segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

Cuidar da própria vida



Gente radicalizada, vá lá: há jornalistas envenenados pela própria propaganda festejando a demissão de colegas e o fechamento de fontes de emprego, há fundamentalistas para quem o que foi escrito há milhares de anos (e traduzido sabe-se lá como, sabe-se quantas vezes) deve ser interpretado ao pé da letra, mesmo à custa da própria vida ou da vida de outros. E, como não disse o empresário americano P. T. Barnum, ninguém jamais perdeu dinheiro por superestimar o número de malucos no mundo.

Mas bons jornalistas, professores universitários, gente inteligente e preparada não deveriam fazer-se de desentendidos diante do assassínio, por terroristas islâmicos fundamentalistas, de grande parte da equipe do Charlie Hebdo. Não se pode, em sã consciência, dizer que o Charlie Hebdo abusou da liberdade de imprensa e que, portanto, estava mesmo sujeito à barbárie, tendo até contribuído para atraí-la. Isso é tornar-se cúmplice do crime.

O problema é outro: o humor do Charlie era efetivamente agressivo, frequentemente de mau gosto, desconhecia limites – tudo, porém, na forma da lei. Ofendia muçulmanos ao desenhar Maomé, o que e proibido pelo islamismo? Ofendia judeus ao desenhar o Senhor, que pelo judaísmo não deve ter sua figura representada? Ofendia católicos, ao sugerir que a Virgem Maria inventou a história da gravidez imaculada para que seu marido José não se sentisse tentado a repudiá-la?

Sim, ofendia (e, esperemos, continuará a fazê-lo, ignorando as ameaças dos malucos assassinos); e quem se sentisse ofendido teria dois caminhos a seguir, o primeiro deles entrar na Justiça e verificar se teria havido violação da lei, o segundo ignorar a existência da revista e continuar vivendo sem que ela lhe fizesse falta.

Mas exigir que fiéis de outras religiões e ateus se comportem como muçulmanos ortodoxos é inaceitável (e, a propósito, comportar-se como muçulmano ortodoxo, para começar, significa ser xiita, alauíta ou sunita?). Este colunista, judeu, ficou chocado quando um bispo evangélico chutou a imagem da Virgem Maria; imagina que católicos mais fervorosos tenham se sentido muito mal com isso. Mas seria inimaginável a reação de sair por aí matando quem não se importasse com a sacralidade da imagem.

A questão, enfim, não é saber se o Charlie Hebdo era ofensivo ou não, de mau gosto ou não, excessivo ou não. Ninguém jamais foi obrigado a comprar ou a ler a revista; ninguém jamais foi proibido de processá-la, ou a seus colaboradores, por ofensa a uma religião ou convicção. A questão é saber se uma religião, uma posição política, uma atitude qualquer, deva preponderar sobre as demais religiões, posições políticas ou atitudes.

Não deve; não pode. Esta é a diferença entre os fundamentalistas ocidentais, aliás chatíssimos, e os fundamentalistas muçulmanos. No Ocidente, cada um tem o direito de seguir suas convicções desde que não obrigue os outros a segui-las. Se o cavalheiro é pagão, problema dele. Se a dama é wicca e acredita em mágicas, problema dela. Se alguém decidir adorar a imagem de um carneiro assado com ameixas, problema dele – desde que não passe a perseguir quem quer que aprecie um bom carneiro assado, com ou sem molho.

Je suis Charlie. Ser Charlie não significa concordar com as ideias da revista, não significa concordar com o que é divulgado pela revista. Significa, única e exclusivamente, lutar pelo direito da revista e de seus colaboradores de expor seus pontos de vista, sejam quais forem, conforme previsto em lei.

O Senhor nos deu uma vida para que cuidemos dela. Que cada um tenha o direito inalienável de cuidar da sua, sem que ninguém se meta nela.

Uma história de Gulliver

Em seu excelente livro As viagens de Gulliver, Jonathan Swift conta que um determinado reino há muitos e muitos anos guerreava contra um reino vizinho. Motivo: o reino visitado por Gulliver tinha uma lei que obrigava os súditos a quebrar os ovos cozidos pela extremidade mais fina, enquanto os inimigos os quebravam pela extremidade mais grossa.

Swift e Gulliver são sempre muito atuais.

O caso Saló

Este colunista assistiu ao lançamento de um filme de Pier Paolo Pasolini que marcou época, Saló – 120 dias em Sodoma. O filme era bom, mas com cenas extremamente chocantes, a tal ponto que em determinado momento mais da metade do público já se havia retirado. Havia cenas de extrema violência, cenas que provocavam nojo, cenas difíceis de tolerar. Quem gostou ficou; quem não gostou, saiu. Ninguém pensou em atentar contra a vida do diretor porque o filme era ofensivo (e era) e violentíssimo (e era).

Este colunista não gosta de novelas. Em vez de iniciar alguma campanha ridícula para proibi-las, prefere trocar de canal, ou fazer alguma outra coisa. Nada de jogar a TV pela janela, ameaçando a vida de alguém na rua, para depois botar a culpa naquela novela que considerava um horror.

Simples assim. E não esqueçamos um pensamento recorrente, o de que há estupros porque as mulheres se vestem de maneira provocante. Botar a culpa na vítima é a melhor maneira de perpetuar a barbárie.
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Obs.: Lembro-me que essa discussão começou bem antes do Charlie. Ela é cíclica em toda democracia. Ela é um pouco do que disse (ou provavelmente não disse, mas a citação resume bem o seu trabalho) Voltaire:  "Posso não concordar com o que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo".


domingo, 11 de janeiro de 2015

“Levantado do Chão” e a saga do Latifúndio que herdamos



“E esta outra gente quem é, solta e miúda, que veio com a terra, embora não esteja registada* na escritura, almas mortas, ou ainda vivas?**”
Levantado do Chão, José Saramago


A história do latifúndio é escrita com suor e sangue de “gente miúda”, desconhecida, desimportante aos olhos de quem conta a história oficial.

É desta gente que fala José Saramago no romance Levantado do Chão, publicado em Portugal em 1980 (o escritor tinha então 58 anos) e editado no Brasil em 82, 96 e 2013. A publicação deste livro lançou finalmente o autor, que escrevia desde a adolescência, a uma posição de destaque no sistema literário português.

O romance conta a saga da família Mau-Tempo (que tem parentesco literário com os Buendía, os Trueba e os Campolargo e Vacariano), iniciada quando Sara da Conceição casa-se com Domingos e dá à luz a João Mau-Tempo, cuja vida acompanharemos até o seu último dia.

São 70 anos de história, desde a queda da Monarquia e a instauração da República até as primeiras ocupações de propriedades rurais no Alentejo ocorridas após a Revolução dos Cravos. Porém, não é a troca de nomes e bandeiras do regime vigente em Portugal que importa a este narrador. Também não é preciso saber um “a” da história portuguesa para entender o funcionamento dessa máquina de moer gente chamada Latifúndio:

“Está terra é assim. A Lamberto Horques disse o rei, Cuidai dela e povoai-a, zelai pelos meus interesses sem vos esquecerdes dos vossos, e isto vos aconselho para conveniência minha, e se assim fizerdes sempre e bem, viveremos todos em paz.”

À palavra do rei – ou da autoridade do Estado, junte-se o conforto da Santa Madre Igreja que exalta as virtudes das almas sofredoras e fecha os olhos para as carências dos corpos famintos e adoecidos pelo trabalho sem descanso. Se a teologia falhar, não faltam a imposição da ordem e a tirania do medo, nobres responsabilidades da guarda e da polícia nacional, o braço armado e assassino do Estado, aqui e lá, ontem e hoje.

Por décadas vive assim, trabalhando de sol a sol para o latifúndio a família Mau-Tempo e todo o proletariado rural do sul do país. A consciência política nasce da exaustão, quando o primeiro trabalhador, depois de uma jornada de quinze horas ou mais, com comida que mal dá para não morrer de fome, com casa que não passa de um ajuntamento de madeira ou tijolos, com filhos que começam a trabalhar assim que podem andar pelas próprias pernas, se pergunta se, afinal, isto é vida que se viva.

Contra a rebeldia de tal pergunta o Estado se apressa em dar uma resposta: durante o regime fascista de Salazar qualquer palavra contra o latifúndio e o direito sagrado da propriedade é repreendida com violência, prisão, tortura. João Mau-Tempo é preso e torturado pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE), a mesma que em 1945 prendeu, torturou e assassinou Germano Vidigal, militante do Partido Comunista Português. O uso brutal da violência é ficcionalizado por Saramago, e faz com que Levantado do Chão seja um livro que nos desperta uma dor desconhecida no corpo, um intenso desconforto na consciência e um desassossego sem remédio na alma.

Acompanhando a vida de João Mau-Tempo, o narrador reconstrói com palavras a dor, a fome, o frio e o medo de uma parte do povo português entregue à sua própria sorte e capacidade de resistência e de desejar uma melhor vida. João passa de criança que mal podia segurar a enxada que usava para trabalhar a adulto e pai de família. Por espalhar as ideias socialistas na sua vila alentejana, é preso, interrogado e torturado pela PIDE por meses, até ser libertado com o alívio de não entregar nenhum companheiro durante os interrogatórios.

Gracinda Mau-Tempo, sua filha, casa-se com com Manuel Espada, também trabalhador e militante, e dá à luz Maria Adelaide.

Vão-se acabando os tempos de conformação.

Na alegoria saramaguiana, quando o sangue dos desafortunados Mau-Tempo mistura-se ao dos emblemáticos Espada através do singelo nascimento de Maria Adelaide, de olhos azuis como os do avô João, uma nova voz, persistente e forte, ergue-se no latifúndio.

Essa voz pede que a jornada de trabalho no campo passe a ser de “apenas” oito horas e deixe de ser de sol nascente a sol poente. Essa voz exige que o pagamento por dia de trabalho seja mais do que o bastante para não morrer de fome. Essa voz também chora a morte de José Adelino dos Santos, assassinado em praça pública pela Guarda Nacional da República (GNR) em 1958. Mas os ouvidos do latifúndio estão surdos.

Os proprietários de terra impedem o proletariado de trabalhar, deixando o trigo apodrecer nos campos. O regime em convulsão – que está perdendo território nas regiões da Índia e da China, e perdendo vidas na guerra colonial na África, dá suas últimas mostras de poder. Mas o regime está podre, e em 25 de abril de 1974 vem a Revolução, e, com ela, o fim do medo da repressão policial.

O olhar lúcido de Saramago, porém, não enxerga a Revolução como um dia mágico que pôs fim a todas as opressões. Os donos do latifúndio são os mesmos, estes só perderam o braço armado do poder público, mas ainda o pode contratar pela via privada, bem se sabe que para os feitores e capatazes é que nunca faltou trabalho em terras ibéricas. As técnicas de intimidação também não mudam, de novo o trigo apodrece sem poder ser colhido, e os patrões de propósito não empregam ninguém, para que “essa gente” aprenda a sua lição.

E então, num sítio qualquer do latifúndio, a história lembrar-se-á de dizer qual, os trabalhadores ocuparam uma terra.

Não, a revolução de Saramago não sai do quartel, e sim do campo, de um povo que sente frio e dor e fome há mais tempo do que se pode lembrar, e que um dia diz, basta. Sem medo da polícia, os trabalhadores rurais ocupam os latifúndios do sul do país, e iniciam o que viriam a ser as Unidades Coletivas de Produção.

O romance acaba com a alegria da ocupação do latifúndio em que os Mau-Tempo trabalharam por toda a vida. João morre antes de ver “este dia levantado e principal”, mas Saramago lá o retrata, presente em espírito, assinalando que os mortos também hão de ver a realização das suas utopias.

Com Levantado do Chão nasceu o “estilo saramaguiano”, inspirado na imemorial narração oral, feita de gestos, palavras e pausas, umas longas, outras nem tanto. Saramago mantém apenas a pontuação das pausas: os pontos e as vírgulas, e todo o resto é explicado por palavras, e apenas elas. Para ler Saramago é preciso imaginar uma voz que conta uma história, e ouvir essa voz a disfarçar-se cada vez que é um personagem que fala, como os adultos fazem ao contar histórias para as crianças, como os velhos fazem ao contar casos para os adultos.

A leitura deste romance nos ajuda a entender a mentalidade que está por trás do Latifúndio, que é anterior à invenção do Brasil, (esse até ontem colossal latifúndio além-mar de Portugal), e é importante para entendermos que não, Sra Kátia Abreu, o latifúndio não acabou por aqui.

O latifúndio não é só uma grande propriedade rural, produtiva ou não, pertencente a uma só família. O latifúndio é esse sistema que mói gente para gerar riqueza pra quem não trabalhou a terra. O latifúndio é esse responsável pelo Alentejo ser uma das regiões mais pobres da Europa, é o que motivou a escravidão hedionda de africanos e o assassinato de povos autóctones nas Américas, é o que vai empobrecendo e envenenando a terra, concentrando riqueza, reproduzindo desigualdades e injustiças históricas, destruindo infâncias, encurtando vidas.

Enquanto sentirmos os efeitos do latifúndio, essa herança colonial, o latifúndio existe, e é por isso que a defesa da reforma agrária não é anacrônica ou apenas “coisa de comunista”. Precisamos de um novo sistema produtivo porque com ele virá uma uma nova maneira de conceber o valor da terra e das riquezas que ela pode gerar.

Levantado do Chão termina no momento em que a utopia do direito à terra, da jornada justa e do salário digno parece virar realidade. A reforma agrária, contudo, não veio a se concretizar de forma duradoura, e a adesão de Portugal à Política Agrícola Comum da União Europeia na prática anulou os efeitos das lutas locais do passado.

Ainda assim, a história do caminho trilhado por pessoas que sonharam e lutaram por um futuro mais justo permanece viva e a inspirar aqueles que queiram seguir seus passos.

Cada conquista nossa é também conquista dos que lutaram antes de nós e não viveram para ver o dia em que a utopia se tornou realidade. Também nós não viveremos para ver todas as conquistas das gerações futuras. Mas que isso não nos impeça de levantá-las do chão hoje.

* Esta é a grafia em Portugal para a palavra “registrada”.

** Todas as citações são da 12a ed de Levantado do Chão pela editora Caminho, páginas 14, 107, 328 e 361, por ordem de aparição no texto.




sexta-feira, 9 de janeiro de 2015

“Veja”, Mainardi, Moura Brasil, Sheherazade “ne sont pas du tout Charlie”



Não há nada mais nojento do que o oportunismo que uma parte espúria da imprensa brasileira tem feito em relação ao lamentável ataque terrorista à redação da revista francesaCharlie Hebdo, que nesta terça-feira (7) resultou na morte de 12 pessoas, entre elas dez jornalistas e dois policiais.

Valendo-se de uma paralelismo canalha, oportunistas alçados à categoria de colunistas tentam agora associar a presidente Dilma Rousseff ao que aconteceu em Paris (como se em algum momento ela tivesse se declarado uma entusiasta do terrorismo) e comparam-se aos cartunistas do periódico francês – algo que só faz sentido na cabeça de pessoas sem qualquer capacidade de autocrítica.

É claro que estou falando da revista Veja e de seus asseclas Diogo Mainardi (hoje em blog próprio) e Felipe Moura Brasil (aquele que disse que homossexualidade era um tipo de neurose e que ninguém nasce gay), que em artigos escritosno dia da tragédia tentam, de maneira ofensiva à memória dos mortos, colar em si a pecha de perseguidos ou de vítimas de uma suposta censura terrorista, mesmo tendo a liberdade de atacar diariamente não apenas o governo como grupos que lutam pelo direito de ter seus direitos humanos respeitados. Felipe Moura Brasil, depois de defender Sheherazade e argumentar que todos os blogs que discordam dele são pagos pelo PT, ataca: “Os ataques petistas à liberdade de imprensa são movidos pela mesma intolerância à divergência, à crítica, à sátira que move os terroristas islâmicos, guardadas as diferenças de método e grau de criminalidade com que a colocam em prática”. Mainardi foi mais sucinto:

Não se deve negociar com os fascistas”.

Stéphane Charbonnier, editor-chefe do Charlie Hebdo, assassinado hoje em Paris, a propósito dos terroristas islâmicos.

“A melhor forma é o diálogo”.

Dilma Rousseff, presidente do Brasil, sugerindo negociar com os mesmos terroristas.

Desculpem, mas Veja não é Charlie, assim como Diogo Mainardi não é Charlie, nem Rachel Sheherazade, a quem Felipe Moura Brasil tentou arregimentar ao rol de vítimas em um de seus artigos infantis, para dizer o mínimo. Rodrigo Constantino e sua homofobia implícita em artigos canalhas tampouco são Charlie. Os pastores Marco Feliciano e Silas Malafaia também não. Nem Jair Bolsonaro, embora esses três últimos adorem se munir do artigo 5º da Constituição para defender seus pontos de vista fascistas – quando conveniente, claro…

Porque para ser Charlie é preciso, antes de qualquer coisa, coragem. E não apenas a coragem de ser irreverente e às vezes até ofensivo. Mas coragem de defender, acima de tudo, aqueles que são oprimidos.

E, neste sentido, se tem alguém que não é Charlie é a revista Veja. Aliás, se há algum paralelismo a ser feito entre esta publicação e os fatos ocorridos em Paris é com os terroristas, já que a especialidade desta revista é praticar terrorismo travestido de jornalismo. Estes artigos, que só faltam colocar um fuzil na mão da presidente da República, são um exemplo perfeito disso. Não apenas pela leviandade da afirmação, como pela hora mais que inoportuna.

Especialmente vindo de uma revista que apoia a “liberdade de expressão” de fundamentalistas religiosos, mesmo que não declaradamente (porque é covarde). Os mesmos “cristãos” que, se pudessem, fariam com o Porta dos Fundos a mesma coisa que os terroristas fizeram com o Charlie Hebdo. Ou será que eu estou mentindo quando digo que o pastor Marco Feliciano já tentou censurar os vídeos do coletivo de humor que satirizam a Bíblia? Ou será que eu estou mentindo quando digo que a revista apoia o discurso de incitação ao crime pelo qual Rachel Sheherazade foi processada?

Franceses homenageiam jornalistas mortos com a frase “Je suis Charlie” (Sou Charlie)
Para ser Charlie, a Veja e seus colunistas, assim como Sheherazade, teriam que, antes de tudo, fazer um jornalismo contrário à opressão social. Contrário ao elitismo. Contrário ao conservadorismo. Contrário à homofobia que já expressou em suas páginas. Contrário a quase tudo o que ela faz. Portanto, vitimizar-se às custas da tragédia alheia não faz desta revista e de seus colunistas necessariamente vítimas. Se Dilma, que foi torturada em nome da liberdade, não é Charlie, a Veja tampouco é. Acredito que um dia já foi, quando assim como a presidente lutava pela liberdade de imprensa e pela restauração da democracia em um país sob ditadura militar. Mas hoje não é mais.

Aliás, querer ser protagonista do sofrimento alheio é uma ofensa não apenas às verdadeiras vítimas da tragédia lá na França. É também uma ofensa aos verdadeiros jornalistas que lutam para que seu trabalho tenha algum efeito positivo na sociedade, como fazia (e continuará fazendo) o Charlie Hebdo.

E se formos fazer uma análise bem fria, nenhum veículo da imprensa brasileira é Charlie. Nenhum veículo de comunicação neste país teria colhões para publicar a charge em apoio ao casamento igualitário que ilustra este texto, ou qualquer outra das charges do Charlie Hebdo. NENHUM.

Como bem disse o Rafael Campos Rocha sobre a morte do cartunista Wolinski: “quem o matou foi mais um desses patrulheiros filhos da puta, para o qual a causa (seja religiosa, política ou de gênero) não serve para LIBERTAR, mas sim para COIBIR, CASTRAR e DESTRUIR, além de, é claro, manter a sociedade de exploração, que vocês, moralistas de merda, precisam para continuar transformando a vida dos outros em um inferno”.

Portanto, vamos nos recolher à nossa tepidez, à nossa insignificância global, lavar os copos, contar os corpos e sorrir, porque ainda estamos vivos e ainda podemos tentar seguir o exemplo de jornalismo (e até de ativismo) que o Charlie Hebdo deixou.

“Vous n’êtes pas Charlie! Vous n’êtes pas du tout Charlie!”


quarta-feira, 7 de janeiro de 2015

A ofensa do ofendido


 
Alguém se lembra dos ecochatos? Aqueles bicho-grilos falantes e indiferentes à urgência do progresso que se amarravam em jequitibás para trancar a passagem da civilização sobre a natureza? Pois é. Durante anos, bastava alguém levantar qualquer objeção à impunidade de tratores e serra-elétricas para ser desautorizado: você é “só” um ecochato. Logo, não merecia ser ouvido. E por não ter sido ouvido, durante anos, os modelos de exploração, consumo e descarte seguiram inalterados, às custas da destruição de matas ciliares, poluição de rios e extermínio das espécies.

Com o tempo, a ciência conseguiu ligar os pontos entre a devastação humana e os desastres supostamente naturais. Aprendemos, aos trancos, que o barranco desmatado de ontem é a área de deslizamento de hoje. Que o buraco devastado na floresta distante é o alçapão dos chamados rios voadores, estes que hoje minguam em nosso jardim, nossas áreas produtivas e nosso sistema de abastecimento. Que a emissão desregrada de CO2 é o tampão da panela de pressão a derreter calotas, elevar o nível dos rios, colocar em risco as populações litorâneas com ondas do tamanho de edifícios.
Pois é. A evolução cientifica serviu também para devastar o deboche. Os ecochatos de ontem são hoje chefes de Estado sentados à mesa em busca de uma solução para evitar o colapso.

Enquanto nem tudo se perde, a lição serve como uma esperança. Pois se tem algo positivo de ser adolescente em 2014 e não em 1984 é que, graças à nossa conexão em rede, os canais de informação se multiplicaram. Já não dependemos das vozes oficiais para ouvir, para aprender nem para nos divertir. Nesse novo mundo, os filhos já não se contentam com o “porque sim”, “porque é certo”, “porque sempre foi assim” do padre, da nona ou da TV aberta. Basta uma combinação bem-feita no Google para rebater, com fotos e dados, muitos dos lugares-comuns repetidos há séculos pelos velhos papagaios: não existe latifúndio no Brasil, não existe devastação, o mundo não está mais quente, a cidade está mais segura, o presidente sabe o que faz, negros e gays não se ofendiam com as piadas de antigamente.

É um efeito natural: quanto mais informação, maior o espírito crítico, maior a gritaria. Maior, também, a reação à gritaria. Dessa forma, os chamados “politicamente corretos” se tornaram os novos “ecochatos”: basta levantar o dedo para dizer que piadas com minorias não têm a menor graça para ouvir todo tipo de recriminação. “É só uma brincadeira”. “Você não sabe o que é uma piada?”. “Você não tem humor”.

Exemplo disso foi dado, no início da semana, por um dos principais ícones do humor brasileiro. Em entrevista à revista Playboy, o ator e comediante Renato Aragão se queixou da maldade nos olhos de quem vê maldade nas piadas que o consagraram. "Naquela época, essas classes dos feios, dos negros e dos homossexuais, elas não se ofendiam. Elas sabiam que não era para atingir, para sacanear".

Não vou ser malicioso e atribuir a um suposto ato falho do Trapalhão a inclusão de negros e homossexuais na categoria “dos feios”. Vou apenas questionar: será que negros e gays não se ofendiam mesmo? Quem atestou? Quem mediu? Quem referendou? O Datafolha? O disk Criança Esperança? Ou será que, sem os mesmos canais de antes, a ofensa era apenas tolhida e pouco reverberada? Como medir o alcance de uma ofensa em um mundo sem redes de relacionamento que hoje unem ofendidos do Norte, do Sul e do Centro, antes espalhados e desconectados, em uma mesma conversa? Será que hoje, ao saber que sua ojeriza é compartilhada, o ofendido não se sinta estimulado a expressar o que sente? Ou será que a queixa é apenas sintoma de uma geração mal-acostumada que não têm boa vontade o suficiente para distinguir uma piada de um tapa?

Bom, se valer o argumento do líder dos Trapalhões, o tapa também já foi mais respeitado pelos antigos. Escravos eram açoitados em praça pública e sempre levaram na boa – o silêncio da focinheira era, assim, apenas um charme. Da mesma forma, gays eram estapeados pelos pais dentro de casa até desentortar e não se ofendiam com a ação enérgica. Pelo contrário: entravam na linha, seguiram o curso da normatividade, se casavam com pessoas do sexo oposto e aceitavam ser infelizes para sempre.

E hoje em dia? Hoje em dia, o tempo da maldade, há inclusive leis para se punir surra corretiva dentro de casa. Vai ver é por isso que, longe da correção, gays, lésbicas e travestis tenham perdido a vergonha de sair à rua em passeatas para reforçar o próprio orgulho.

Na cabeça dos antigos, ao menos os que ainda pensam como em 1984 (ou seria 1884? Ou 1784?), o que falta a esses grupos é vergonha, e a vergonha tem dois aliados inseparáveis: o tapa e a piada. Ambos coram a pele. Ambos deixam marcas. Ambos servem para colocar os diferentes “em seu devido lugar”. Antes bastava chamar de bicha, bichinha, bichola. Ou de “pretis”. Ou dizer que “pretis é seu passadis”. Ou que amanhã é dia de branco. Ou que o serviço ficou uma pretice.

“Ah, mas o Mussum não ligava”. Pobre Mussum: em teu nome quantas ofensas foram escancaradas e justificadas, estas sim sem a menor vergonha? Pois, além de chorar, que outra opção deram a ele se não ser sorrir. Sorrir como quem cala. Sorrir como quem escapa de um tapa. Sorrir como quem adia o encontro consigo mesmo. Sorrir como riem os gays quando ouvem, em casa ou no trabalho, as velhas piadas como uma ordem para seguir quietos. Sorrir como a empregada ri da piada sem graça do chefe machão para não perder o emprego. Sorrir em nome da convivência. Em nome da própria vergonha. Sorrir – se possível, gargalhar.

Hoje quem se importa com os séculos de exclusão e decide romper, com protestos, o ciclo da ofensa do tapa e do riso é chamado de “politicamente incorreto”. Ou – pasmem – de racista. É que para muitos a maturidade não serviu para entender os contextos da própria consagração. Pois é mais fácil trocar os nomes e substituir a perversidade do passado por uma ingenuidade apunhalada apenas pelos olhos de quem vê.

Na mesma entrevista, Aragão classificou as piadas que hoje ofendem como “uma brincadeira de circo entre mim e o Mussum, como se fôssemos duas crianças em casa brincando”. A intenção, disse, não era ofender ninguém. “Hoje, todas as classes sociais ganharam a sua área, a sua praia, e a gente tem que respeitar muito isso”. É como dizer que a piada de português perdeu a graça porque o português chegou à plateia.

Enquanto o respeito citado pelo comediante for uma concessão a contragosto de quem sai de cena, ele será sempre um mal necessário, e não um processo de entendimento. Esse processo demonstra que a piada ofensiva não perdeu a graça porque o ofendido entrou em cena. Perdeu porque os níveis de consciência afloraram. Porque o mundo se transformou. Porque os símbolos ganharam novos significados. O riso é um deles.

Por incrível que pareça, o mundo não ficou mais chato por isso: muitos entenderam os novos tempos e decidiram refinar nosso humor e, com ele, nossa própria compreensão do mundo. Ninguém perdeu com isso, a não ser a velha chacota.