aprofundasse ou só serviram para encobrir o abismo com o manto da caridade inútil, que só satisfaz o caridoso? Por que será que todas as tentativas de romper esta maldição no hemisfério acabam em golpe ou farsa, com os eventuais insurgentes fazendo o mesmo papel de bichos exóticos que os nativos faziam diante dos colonizadores do século 16?

Conforme o adágio, não existe pecado abaixo da linha do Equador. Henry Kissinger, sem saber, fez uma adaptação geopolítica da frase quando disse que ninguém faz história no sul do mundo. O que é outra maneira de duvidar que aqui haja gente, ou pelo menos gente consequente. Talvez por modéstia, não se lembrou de dizer que quando aparece um decidido a não ser mais escravo, como Allende no Chile, é rapidamente abatido.



quarta-feira, 12 de março de 2014

As ilusões vencidas



Os dois viajam de carro pela estrada quando o mais jovem, David, ruma ao Monte Rushmore esperançoso de que o desvio de rota agrade ao velho Woody. No entanto, os rostos dos fundadores da nação norte-americana, Washington, Jefferson, Roosevelt e Lincoln, esculpidos na montanha e admiráveis para David, nada representam além de um amontado de pedras para seu pai. “Lincoln não tem uma orelha e Washington é o único vestido”, sentencia Woody sobre a gigantesca escultura, e se tranca no carro, pronto para retomar viagem.

É esta a sequência memorável de Nebraska, raro bom filme corrente à 86ª premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, dia 2, mas saído dela sem Oscar entre seis indicações. E foi também a sequência escolhida pelos organizadores da cerimônia para exemplificar o trabalho de Bruce Dern, concorrente a melhor ator. Contudo, os aplausos a esta iconoclastia bem-humorada foram discretos no auditório do Dolby Theatre, em Los Angeles. Patriotada é como se intitula uma reação assim, talvez coerente com o espírito de um país tingido pela guerra de dominação e assombrado por sua perda de posições. Apenas o diretor Alexander Payne parecia não se incomodar com tudo isso, a maior parte da cerimônia no bar. Gostaria de ter intituladoVidas Secas o filme indicado, mas compreendeu que esse título pertencia a “nós”. São de fato existências ressequidas aquelas ali descritas, tomadas de incomunicabilidade e desilusão, não somente por efeito da velhice, antes porque o sonho americano se desfez em promessa de loteria.

Eles não querem liberdade, ensinava o grupo de rock Talking Heads, eles apenas querem alguém para amar. A apresentadora do Oscar deste ano, Ellen DeGeneres, bem o sabe. Na tevê norte-americana, menos versátil que Raul Gil, tendo desistido de julgar calouros no American Idol, a atriz de 56 anos exerce a vocação de animadora de bufê em um talk show que, além de conversas sorridentes, adota gincanas e pegadinhas entre os mal crescidos. Quando Ellen manda, David Beckham aceita falar aos fãs apenas as palavras que ela assopra em seu ouvido. Porque Ellen quer, Halle Berry se enfia em fantasia de pelúcia e quase sufoca até que ela a autorize a sair do personagem.

No domingo do Oscar, ao apresentar a cerimônia depois de sete anos, a atriz aprofundou a inclinação ao irrisório risível. De posse de um celular Samsung, empresa que destinou 20 milhões de dólares à veiculação de comerciais durante a cerimônia, entregou-o ao ator Bradley Cooper, que a seu pedido fez um selfie coletivo de celebridades. Ela tuitou a imagem, que obteve a maior visibilidade da rede social, 3 milhões de compartilhamentos. E talvez jamais uma cerimônia do Oscar seja a mesma depois daquela pizza que Ellen fez um entregador oferecer aos presentes, antes de arrecadar para ele 1,6 mil dólares em gorjeta. Talvez a cerimônia precise sempre, a partir de agora, de suas invenções. Uma corrida de mulheres com Louboutin em sacos de batatas, quem sabe? Ellen poderá tudo.

À maneira de seu discurso de apresentação, estará à vontade para caracterizar uma atriz do quilate de June Squibb como velha surda, Liza Minelli como drag queen e Amy Adams como analfabeta universitária. Depois dela, greve de roteiristas é candidata a piada pronta.


E ninguém se importará com o humor na descendente porque, de certo modo, o escárnio não constitui novidade em Hollywood. A indústria americana vive crise de irrelevância diante do dinheiro e da excelência dramática a jorrar pelas séries de televisão, essas que dependem apenas de assinantes exigentes. Clube de Compras Dallas, sucesso deste ano, tendo arrancado dois Oscar aos intérpretes Jared Leto e Matthew MacConaughey, malgrado seus atributos, não supera Breaking Bad. Em 2012, seis dos nove filmes indicados ao Oscar arrecadaram 100 milhões de dólares, mas acaso os executivos investiram em obras de profundidade para fazer seu dinheiro valer mais? Pelo contrário. Temerosos dos riscos, afundaram em velhas ideias, um mau entendimento, diga-se, do que prescreve a bíblia do capital.

O cinema americano, assim, transformou-se numa espécie de hospital em ala pediátrica. Eis por que Ellen DeGeneres funciona. Ela é a doutora da alegria de Hollywood. Sua ação corresponde ao espírito infantil dessa indústria. São filmes sobre paraísos longínquos, esperanças desacreditadas, o Lincoln sem orelha no Rushmore e poucos, muito poucos, comunicam a intensidade de viver. Ela explica isso à perfeição. O emotivo filme de Spike Jonze, com a estatueta de melhor roteiro original, retrata um deslocamento de expectativas. Incapaz de se comunicar afetivamente, o protagonista apaixona-se por um ser sem corpo enquanto todos interagem virtualmente como ele, desinteressados de crescer na relação com o próximo.

Neste ponto, o discurso da vencedora atriz Cate Blanchett funciona como um despertador das poucas consciências adultas. A magnífica intérprete de Blue Jasmine, que em 2004 vencera como coadjuvante por O Aviador, contrariou o esperado. Não centrou seu discurso em Woody Allen, o diretor acusado de abuso sexual pela filha, embora lhe tenha agradecido profundamente pelo papel. Ela alertou que o público estava velho demais para ficar de pé enquanto a aplaudia. Disse que toda aquela premiação era subjetiva. E terminou afirmando que atrizes como ela levam, sim, bilheteria aos filmes. “O mundo é redondo, gente!”, conforme lembrou.

E está em seu discurso a mais divertida crítica ao campeão de estatuetas na noite, sete delas, até mesmo a de melhor diretor para Alfonso Cuarón. Gravidade é uma peça de propaganda herdeira da Guerra Fria, com bons efeitos especiais e medíocre forma dramática. Nela, Sandra Bullock é vítima de uma barbeiragem russa e, aterrissada na areia, simula parir uma nova nação, alinhada aos chineses. Pois Cate Blanchett disse o seguinte, ao lembrar que todas as concorrentes a atriz deste ano, como La Bullock, a impressionavam: “Sandra, eu poderia assistir à sua performance até a eternidade. De certo modo, senti ter feito isso”. Toda aquela chatice parecia exacerbá-la. Estava no bar do teatro quando o selfie aconteceu. Dividiu drinques com Julia Roberts. E saiu da festa destruída e mal-humorada, amparada a uma amiga que carregava um par de sapatos, como um paparazzo revelou.

Durante a festa, não só ela ralhava com os doentes. O ator Bill Murray, de penteado à moda Nebraska, improvisava a existência de um concorrente em sua apresentação. Era o diretor Harold Ramis, morto dia 24 sem ganhar qualquer Oscar, doutor em Artes e amigo que o dirigira em Feitiço de Tempo. Não só por esse filme, mas pelo roteiro de Os Caça-Fantasmas e pela direção de sua demolidora leitura da história, Ano Um, Ramis mereceria a honraria desde muito tempo, sinalizou Murray. “Mas comédia nunca leva Oscar. Feitiço do Tempo foi um dos roteiros mais bem escritos e não recebeu nem mesmo uma indicação”, lembrou depois. O próprio Murray, indicado por Encontros e Desencontros, perdeu em 2004 para o Sean Penn de Sobre Meninos e Lobos, uma dívida a mais para o saldo dos acadêmicos.

É mesmo uma festa a ponto de falir, à maneira daquelas de Jep Gambardella em A Grande Beleza, filme estrangeiro vencedor? Ao lado do protagonista Toni Servillo, o diretor Paolo Sorrentino dedicou a honraria, nessa ordem, a Federico Fellini, Martin Scorsese e Diego Maradona. Seu filme é um épico espetacular sobre a decadência da civilização ocidental, aquela um dia responsável por grande arte e que hoje mercantiliza estamparias e chocolates na afamada ala pediátrica do hospital do mundo. “É assim que sempre termina. Com a morte”, diz Gambardella em uma fala do filme, para lembrar, contudo, que a vida se aninha sob o blablablá: “Escondidos sob a tagarelice e o barulho, o silêncio e o sentimento, a emoção e o medo, há os flashes abatidos e inconstantes de beleza”.

Quem a viu jamais esquece. A beleza, nas artes plásticas como na música, sempre houve e se espera ainda haver. Há muito barulho em Inside Llewyn Davis, dos irmãos Coen, a respeito disso, mas os acadêmicos não quiseram ouvi-lo. O filme recebeu duas indicações não contempladas, mas, protagonizado pelo músico nascido na Guatemala Oscar Isaac, bem merecia outra atenção. Todos preferiram Gravidade a esta leitura demolidora do fim de um sonho, a esta representação impiedosa do americano desterrado e invisível.

Contudo, é preciso reconhecer que o Oscar faz bem quando destaca o horror ao passado escravocrata, tornando simbólicos de uma nação, em lugar do índio, o negro e sua dor. 12 Anos de Escravidão é uma peça contundente nessa direção. Embora tenha premiado a competente e graciosa Lupita Nyong’o como coadjuvante, o Oscar descartou Chiwetel Ejiofor na encenação das atrocidades. Preferiram em seu lugar Matthew McConaughey, que interpreta com obstinação o caubói aidético em Clube de Compras Dallas.

McConaughey inovou na arte dos discursos. Pela primeira vez alguém agradece a si mesmo pela conquista de um Oscar. Hoje ele é seu herói de dez anos antes, tentou explicar confusamente, não sem lembrar que em sua vida há Deus, este que deve estar feliz com tantos artistas arrancados à sua convivência nos últimos meses. O documentarista brasileiro Eduardo Coutinho foi lembrado na homenagem aos mortos no Oscar. Explica seu amigo, o diretor brasileiro Walter Salles, que Coutinho havia aceitado o convite para atuar como membro da seção de documentários da Academia. Segundo um integrante, o convite foi feito porque, com sua obra, o diretor oferecia “uma contribuição única e duradoura para o cinema documental”. O cineasta merecia a homenagem, disse ainda, e a Academia fez a coisa certa.




terça-feira, 11 de março de 2014

“Eu não sou nada”



No início da “Divina Comédia”, Dante encontra Virgílio, seu guia no inferno, e lhe diz: “Mestre, para mim, são tão certos e me impõem tanta confiança os teus arrazoados, que os demais me parecem carvões apagados.”

Pepe Mujica, o presidente do Uruguai, erra muito pouco. Em sua última entrevista, ao jornal “O Globo”, explicou como pretende lidar com as visitas de turistas a seu país para fumar maconha (como se sabe, o Uruguai legalizou o comércio da erva). Falou muito mais. E, como costuma acontecer, transcende as questões comezinhas e dá a qualquer conversa um tom filosófico. Nas palavras de Vargas Llosa, é um velhinho estadista que fala com sinceridade insólita para um governante.

“Queremos tirar o mercado do narcotráfico, queremos tirar-lhes o motivo econômico, queremos que o narcotráfico tenha um competidor forte e não seja o monopolista do mercado. Ao mesmo tempo, tentamos incitar as pessoas a atuarem do ponto de vista médico”, disse ele. “Mas temos que ter muito cuidado, porque não é uma legalização como as pessoas supõem no exterior, não vai ter um comércio, os estrangeiros não poderão vir aqui ao Uruguai para comprar maconha. Não vai existir o turismo da maconha. A decisão tomada não tem nada que ver com esse mundo boêmio. É uma ferramenta de combate a um delito grave, o narcotráfico, é para proteger a sociedade. É muito sério”.

Sobre seu exemplo como líder: “Pretende ser um mini-ato de protesto. As repúblicas não vieram ao mundo para estabelecer novas cortes, as repúblicas nasceram para dizer que todos somos iguais. E entre os iguais estão os governantes. Têm uma responsabilidade implícita e penso que devem viver de forma bastante similar à maneira de viver da maioria do seu povo. Ninguém é mais que ninguém, começando pelo governante.”

Sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo: “O casamento homossexual, por favor, é mais velho que o mundo. Tivemos Julio Cesar, Alexandre, O Grande, por favor. Dizer que é moderno, por favor, é mais antigo do que nós todos. É um dado de realidade objetiva, existe. Para nós, não legalizar seria torturar as pessoas inutilmente”.

Sobre trabalho: “Temos que lutar para que todos trabalhem, mas trabalhem menos, todos devemos ter tempo livre. Para quê? Para viver, para fazer o que gostam. Isto é a liberdade. Agora, se temos de consumir tanta coisa, não temos tempo por que precisamos ganhar dinheiro para pagar todas essas coisas. Aí vamos até que pluff, apagamos.”

Sobre manifestações: “Eu simpatizo com os protestos, mas não levam a lugar nenhum. Não construíram nada. Para construir, há de se criar uma mente política, coletiva, de longo prazo, com ideias, disciplina, e com método. E isso é antigo, ou parece antigo. Mas sem interesses coletivos, é difícil mudar. Não são os grandes homens que mudam as sociedades, mudam quando os protestos se organizam, disciplinam, têm métodos de longo prazo. Estes movimentos de protesto têm a vantagem do novo, e tentam alguma coisa nova porque desconfiam de todos os velhos, especialmente os partidos, por que perderam a confiança neles. Mas as primaveras têm se transformado em inverno por que não sabem onde ir.”

Sobre política: “Temos de revalorizar o papel da política. Mas no mundo real, muita gente se mete na política por que gosta de dinheiro, estes devem ser expulsos porque prostituem a política. A política tem de ser feita com carinho, a política tem a ver com a harmonia das contradições que há na sociedade, tem de lutar para harmonizar este mundo frágil e cheio de contradições que estamos vivendo.”

Sobre seu reconhecimento: “Não é que me achem tão excepcional, me usam como uma maneira de criticar os outros. A última vez que estive na ONU escutei discursos de um presidente de um país europeu [Hollande, da França] pelo qual temos um respeito enorme pela cultura, por suas tradições, pelo que significou no mundo. Fiquei assustado, porque parecia um discurso neo-colonialista. Eu não sou nada, sou um camponês com senso comum. Sem dúvida, estou vivendo uma peripécia. Talvez, se não tivesse passado tantos anos presos com tempo para pensar, fosse diferente.”

Sobre o Brasil e a América Latina: “Brasil vai fazer um campeonato do mundo lindo. Brasil deve apreciar o melhor que tem, não é a Amazônia nem o petróleo, é o experimento social de ser o país mais mestiço do mundo. E tem uma grande alegria de viver, mesmo com as dificuldades e isso deve à África. Por isso, a luta é que brasileiros sejam mais latino-americanos.”

A admiração de Llosa é genuína, mas há algo de condescendente em sua consideração. Mujica é também mais que um camponês com senso comum. É alguém em quem sempre vale a pena prestar atenção. Um mestre. Como disse Dante: “Com aquela medida que o homem usa para medir a si mesmo, mede as suas coisas”.


domingo, 9 de março de 2014

A certeza que vem da dúvida


Se você não falar eu nunca vou saber.
Ela estava certa como sempre e, ele, confuso como nunca. E nesse ritmo foram ficando por alguns anos, até que pintou um dinheiro a mais, uma reforma na casa e uma inevitável proposta de junção, quase amálgama, mas era desse jeito que as coisas davam certo e era desse jeito que os passos continuavam no caminho. Ele dizia reticências, ela falava exclamação.
E foi num dia frio, olhando para o mar de Saquarema, que ela disse alguma coisa totalmente inútil e, ele, numa rara certeza de estar dentro de casa por muito tempo sem uma gota de álcool na corrente sanguínea, levantou e, sem ponto continuativo, afirmou sem delicadeza que ela só falava merda. Ela não esperou ele alcançar o botequim e lamber uma daquelas cachaças mineiras com cheiro de caldo de cana e gosto de mel, foi xingando pedras e dragões pela rua até a porta do pé-sujo com a dignidade de quem sabe fazer uma baixaria, descendo do salto para, depois da cagada feita, subir num salto agulha.
Ele, meio que de saco cheio do frio, do ar salgado e de ficar tanto tempo em casa, olhou-a como não se olha para ninguém e disse algo que não seria delicado revelar. Pura falta de tempero ou diplomacia. Tivesse mantido a cabeça no lugar veria que estava errado e que ela era a única que podia estar certa sempre, ter as certezas que quisesse e xingar o quanto pudesse.
Mas não foi o que aconteceu e ela deu meia volta, descalça, mas sobre um alto sapato imaginário e apoteótico. Catou umas calcinhas limpas no cesto, um casaco, calça, bermuda e nem se lembrou da bata que adorava usar. Levou uma semana para uma frete bater a porta exigindo umas coisas com as coisas dela. E os invernos acabaram rápidos, mas ela demorou a aparecer na cidade. Foi terminar o mestrado na UFF e ficou por Niterói. Amarrou-se a algum professor que não tinha tantas dúvidas assim, mas era cheio de teorias e conflitos e concordava sempre com ela, o que dava no mesmo.
Um dia ele experimentava um cachaça amarelada saída de um barrilzinho escondido na prateleira empoeirada do botequim quando a avistou. Ele continuou sentado saboreando o belíssimo líquido e a estupenda visão ao longe. Ela também o viu e aproximou-se sem muita convicção.
– Se você não falar eu nunca vou saber – disse o homem com a barba bem feita e ainda cheirosa.
– Você nunca foi de ter decisões.
– Nunca te vi parada sem uma verbalização da vida.
– Acho que virei você.
– Eu também.
E esqueceram de fato o que os havia separado e treparam a ponto de não almoçarem, não jantarem. Alguém fez um sanduíche horroroso com requeijão vagabundo e presunto queimado nas beiradas por ficar destampado na geladeira. E voltaram como nunca foram, e amaram-se democraticamente.
Ela aprendeu a beber uma cachacinha depois do almoço, aos finais de semana, depois de corrigir as provas da sua classe.
E ela teve muitas dúvidas entre certezas e ele idem. E assim foram até que morreram.
O professor? Bem, continuou teorizando com outras alunas cheias de certezas até que veio a dúvida, mas já era tarde demais.
O professor que se foda.