quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Conto de Natal

A minha artista Vanguardíssima, Sandra Camurça, que torce pro Santa Cruz e adora uma briga justa, lembrou, agora há pouco, de um conto publicado por um outro brigão (que eu igualmente admiro) e sensível Pirata Z, o Xará Marcelo, jornalista com selo de qualidade Fausto W - o Mega-Ultra-Foda e incomparável Fausto do JB. 
Lindamente bem escrito, como sempre, e emocionante na medida certa. Italiano e mundial. 
Reproduzo aqui com os votos de um natal repleto de paz e, como diria o Xará Pirata, que os seus olhos sejam atendidos.


Por Pirata Z

um conto de natal
ecco! - ou, 'Don' Angelo e o cavalo do Zorro


1973. eu, 7 anos de idade.
como todo mundo, em toda família, eu tinha um tio meio 'torto' - casado com 
uma irmã de meu avô siciliano - e meio banana, também. seu nome era [ó só]
Américo... rico. muito rico. bobo. muito bobo. vai vendo.

todo ano, próximo ao natal, ele perguntava qual presente a gente gostaria de
ganhar, mas, no almoço de natal, sem nem embrulhar, ele dava pra todos uma
mesma revistinha do rato mickey... no ano seguinte, a mesma pergunta, e eu,
bobo, na batata, respondia: "a capa, a espada, a máscara e o cavalo do Zorro!". tá.
chegava o natal, revistinha do rato mickey. no ano seguinte, mesma pergunta,
mas, desta vez, pensando que, talvez por conta do cavalo, que devia custar uma
nota, é que eu nunca ganhava o que pedia, tirei o bicho do pedido. em vão... no
almoço de natal, revistinha do rato mickey... vendo-me murchar, 'Don' Angelo,
meu avô, não se conteve. cuspiu no prato uma castanha que estava comendo,
juntou os polegares às pontas de cada mão em concha e, agitando-as, disparou:

- ascuta me, Américo: sei pazzo?
- what's up? - provocou o tio américo, que adorava falar inglês menos para se
exibir e mais para irritar meu avô, sabendo-lhe o apego às suas raízes.
- uatis api mio cazzo! risponda me: sei pazzo?
- no, i don't. why?
- então, caspita ! qual o prazer de deixar uma criança triste?!
- mas eu não dei o presente?
- ah, fancullo! um aviso: nunca mais - mai, capice? - dê presente para meus
netos, capice?
- mas...
- capice, pezzo di merda?
- tá, tá, entendi...
- ecco!

e, com seu sangue siciliano ebulindo nas veias, 'Don' Angelo esmagou uma
noz com as bases das mãos, 'sinalizando', claro, que é o que faria com o crânio
do cunhado cretino, não fosse isso matar Giulia, a sua irmã, de desgosto, com
o que, além de tudo, sem o bolo de nozes que esta fazia, os natais nunca mais
seriam iguais - e natal, para o meu avô, era coisa muito séria; daí sua fúria.

'Don' Angelo foi um homem de amores plurais; assim, amou intensamente,
enquanto viveu, os netos e as mulheres - nesta ordem, graças à qual minha
avó, 'Dona Pina', assim o definia: - "um péssimo marido, um pai severo e um avô
de conto de fadas" - e foi, mesmo, tudo isso, mas eu tive a sorte de ser neto...
militar reformado, nunca foi rico, mas, para os netos - e para as "ragazzas",
claro - jamais negou nada, nunca aparecendo para ambos com as mãos vazias
[e, no natal, essa característica era elevada à enésima potência].

pelos netos, em dezembro, sossegava o "periquito", vivendo exclusivamente
para a família. ia ao banco, sacava todo dinheiro duma conta de poupança que
mantinha para o natal, na qual, de janeiro a novembro de cada ano, 'pingava'
toda grana que conseguia economizar. pegava o seu Maverick - que, pra mim,
nanico como fui em criança, parecia um iate -, juntava os netos, e íamos às 
compras - exceto as de nossos presentes, que essa era uma delícia toda dele.

filho de um comerciante de frutas, secos e molhados,
'Don' Angelo era um craque pra escolher as melhores e
mais variadas frutas. pelo toque e pelo cheiro, sabia se
eram, ou não, as mais deliciosas - idem para a escolha
das azeitonas e do azeite [siciliano, sempre, e o cheiro
deste nunca mais saiu de minha memória], bem como
do cordeirinho a ser assado e do vinho a ser bebido [até
pelas crianças, aos bocadinhos por ele, claro, servidos].

comprávamos ainda todos os ingredientes para as massas e doces que Dona
Pina preparava em casa - até os 9 anos, nunca comi massa industrializada -, e
mais: velas, adereços para a árvore que ele montaria, tudo de necessário para
receber "os cavaleiros e a princesa de meu reino", referindo-se, respectivamente,
aos 4 netos e à única neta de sua corte muito particular - e tudo isso em troca,
acredite, de ouvir uma única e mesma palavra de cada neto à sua pergunta:

- então: tutti bellissimo?
- ecco! - exclamávamos, individualmente, a palavra mágica.

e 'Don' Angelo, depois de ouvir 5 ecco, com o seu rosto de homem mais feliz
do mundo, ensopava um dos finos lenços que adorava ganhar. italianíssimo...
por aí, creio, dá para imaginar o que significou pra ele a babaquice do tal tio
Américo, à qual reagiu não só esmagando a noz, mas, faltou dizer, chamando-
me junto a si, colocando-me no seu colo e, com o maior sorriso, dizendo-me:

- ei, piccolo Zorro, que cara é esta, hãn? no natal do ano que vem, EU vou te
dar a tua capa, a tua máscara, a tua espada, e mais: vou te dar o teu cavalo!
- branco, vô?
- ecco!
- grande?
- bem - e olhou em direção ao Américo, antes de responder: - mezzo. pode?
- ecco!
- ecco! - repetiu 'Don' Angelo, com um sorriso diferente no rosto.

durante o ano, eu não pensava noutra coisa que não no cavalo que meu avô
me prometera. em outubro, comecei a ser preparado para a chegada do bicho -
e meu avô, com toda sua lábia, me convenceu de que ter um cavalo 'diferente'
era muito mais legal do que ter um cavalo igual a qualquer outro. concordei.

num domingo, estava na casa de meu avô. Palmeiras e São Paulo jogariam
uma partida decisiva, e meu avô estava muito agitado, nervoso. acendeu seu
cachimbo, colocou-me em seu colo, e me perguntou:

- quem vai ganhar, Zorro?
- o Palestra. de quanto, vô?
- não importa. basta ganhar - e viva o Palestra!
- viva!

5 minutos de jogo, gol do São Paulo. o cachimbo de 'Don' Angelo foi ao chão.
toca o telefone, minha avó atende e passa o aparelho pro meu avô, dizendo:

- é o Américo.

o tio Américo era tão são-paulino, mas tão são-paulino, que, rico, comprara
uma mansão no Morumbi, para facilitar a vida dos amigos que tinha no clube,
nos dias em que fazia festas pra estes.
meu avô, já esperando a gozação, atendeu.

- alô. sim... sei... caspita! já disse que sei! fancullo! o jogo apenas começou -
bum! bateu o telefone, e exclamou: - e viva o Palestra!
- viva! - acompanhei.

10 minutos para acabar o primeiro tempo. falta a favor do São Paulo. Pedro
Rocha, se não me falha a memória, vai bater. tem, dizem, um canhão no pé.

- vô, eu quero um canhão pra colocar no pé.
- filho, fica quietinho. vamos torcer pra bola acertar o placar.
- mas cê me dá um canhão pra colocar no pé?
- dou, mas depois.

gol do São Paulo. desta vez, eu - não o cachimbo -, é que vou ao chão, com o
salto que meu avô deu da cadeira, berrando palavrões, brigando com o locutor,
esquecendo-se de que eu estava em seu colo...

- desculpe, filho. foi sem querer que o vovô fez isso, ouviu?
- ouvi. me dá um canhão pra colocar no pé?
- dou, mas amanhã. hoje é dia de torcer pro Palestra. e viva o Palestra!
- viva!

toca o telefone.

- se for o filho da puta do Américo, diz que tô com a irmã dele, ligo depois.
- alô - atendeu 'Dona' Pina, que foi logo dizendo: - Américo, se eu fosse você,
ligava mais tarde.
- certo, Pina, mas fala pro Angelo não se esquecer do que...
- Américo - interrompeu minha avó.
- quê?
- fancullo!

começa o segundo tempo. 15 minutos de jogo, pênalti para o Palmeiras, que
Leivinha converte. toca o interfone, minha avó atende.

- sim, claro. mil desculpas. obrigado. - diz 'Dona' Pina, que desliga o aparelho
e fala para meu avô: - o síndico pediu pra fazer menos barulho.
- corintiano filho de uma puta, isso sim!

mais 10 minutos, Ademir da Guia cruza para César Maluco, que, de cabeça,
empata para o Palmeiras. indescritível, a reação de meu avô. toca o telefone -
desta vez, ele mesmo atende:

- parla, cornuto! grita agora, fala agora! o quê? da onde? sim, e daí? fancullo!
- quem era, o Américo? - quis saber minha vó.
- não, o síndico do prédio vizinho.
- e o que ele queria?
- pediu pra eu fazer menos barulho, o corintiano filho de uma puta.

o São Paulo, preferindo levar a decisão pros pênaltis, se fecha na defesa, e o
jogo fica amarrado, mas o Palmeiras insiste em tentar resolver o jogo no tempo
regulamentar. Luís Pereira vem com a bola lá de trás, da defesa palmeirense,
avança rumo ao meio-de-campo, e, quando um são-paulino vem marcá-lo, ele
toca para Dudu, que toca de primeira pra Leivinha, que dribla um, dribla outro,
avança e toca pra Ademir da Guia, que conduz a bola até a meia-lua com toda
a classe que lhe valeu o apelido de "Divino", corta um, desvia de um 'carrinho'
e, antes que 'Don' Angelo terminasse de mastigar o braço da poltrona, toca na
bola por baixo, esta encobre o goleiro e desce "lambendo" a rede, e o Palmeiras
vira o jogo. 3 a 2. faltando 1 minuto pra acabar, a torcida invade o campo. fim.

sentiram falta de algo e de alguém? eu também, no dia, porque 'Don' Angelo
não comemorou o gol, a vitória, o título, nada... saíra de mansinho da sala, pra
falar no outro telefone. ao encontrá-lo, vi que falava baixinho com alguém.

- era o tio Américo?
- não, filho, era a vizinha japonesa.
- e o que ela queria?
- não sei, filho, eu não falo japonês...

noite de natal. 'Don' Angelo, animadíssimo, entregando os presentes para
os netos. chega a minha vez.

- e a mio piccolo Zorro... questo!

qual prometera, 'Don' Angelo me deu a capa, a máscara e a espada do Zorro.

- e o cavalo, vô? - cobrei
- amanhã, na casa da tia Giulia.

mal dormi, aquela noite. já de manhã, as horas pareciam não passar, nada
de chegar a hora do almoço. me distraí com os apetrechos do Zorro, e usei um
cabo de vassoura à guisa de cavalo, e 'cavalguei' e enfrentei inimigos até ser
finalmente chamado para o banho, que tava na hora de ir à casa de tia Giulia.
fui vestido de Zorro, como recomendara 'Don' Angelo, para minha alegria, e,
lá chegando, tio Américo, com os seus cabelos brancos levantados de um jeito
muito engraçado, parecendo um moicano, ou parecendo ter uma crina, pegou-
me no colo, colocou-me sobre os seus ombros, e me disse:

- muito prazer, Zorro! meu nome é Pangaré, e eu sou o seu cavalo. Vamos?

e tio Américo saiu correndo pelo jardim enorme de sua casa, trotando e, eu
não entendi porque, gritando "Palestra, Palestra, Palestraaa!!", mas me diverti,
achando até melhor que um cavalo de verdade, que não gritaria "Palestra"...
eu o cavalguei por uns 5 minutos, até que meu avô veio, me tirou do ombro
de tio Américo, e disse:

- pronto, filho. depois você anda mais a cavalo.
- mas, vô, tava legal...
- dopo, filho, dopo. eu prometo. eu sou de não cumprir o que prometo?
- não.
- ecco! e você, Américo, vá se arrumar, vá.
- mas...
- caspita! vá se arrumar, que seus netos chegaram, porca miséria!
- olha, depois não venha me dizer que eu não paguei a...
- Américo, vá se arrumar pra receber seus netos! que prazer você tem em
deixar crianças tristes, dio santo!

na hora, fiquei injuriado, mas 'Don' Angelo, esperto, me distraiu rapidinho,
retomando aquela conversa sobre comprar um canhão para o pé, e aí, claro, o
"cavalo" não importava mais.
tempo depois, já crescidinho, ele já morto - 1982 -, é que pude, finalmente,
entender a dimensão emocional de 'Don' Angelo, "péssimo marido, pai severo e
um avô de conto de fadas". era mesmo. inclusive para netos que não os seus.


~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ pz ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~



Marcelo Carota é jornalista, escritor, zineiro, paulista e palmeirense. 
Mora em Brasília/DF e se auto-denomina um caipira punk.


Texto editado originalmente em 19/12/2007 na Pirata Zine (zine eletrônica), edição 107, ano 4.


segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Resumo da Chuva 2014


E mais um ano cruza a reta final e está pronto para receber a bandeirada! É este tragicômico 2014. A gente não quer mais te ver por aqui.

E se as eleições deram pano para outras mangas e muitas cartas escondidas, acusações e bandalheiras por todo o Brasil, fabricação de factóide, revistas jogando o jornalismo na lama, em movimentos de puro desespero e panfletagem, e outros fatos lamentáveis, nada foi mais representativo do que o Lobão com suas passeatas totalmente Vida Bandida. Nada, absolutamente nada, foi tão risível e deprimente do que assistir um ídolo definhar intelectualmente – e olha que a concorrência foi dura. Muitos quiseram o seu lugar, mas ele não deixou. Como um bom Lobo, tratou de morder o seu nicho inverossímil, de convicções ébrias e etéreas e foi pra rua com o seu chapéu de Napoleão e a barba da Al-Qaeda. Melhor, impossível.

No terreno das mortes o fôlego de Zé Maria deu inveja a muito maratonista. Foi de uma congestão hercúlea. Desde as mais rotineiras às chocantes. Eusébio (o Cristiano Ronaldo dos tempos em que, para ser craque, tinha que ser pintor), Philip Seymour Hoffman (Boogie Nights, Capote, Magnólia, Jogos de Poder... Tá bom?), Eduardo Coutinho, José Wilker, Gabriel Garcia Márquez (Puta-que-pariu!), Jair Rodrigues, Mãe Dinah (que, infelizmente, não previu a própria morte, nem a de ninguém), João Ubaldo, Suassuna (sacanagem, porra!), Rubem Alves, Robin Williams (fez Bom Dia Vietnã e Sociedade dos Poetas Mortos, pra mim já tá bom, entrou pra história), Eduardo Campos (Não me dizia nada, mas foi trágico, forte), Antônio Ermínio de Moraes, Hugo Carvana, Leandro Konder, Manoel de Barros (o encantador de passarinhos). Bem, eu não vou nada bem...

E, enquanto ia numerando (com a ajuda do oráculo google, o novo grande arquiteto do universo) os mortos que me convinham, a Alemanha fazia o gol número 7.700 contra o Brasil.

Mas nem tudo foram lágrimas! Teve um tal de Haddad, louco de pedra, que foi contra a postura patropi da política brasileira e, invertendo a lógica tupiniquim, abriu guerra contra o retrocesso em Sampa. Teve o Chico lançando livro, o Pink Floyd se despedindo, escândalos de corrupção às toneladas (sinal de que estamos investigando os branquinhos dentro dos seus condomínios de luxo e não, apenas, o preto favelado), as 1.000.000 de pessoas protestando no Centro do Rio de Janeiro (e a globo dizendo ser 100 mil), Brasília ocupada de forma magnífica (êta povo bom! Só quem não conhece a história desse povo pode cometer a asneira de falar em gigante acordando...).

Aliás, o exoesqueleto não foi du-caralho?E a Malala Yousafzai? Linda criança no ápice do mundo! 

O Botafogo caiu... Mas convenhamos: tem coisas que só acontece com o Botafogo.




Chega de eufemismos



Num longo ensaio publicado seis meses atrás na revista “New Yorker”, o jornalista Adam Gopnik disserta sobre linguagem e eufemismos. O autor sustenta que é preciso coragem para eliminar o clichê e o eufemismo do nosso discurso, pois significa estarmos dispostos a chegar mais perto da verdade.

“Sempre que falamos de forma direta sobre algum tema que atrai camadas de mentiras estamos promovendo a sanidade da nação”, escreveu Gopnik. Ou, como dizia George Orwell, metáforas surradas não passam de uma sopa de palavras destituídas de qualquer poder evocativo, que servem de muleta ao orador sem imaginação ou àquele com algo a esconder.

De fato, como demonstrou o laborioso relatório final da Comissão Nacional da Verdade divulgado semana passada em Brasília, abordar temas cabeludos sem recorrer a malabarismos linguísticos acaba apontando para responsabilidades reais. E assim, sem meandros, a tortura praticada no período da ditadura militar brasileira foi qualificada como política de Estado. E os responsáveis finais por essa política de Estado estão listados nominalmente, começando pelo mais alto escalão. A História agradece. E a História do Brasil se engrandece.

A publicação do relatório da Comissão de Inteligência do Senado dos Estados Unidos sobre o abuso de poder da CIA entre 2001 e 2009 foi mais oblíqua na questão da responsabilidade final. Mas teve o mérito de acabar com uma das mais perversas sopas de palavras criadas e manipuladas pelo governo de George W. Bush — o eufemismo “Técnicas de interrogatório avançadas”, por vezes também chamado de “conjunto de procedimentos alternativos”.

No lugar desses eufemismos de sonoridade funcional, asséptica e enganosa, o relatório de 6.700 páginas e 38 mil notas de rodapé usa o substantivo correto, de compreensão universal: tortura. A partir de agora, todo cidadão americano terá de aceitar a responsabilidade de saber que autoridades de seu país optaram por transformar agentes em torturadores.

Apesar da avalanche de evidências, o atual diretor da CIA, John Brennan, não se sentiu capaz de pronunciar a palavra crua e nua em seu depoimento perante a comissão. Optou por designar como “métodos repugnantes” o elenco de atrocidades cometidas pelos serviços de inteligência. “Os interrogatórios eram cuidadosamente calibrados e humanos”, acrescentou em seu testemunho o ex-agente Melvin Goodman. E José Rodriguez, o mais graduado chefe de operações responsável pelo programa de tortura, ainda defendeu a prática como “tendo recebido o aval das mais altas autoridades jurídicas do país e ter sido aplicada por profissionais altamente treinados”.

Nessa linha, o descompasso mais grotesco entre fato e fantasia ficou a cargo de Michael Hayden. Por ter sido um dos diretores da CIA de George W. Bush, foi inquirido sobre a reidratação retal que fazia parte do balaio de abusos. “Alto lá”, indignou-se Hayden, “eram procedimentos médicos voltados para a recuperação de prisioneiros desidratados. Não podíamos recorrer a injeções intravenosas por estarmos lidando com detentos não cooperativos”.

No implacável relatório da comissão senatorial americana, porém, consta o telegrama de um agente relatando que o detento Majid Khan recebera o seu “almoço do dia (homus, macarrão com molho, nozes e uvas passas) por inserção retal. Usamos o tubo Ewal maior que tínhamos”. Um chefe da equipe de interrogadores listado no relatório confirmou a eficácia do método da reidratação retal: obtém-se o “controle total” do preso. O procedimento “limpava a cabeça” da vítima, testemunhou outro interrogador.

Perdida a batalha contra a divulgação do relatório, os apologistas das “técnicas de interrogatório avançadas” deslocam-se agora para outra trincheira. Tendo à frente o cavernoso Dick Cheney, vice-presidente à época e homem-forte do governo Bush, tentarão refutar as conclusões do trabalho e desmontar a acusação de que o Poder Executivo, o Congresso e o Departamento de Justiça receberam informações incompletas e equivocadas sobre o programa. “Tudo besteira”, diz Cheney, sem mexer qualquer músculo da fisionomia inescrutável. “O programa foi autorizado. A CIA não procederia sem autorização e tudo foi revisado pelo Departamento de Justiça antes de ser deslanchado.”

A sombria tagarelice de Cheney recebeu uma resposta alentadora por parte do veterano Ray McGovern, que por três décadas serviu a seu país como oficial de Inteligência do Exército e analista da CIA. “Hoje ninguém mais pode ‘autorizar’ a tortura. Nem o estupro. Nem a escravidão”, escreveu McGovern, hoje membro de um grupo intitulado Veteranos Profissionais de Inteligência Pró-Sanidade (VIPS). “A tortura faz parte da categoria moral que os estudiosos de ética classificam como mal intrínseco — o fato de ela dar ou não algum resultado é irrelevante.”

Segundo essa linha de pensamento, torturar é errado não pela existência de uma Convenção da ONU e de leis nacionais que a proíbem. Ocorre o contrário. As proibições legais foram sendo construídas porque as sociedades civilizadas reconheceram que seres humanos não devem torturar, ponto.

Joseph Brodsky, o poeta e ensaísta que emigrou para os Estados Unidos após ser expulso da União Soviética, escreveu: “A vida é um jogo cheio de regras, mas sem árbitro. Aprende-se a viver observando o jogo, mais do que consultando qualquer livro, inclusive o Livro Sagrado. Nenhuma surpresa, portanto, que tantos trapaceiem, que tão poucos vençam, que tantos percam.”

Para o detentor do Nobel de Literatura, o perigo está no homem que não sabe argumentar ou se expressar de forma adequada — ele acaba recorrendo à ação. “E dado que o vocabulário da ação limita-se, por assim dizer, a seu corpo, esse ser humano agirá com violência e estenderá seu vocabulário com uma arma no lugar do que poderia ser um adjetivo.”

A Comissão da Verdade brasileira e o relatório sobre Tortura do Senado americano certamente alegrariam a alma dividida do poeta.


Dorrit Harazim é jornalista