domingo, 28 de fevereiro de 2016

Epa


No filme “2001 — Uma odisseia no espaço”, do Stanley Kubrick, astronautas descobrem na Lua (ou era em Marte?) um misterioso monólito, de origem desconhecida. Depois fica-se sabendo que o monólito fora posto ali como uma espécie de alarme. Quando exploradores da Terra o descobrissem, seria o sinal de que nossa civilização tinha os meios para invadir o espaço e se tornava uma ameaça para as civilizações extraterrenas que nos estudavam de longe desde que o primeiro primata acertara a primeira cacetada na cabeça de outro, e sabiam do que nós éramos capazes. A descoberta do monólito era um aviso: atenção, a barbárie vem aí, disfarçada de conquista científica.

Às vezes imagino como seria ser um judeu na Alemanha dos anos vinte e trinta do século passado, pressentindo que alguma coisa que ameaçava sua paz e sua vida estava se formando mas sem saber exatamente o quê. Este judeu hipotético teria experimentado preconceito e discriminação na sua vida, mas não mais do que era comum na história dos judeus. Podia se sentir como um cidadão alemão, seguro dos seus direitos, e nem imaginar que em breve perderia seus direitos e eventualmente sua vida só por ser judeu. Em que ponto, para ele, o inimaginável se tornaria imaginável? E a pregação nacionalista e as primeiras manifestações fascistas deixariam de ser um distúrbio passageiro na paisagem política do que era, afinal, uma sociedade em crise mas com uma forte tradição liberal, e se tornaria uma ameaça real? O ponto de reconhecimento da ameaça não era evidente como o monólito do Kubrick. Muitos não o reconheceram e morreram pela sua desatenção à barbárie que chegava.

A preocupação em reconhecer o ponto pode levar a paralelos exagerados, até beirando o ridículo. Mas não algo difuso e ominoso se aproximando nos céus do Brasil, à espera que alguém se dê conta e diga “Epa” para detê-lo? Precisamos urgentemente de um “Epa” para acabar com esse clima. Pessoas trocando insultos nas redes sociais, autoridades e ex-autoridades sendo ofendidas em lugares públicos, uma pregação francamente golpista envolvendo gente que você nunca esperaria, uma discussão aberta dentro do sistema jurídico do país sobre limites constitucionais do poder dos juízes... Epa, pessoal.

Se está faltando um monólito para nos avisar quando chegamos ao ponto de reconhecimento irreversível, proponho um: o momento da posse do Eduardo Cunha na presidência da nação, depois do afastamento da Dilma e do Temer.


sábado, 20 de fevereiro de 2016

Umberto Eco: A morte e a “legião de imbecis” nas redes sociais

Por Leonardo Sakamoto 
Blog do Sakamoto 

Não, você não é obrigado a conhecer Umberto Eco.

Talvez o único contato direto que tenha tido com uma obra do recém falecido escritor italiano seja aquele filme estranho… como é mesmo o nome?… tinha flor no título, não?… passou um tempo atrás no Corujão… com o cara que fazia o 007… sim! o Sean Connery… e tinha um monte de monge… enfim. Digo contato direto porque sua produção influenciou o pensamento no século 20 e, portanto, a minha e a sua vida indiretamente.

Mas não sendo obrigado a conhecer Umberto Eco, saiba que você também não é obrigado a postar besteiras nas redes sociais sobre alguém que não conhece só para ser o diferentão no momento em que muita gente comenta o seu falecimento, ocorrido nesta sexta (19).

Não sei nem porque estou me lamuriando. Eu tinha certeza que quando desse meu mergulho matinal nas redes sociais, teria vontade de arrancar meus olhos após ver certas coisas. Para entenderem o que quero dizer, chegou ao ponto de chamarem o homem de “petralha''.

E por quê? Porque uma pessoa com pensamento de esquerda havia elogiado o escritor. E para muitos que não têm conteúdo e não almejam tê-lo, basta saber que, se o seu “inimigo'' admira alguém, esse alguém é um bosta. E, imediatamente, atribuir a ele uma série de opiniões que pertencem ao seu “inimigo'' e não ao escritor por ele admirado. As pessoas deixam de ser o que elas são e passam a ser o que eu acho que elas devem ser baseado em quem os admira.

Se a qualidade de alguém fosse guiada pela análise de seus seguidores, poderíamos dizer que Abraão, Jesus e Maomé não são grandes coisas, tendo em vista o perfil tosco, fundamentalista e violento de parte dos que os idolatram.

Quando Umberto Eco disse que as redes sociais davam acesso à palavra a uma “legião de imbecis'', que tiverem suas conversas – antes restritas à mesa de bar – transportadas ao mundo todo, elevando o vazio à categoria de ganhador de Prêmio Nobel, nunca teria imaginado que alguns desses imbecis postariam bizarrices sobre sua própria morte sem ter ideia de quem era ele. Ou teria imaginado, rido disso, imaginado o quanto o debate público está pobre e refletido que nós realmente caminhamos em direção à nossa autodestruição. Vem, meteoro, vem.

Creio que Umberto Eco não morreu. Ele simplesmente se cansou e se foi. Este mundo de possibilidades infinitas que vão se desdobrando à nossa frente também guarda uma série de desgostos para alguém que confiava no papel central do conhecimento, mais do que da opinião, no desenvolvimento da humanidade.

Conhecimento que nunca foi tão importante e, ao mesmo tempo, tão desprezado.