quinta-feira, 21 de maio de 2015

Acendendo cigarros em fogos de napalme

Foto Kevin Carter
Em algum lugar da Baixada, mas poderia ser no centro do Rio de Janeiro, no coração do Brasil ou na neve da Europa, uma senhora encontra-se estirada na rua, a barriga aberta com as suas partes interiores expostas, o joelho rasgado, a testa cortada; consciente, fala com os traunsentes que param e se preocupam e pegam as suas mãos, talvez para falar sobre o poder glorioso do criador, de gadu, jeová, ou, simplesmente a pegam por uma questão primeira, um gesto de humanismo dentro do microscópio. A estudante de enfermagem, atenta à movimentação, pergunta ao conglomerado que zumbia construções soltas de palavras se alguém havia ligado para a emergência, para a SAMU, para os bombeiros; recebe como resposta uma vã reticência, outro alguém esboçou um “não sei” que perdeu-se em meio à matilha que tira foto para publicação no whatsApp. O socorro não chega, mas a senhora já é notícia para aquele grupo que tem àquela prima que mora a trocentos quilômetros de distância e abre o aplicativo neste momento. A sociedade do espetáculo inflama. O humano vira cinza.
Enquanto isso, alheios à dor e indiferentes à miséria física e ao terrorismo social imposto pelo capitalismo, alguns miseráveis de espírito, porcos de intelecto, fazem “vaquinha” para a compra de algum bem material, talvez um apartamento, para ex-bbbs (ou o que quer que signifique “ex-bbbs”). Saramago surge às vezes para mostrar ao astronauta que o mundo continua boa mesa, mas não para os homens. Algo entre a alienação e o absolutismo da individualização rimaram com foda-se e é para lá que todos os humanistas estão indo. Sem um contraponto à insuportável realidade abissal de objeto, negação e vácuo, a humanidade se despede da humanidade e passa a se alimentar de fome conceitual. Estamos fodidos.
Faltam herois? Não, falta gente.
A máquina está vencendo.
A câmara quer um shopping de 1 bilhão para...
Alguém liga?

Há alguém aí?
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Fala do velho do restelo ao astronauta 


Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.

Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.

No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.

Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.

José Saramago
(In OS POEMAS POSSÍVEIS, Editorial CAMINHO, Lisboa, 1981. 3ª edição)