sábado, 19 de maio de 2007

A função dos anjos

Reproduzo na íntegra um texto simplesmente espetacular, escrito pelo grande Fausto Wolff, no Jornal do Brasil. Textos dessa magnitude não podem ficar no limbo das "edições anteriores" de um jornal. Espero que ele possa fazer, assim como fez comigo, do possível leitor virtual uma pessoa melhor.
E como dizia um bom jornalista: "Boa noite e boa sorte".
A função dos anjos

Fausto Wolff


No mito de Sisifo, Camus expõe a essência da sua filosofia: "O homem morre e não é feliz." Antonio Cândido diz que só há uma verdade absoluta: "Somos todos filhos do medo". Creio que, no projeto harmônico que é a vida, arquitetura perfeita que todo o intelectual tenta deslindar desde Homero, a idéia era, segundo o mito, fazer o homem vencer o medo e a morte através da sabedoria e da criação. Finalmente, através da solidariedade, transformar-se em Deus utilizando toda a sua capacidade energética, momento em que não só seria parte do Universo como seria o próprio Universo.
Aparentemente, não há o que temer neste mundo maravilhoso que recebemos de presente. Ele tem tudo o que necessitamos para ser permanentemente felizes. Somente um coqueiro nos dá casa, comida, bebida, roupa e sombra. Entretanto nascemos chorando inter faeces et urina. O mundo nos apavora tanto que muitos de nós - os autistas, por exemplo - preferem não participar. O homem passa a vida sofrendo entre o drama e a tragédia. A comédia está presente tanto num como no outro. Por que somos filhos do medo se nascemos no Paraíso? É que no Paraíso, como nos bosques de Grimm, existe um lobo feroz, o homem, o bicho que trocou a cordialidade pela ganância e o amor pelo lucro material; o homem que moldou seu destino; o homem que destruirá o mundo.
A solidariedade é uma coisa que pode ser aprendida e faz bem ao corpo e à alma. Outro dia, comprei dez pastéis na padaria. Exagerei na fome e distribuí os oito restantes aos porteiros. Não foi caridade e nem eles precisavam. Todas as vezes em que faço isso, descubro no outro, no olhar do outro o que ele descobre em mim, aquilo que o homem esconde: o verdadeiro ser cordial. Sempre. Minha mulher sempre sai com algumas moedas na bolsa para dar aos os meninos de rua. Também já descobriu que eles se lixam para os cinco, dez centavos. Querem um sorriso, uma palavra gentil, algo que os faça se sentirem também filhos de Deus, feitos à sua imagem e semelhança.
Quarta-feira, dia 7 de fevereiro, morreram assassinadas várias pessoas no Brasil inteiro. No Iraque, morreram 50 numa explosão, entre elas várias crianças. No Rio de Janeiro, entretanto, ocorreu uma morte especial: a do menino João Hélio, de seis anos, filho de Élson e Rosinha e irmão de Aline. Esse casal acreditou no sistema, aceitou as regras do jogo. Queria colher os frutos deste nosso mundo e ser feliz. Para isso, fazia a sua parte sem prejudicar ninguém. Na quarta-feira, porém, aquilo que deveria ser um pequeno drama - vemos centenas deles na vida real e nos filmes americanos e muitas personalidades já confessaram que na juventude roubaram carros de pura farra - transformou-se numa tragédia. Cinco rapazes pardos - o mais novo com 17 e o mais velho com 23 - resolveram roubar o automóvel dentro do qual estavam Rosinha e seus filhos. Três subiram no carro e, com uma pistola aparentemente de brinquedo, expulsaram a mãe e as crianças. Até aí, temos um pequeno drama cotidiano que poderia ter ocorrido em qualquer país do Terceiro Mundo e nos EUA. O drama transformou-se em tragédia quando o pequeno João Hélio não conseguiu desvencilhar o pé do cinto de segurança e, porta trancada, foi arrastado por sete quilômetros, brutalmente mutilado antes de morrer. O que transformou essa tragédia em crime hediondo foi o fato de os criminosos terem conhecimento do que acontecia sem que, em momento algum, tentassem salvar a vítima.
Não vou discutir aqui a personalidade dos assassinos. Provavelmente, se Helinho fosse meu filho, num primeiro momento tentaria driblar a vigilância policial e matar um por um dos miseráveis, pois não sou santo. Num segundo momento, porém, venceria o intelectual, o homem civilizado que se perguntaria por que essas coisas acontecem. Os meios de comunicação, de um modo geral, limitaram-se a falar dos monstros assassinos, da volta da pena de morte ou de penas mais elevadas para determinados crimes. Por um momento, tive a impressão de que os responsáveis por tudo de mau que ocorre no nosso país são os cinco jovens assassinos; que se nos livrarmos deles, se os cortarmos em pedacinhos, se os desmembrarmos, tudo voltará ao normal.
O menino foi destroçado pelos criminosos e pelo cinto de segurança, cuja obrigatoriedade, venho dizendo há anos, precisa ser discutida, mas em verdade começou a ser morto há muito tempo. Primeiro, pelos assassinos dos índios, depois pelos importadores de escravos e até mesmo pelos burgueses inconfidentes dos quais não passou pela cabeça a morte de milhares de negros nas Minas. Depois, pelos franceses e ingleses e seus homens de palha e até hoje pelos Estados Unidos e grandes corporações transnacionais. Mais tarde, o menino foi morto pela princesa Isabel, que só libertou os escravos quando o mundo inteiro já o havia feito. Abandonados em sua maioria, foram levantar seus casebres nos morros e construíram as favelas e todos acharam muito natural seres humanos empilhados em casas de cachorro. Mais tarde, a burguesia diria: "A favela é perto de casa. Bom para os empregados e bom para nós".
Quando um homem - o único estadista deste país - Getúlio Vargas garantiu os direitos dos trabalhadores, foi assassinado e, entre tantos brancos envolvidos, só um negro foi preso.
Tão decentes, trabalhadores e talentosos eram a maioria dos favelados que boa parte da nossa cultura (hoje agonizante graças à televisão e à brutal interferência norte-americana) baseava-se neles. As favelas podiam não ser bonitas, mas produziam música e trabalho e não tóxico e morte. Pelo menos até 1968 a criminalidade era mínima nesta cidade. A participação da ditadura militar na morte de João Hélio foi imensa e, quando ela já estava nos estertores, a cocaína fez sua entrada nas centenas de morros do Rio e hoje os moradores das favelas se dividem entre trabalhadores, traficantes e milicianos. Graças à cocaína, os meninos de morro que não tinham pais heróis como os do cinema ma para se espelhar, escolheram os traficantes. A religião neoliberal que vem assolando (vendendo, entregando) este país pelo menos desde a eleição de Fernando Henrique também estava no volante do carro que matou João Hélio e foi assim que jovens aviões viciados começaram a ter filhos com jovens prostitutas viciadas. A maioria não sabe o que é uma palavra de carinho, um gesto de ternura.
Sim, são muitos os verdugos do menino suburbano: O salário mínimo hipócrita, um código penal feito pela elite para favorecê-la, um sistema de saúde que exclui os pobres, um ensino público destrutivo, os grandes latifundiários. São ainda carrascos de João Helio os vereadores do Rio e o prefeito Cesar Maia, que só sabem trocar nomes de ruas. Os deputados estaduais envolvidos em crimes terríveis como o trabalho escravo, a começar pelo presidente Picianni. Há ainda o fenômeno Garosinha, e seu secretário de Segurança que também é deputado e chefe de quadrilha. Policiais envolvidos com o crime porque ele paga mais. O que dizer dos empresários que acham que emprego é favor e repasssam para o povo todos os impostos de um governo que só sabe governar aumentando os impostos? Entre os maiores assassinos indiretos do garoto estão os deputados federais envolvidos em crimes e alguns senadores trilionários.
Já fomos um povo civilizado, culto, politizado, mas não conseguimos resistir a quase 30 anos de tirania, um Sarney, dois Fernandos e um Luiz Silva para não falar da importância da TV Globo na cretinização do indivíduo.
Luiz Silva era a última esperança do povo, mas ele traiu os pobres entre os quais nasceu. Foi quando mataram um anjo. E, pela primeira vez na minha vida desde a morte de Getúlio, vi uma manifestação de pesar verdadeiramente sincera. A grande maioria acha que chora a morte de João Hélio, mas chora seu próprio abandono. O pai de João Hélio entendeu que a morte de seu filho não foi em vão e tem condições de unir o povo, pois disse: "um povo que faz um presidente e depois o expulsa tem condições de fazer muito mais". É um outro modo de dizer uma frase que uso muito. Somos todos pais de todas as crianças do mundo.
Nunca houve momento melhor para provarmos que o jornalismo no Brasil não morreu e pode ser independente. Onde estão os nossos repórteres que investigarão esse crime a fundo a fim de que possamos entender o Brasil e como chegou à calamidade física, mental, ética e ambiental. O povo e a imprensa - se quiserem - poderão exigir respostas e cumprimento da Constituição, dos Direitos do Homem e dos sempre eficientes dez mandamentos.
Sou um cético e um homem de fé e talvez os anjos existam. Não dizem há séculos que só um milagre salva o Brasil? Talvez João Hélio seja um anjo que morreu para unir os pobres desse país desgraçado. O triste carnaval acabou. Os sinos estão tocando. E dobram por ti.



Jornal do Brasil (24/02/2007)

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