quarta-feira, 30 de julho de 2014

Manifestantes presos: muita calma nessa hora


“Em vão me tento explicar, os muros são surdos./ Sob a pele das palavras há cifras e códigos./ O sol consola os doentes e não os renova./ As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.” (Carlos Drummond de Andrade, “A flor e a náusea”)

Em momentos de elevada tensão, o melhor que uma imprensa responsável pode fazer é preservar a serenidade, única forma de cumprir com sua promessa – ou sua “missão”, incansavelmente repetida em princípios editoriais – de tentar esclarecer o que se passa. Dos três grandes jornais do país, a Folha de S.Paulo foi o único a adotar essa postura ao mesmo tempo crítica e prudente no episódio das prisões preventivas de manifestantes na véspera da final da Copa do Mundo, em 12/7. Destacou, por exemplo, que o inquérito de duas mil páginas produzido pela polícia levou apenas duas horas para virar processo. Também abriu espaço para especialistas discutirem a decisão judicial.

Foi a mesma atitude assumida diante da prisão de dois jovens em São Paulo acusados de participarem de depredações típicas dos Black Blocs. “Manifestantes são denunciados antes de perícia em explosivos”, escreve a Folha (27/7). Os dois estão presos desde o mês passado.

Bombas de fragmentação?

O inquérito policial que sustentou a expedição de mandado de prisão para 28 ativistas acusados de planejarem atentados no dia da decisão da Copa estava sob segredo de justiça e durante alguns dias ficou inacessível aos advogados de defesa, mas foi vazado para O Globo. O acesso privilegiado poderia ter permitido uma análise criteriosa do material. O jornal, entretanto, se dedicou a reproduzir o que estava nos autos, chegando a mencionar, na primeira matéria (21/7), a possibilidade de utilização de “bombas de fragmentação” pelos suspeitos.

Bombas de fragmentação. Não é pouca coisa.

Em 2001, quando os EUA atacaram o Afeganistão em represália aos atentados de 11 de setembro, a Folha publicou uma pequena animação para demonstrar como funcionam essas bombas.

Domesticamente, é possível fabricar artefatos que poderiam ser chamados assim. Com grande poder destrutivo, embora sem termo de comparação ao dessas bombas lançadas de avião. Se é disso que o inquérito trata, e se o plano era de fato provocar explosões em determinados pontos previamente estudados para espalhar o pânico – e não só isso, visto que a hipótese de produzir feridos e mortos não seria reduzida –, seria algo a se destacar na capa. Desde que se tivesse como fundamentar a informação, pois do contrário seria uma irresponsabilidade.

A necessidade do contraditório

Os mandados de prisão foram considerados abusivos não apenas por parlamentares de esquerda e representantes de ONGs, mas também por juristas que sempre se destacaram na defesa das liberdades democráticas. Entre outras fragilidades – como a acusação de formação de quadrilha, que serviu de base para a decisão judicial e aparentemente carece de sustentação jurídica mais sólida –, eles contestaram a determinação da detenção prévia pela suposição de que aquelas pessoas poderiam cometer crimes.

Pelo menos para quem vê de fora, a suposição não é infundada: o grupo vinha sendo investigado desde setembro do ano passado e a exaltação incendiária da violência era evidente nas manifestações que, talvez por isso mesmo, reuniam cada vez menos gente. Trechos das escutas telefônicas, realizadas com autorização judicial e divulgadas pelos veículos das Organizações Globo, indicam que algumas daquelas pessoas preparavam ações para, no mínimo, tumultuar a festa de encerramento da Copa, ainda que fosse necessário traduzir a linguagem pobremente cifrada dos diálogos.

Pintando o diabo

Mas exageros, como se sabe, são lamentável praxe em inquéritos. Quantos bandidos pés de chinelo já não foram apontados como perigosos e sanguinários monstros capazes de incendiar a cidade? Seria mesmo crível que um grupo minúsculo de jovens estivesse organizando o embrião de uma célula terrorista no país?

Não que estejamos imunes ao perigo, num caso como no outro. Mas por isso mesmo uma imprensa séria precisaria reforçar seus cuidados na hora de tratar de um caso assim. Exatamente porque precisa oferecer informações confiáveis, ainda mais nessa algaravia amplificada pela internet. E para evitar ironias descabidas, e mesmo irresponsáveis, por parte de quem tende a fazer pouco desse tipo de denúncia, de tão escaldado que está.

A não ser, claro, que essa imprensa seja parte de um processo voltado para intimidar quem, sobretudo se jovem, esteja pensando em ir para a rua num momento normalmente agitado como o da campanha eleitoral que se aproxima.

O timing para o contraditório

Na segunda-feira (28/7), O Globo finalmente abriu espaço ao contraditório, destacando no site um editorial em que argumenta a favor da legalidade das prisões ao lado de um artigo do advogado Marcelo Cerqueira, que denuncia resquícios de inspiração fascista na generalidade da tipificação de “crime de quadrilha” em nosso Código Penal e afirma que as “provas” – assim, entre aspas – contra os acusados foram “sabidamente ‘fabricadas’ pela polícia”.

Se foram fabricadas ou não, ou até que ponto, é algo a se apurar. Por isso mesmo é preciso levantar a dúvida.

A base do artigo é um texto que o advogado havia divulgado no dia 15/7 em seu mural no Facebook. A um jornal que acompanha regularmente as mídias sociais dificilmente escaparia essa manifestação. Mas talvez não houvesse interesse em fomentar qualquer dúvida naquela hora.

A praça sitiada

E estávamos no calor da hora. No dia seguinte à prisão de três ativistas – entre os quais a jovem que, em parte pelo trabalho da própria mídia, foi alçada a essa condição híbrida de líder e musa do radicalismo – a polícia desencadeou uma descomunal operação de cerco à Praça Saens Peña, na Tijuca, para conter os que pretendiam seguir até as imediações do Maracanã para protestar na final da Copa. Quatro jornalistas e vários manifestantes foram agredidos por policiais.

O repórter Jorge Antonio Barros, da coluna de Ancelmo Gois, passava – ou tentava passar – pelo local e não teve dúvidas em classificar o cerco como “estado de sítio” (ver aqui): nem moradores eram autorizados a retornar a suas casas. Citava também a desproporção entre o efetivo policial – cerca de 2 mil homens – e o grupo de 600 manifestantes.

A reportagem do jornal, não é preciso dizer, foi bem diferente desse relato, a começar pela menção a “dezenas” de policiais.

Cherchez la femme

Desde então, não se passou um só dia em que O Globo não tivesse publicado notícias a respeito das prisões, junto com notas e editoriais que aplaudiam a ação da Polícia e da Justiça. Quando começou a divulgar trechos do inquérito, não levantou qualquer suspeita quanto a certas conclusões.

A história das bombas de fragmentação é apenas a que causa mais surpresa. Outras são risíveis: alguém, num telefonema grampeado, diz que a manifestação vai “bombar” e isso significa que vão explodir bombas. Um garoto diz que vai matar um policial e isso não é visto como força de expressão.

Mais recentemente, ficamos sabendo, pela Folha (28/7), que alguém citou Bakunin numa conversa e logo o falecido teórico do anarquismo se tornou mais um potencial suspeito. Como autor intelectual do crime? Até faria algum sentido.

No Rio, o contraponto foi feito pelo jornal O Dia. Junto com a Folha, foi quem mostrou que as denúncias eram baseadas em depoimentos de duas pessoas, uma traída, outra rejeitada num namoro. Tudo fica ainda mais frágil e um tanto patético, embora não nos devesse surpreender: afinal, na mesma semana um deputado federal do Rio, que concorre à reeleição e fazia parte da equipe do atual prefeito, era denunciado por corrupção por sua ex-mulher.

O que seria do jornalismo investigativo se não fossem as frustrações amorosas?

Esclarecendo?

No domingo (27/7), o Fantástico apresentou reportagem aplaudida como “esclarecedora” por muitos jornalistas em seus comentários nas redes sociais. Informa que são oito, e não apenas duas, as principais testemunhas. Reproduz diálogos e algumas discussões entre os acusados, que comprovam a articulação de algum plano pirotécnico, cuja magnitude, entretanto, não é possível dimensionar. No mais, apresenta depoimentos de pessoas que não se identificam.

Pode ser que estejam falando a verdade. Pode ser que não. É assim que se esclarece alguma coisa?

Em momentos de elevada tensão, a prudência é um valor especialmente precioso. Rejeitar as reações raivosas contra a grande imprensa, o discurso automático e genérico da “criminalização dos movimentos sociais” que a tudo absolve e se dissemina tão velozmente na rede, exige um jornalismo que rejeite o maniqueísmo e seja capaz de realizar o que promete. Do contrário, ficamos perdidos numa batalha discursiva que apenas alimenta a histeria de parte a parte.

A quem isso há de interessar, é a eterna pergunta.


segunda-feira, 28 de julho de 2014

Sem olhos em Gaza

Domingo, 27 de julho de 2014


Foi em 1936 que Aldous Huxley, autor do clássico “Admirável mundo novo”, espécie de antiutopia sobre a desumanizada sociedade do futuro, publicou o aclamado “Sem olhos em Gaza”. Retrato sem contemplações da espécie humana, o romance tem por título um verso de John Milton (1608-1674) sobre a cegueira do personagem bíblico Sansão na Gaza dos filisteus. No livro, Huxley ambienta na alta sociedade britânica no início do século XX a cegueira inerente ao homem.

O mundo melhorou pouco de lá para cá. Hoje continua-se a tatear em Gaza, sempre às cegas. Dentro do enclave de 40 quilômetros de extensão e menos de dez quilômetros de largura vivem perto de dois milhões de palestinos ali confinados. Há três semanas eles não conseguem escapar da ratoeira transformada em campo de morte em pleno Ramadã.

Fora do enclave, a guerra entre a liderança palestina e o governo de Israel se trava pelo controle da narrativa do horror. São mútuas as acusações de responsabilidade do outro pelos mais de 800 mortos e 160 mil deslocados que vagam por Gaza desde o início da operação militar lançada por Israel. O ponto de não retorno parece ter sido atingido na quinta-feira, quando uma escola empilhada de famílias e transformada em abrigo de emergência pela ONU foi alvejada pela artilharia das Forças Armadas invasoras.

A escola era uma das 80 mantidas pela agência das Nações Unidas para refugiados palestinos e abrigava moradores de Gaza em fuga dos bombardeios. Com cada sala de aula transformada em dormitório para 80 adultos e crianças já suficientemente castigados e desprovidos, o ataque matou o que lhes restava de esperança. “Hoje é como em 1948”, disse ao jornal “Libération” um ancião que sobreviveu a muito. Ele se referia à chamada nakba (“a catástrofe”), o êxodo das populações palestinas após a criação do Estado de Israel. “Não tenho mais para onde ir.”

Para o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, seguidor da cartilha dos partidos da extrema-direita israelense, a diferença entre Israel e a organização terrorista Hamas, que comanda a vida dos palestinos em Gaza, é elementar: “Nós usamos mísseis para proteger nossos civis, eles usam os civis para proteger os seus mísseis.” Como frase de efeito ela pode ter servido a seu propósito. Mas não traduz a realidade da intrincada história de dois povos condenados a viver lado a lado.

“Um país que exige perfeição moral em sua política externa”, sustentava Henry Kissinger durante seus anos de poder em Washington, “não vai conseguir perfeição nem segurança.” E Stalin dizia que uma morte é uma tragédia enquanto um milhão de mortos vira estatística

Para a aflita intelectualidade judaica da diáspora mundial, contudo, essas receitas de Realpolitik não têm serventia. A inquietude com os desdobramentos do conflito em curso já fez emergir as primeiras vozes dissonantes e reflexivas. Muitas outras virão.

A largada foi dada em Paris esta semana pelo filósofo francês Daniel Schiffer, com sua “Carta aberta de um intelectual judeu a seus pares Alain Finkielkraut, André Glucksmann, Bernard-Henri Lévy”. Nela, o autor de “Critique de la déraison pure”, defensor do direito de defesa do Estado de Israel e órfão de pais mortos em campo de concentração, cobra dos ilustres colegas uma postura coerente com as respectivas biografias.

“O silêncio de vocês nestas tristes circunstâncias é tão ensurdecedor quanto o dos muçulmanos que se recusam a condenar abertamente os crimes cometidos pelos extremistas jihadistas. Um humanista tem por imperativo categórico denunciar o crime de onde ele venha… O sofrimento humano não tem nacionalidade, cultura ou religião: é universal… Deem logo uma prova de honestidade intelectual, de coragem moral e de nobreza d’alma… Israel, esta nação que outrora inventou o conceito de ‘lei’, estaria agora, por algum privilégio absurdo e injusto, acima do direito internacional?”

Por uma irônica coincidência, um dos destinatários do manifesto de Schiffer, o filósofo-celebridade Bernard-Henri Lévy (ou simplesmente, BHL), havia publicado no mesmo dia, nas páginas de Opinião do “New York Times”, um artigo intitulado “O crime de Putin, a covardia da Europa”, no qual chama a Comunidade Europeia de pusilânime por não se manifestar frontalmente contra a atuação da Rússia na Ucrânia do Leste. No artigo Lévy fala em “obrigação moral”.

Engana-se, porém, quem atribui essa primeira diatribe entre intelectuais judeus a um típico cacoete de filósofos da França. A reflexão não é nova. É profunda e honra a História de Israel. Vale, por isso, relembrar uma outra carta aberta escrita um quarto de século atrás por Arthur Hertzberg, um rabino conservador que perdera 37 membros da família nos campos nazistas. Autor de uma obra considerada magistral (“The french enlightment and the jews: the origins of modern semitism”), Hertzberg publicou na “New York review of books” de agosto de 1988 um texto endereçado a Elie Wiesel. Era a época da primeira intifada palestina contra a ocupação de Israel.

No longo artigo, Herztberg cobra do sobrevivente do holocausto, Prêmio Nobel da Paz e autor do seminal “Noite”, uma maior liberdade de crítica à política da força assumida por Israel. “Como sabemos”, escreveu o rabino, “o silêncio é uma forma de atuação.”

Como apoio a seu arrazoado, Herztberg transcreveu trecho de um discurso feito em Jerusalém pelo veterano político israelense Abba Eban (ex-chanceler, ex-ministro da Educação, ex-vice-primeiro-ministro, ex-embaixador na ONU, entre outros).

O trecho soa mais atual do que nunca:

“Alcançamos um patamar que nos permite dizer que Israel nunca foi tão forte em poder e recursos. Jamais Israel teve sua existência menos ameaçada. Nunca Israel esteve mais segura contra um ataque externo e mais vulnerável à insanidade doméstica. Os maiores perigos que ora enfrentamos vêm de nós mesmos. Eles emergem da insana loucura de tentar implantar uma jurisdição permanente de Israel sobre um milhão e meio de árabes da Cisjordânia e Gaza.”


Dorrit Harazim é jornalista


sexta-feira, 25 de julho de 2014

Suassuna morreu?

Por Marcelo Mirisola
Portal Yahoo



Muito comum encontrar colunistas idôneos - que vendem os seus pães para grandes portais, revistonas e jornalões - defendendo a qualidade da informação na empresa onde trabalham, e atacando o lixo que circula pela rede.

Pensei muito nisso ontem (22/7), quando Ariano Suassuma morreu e ressuscitou várias vezes no feicibuque. Pra morrer de verdade precisa de atestado de óbito do UOL?

Outro dia me perguntaram: "Existe realidade demais em sua ficção?" Eu respondi que o problema é saber se existe realidade demais na realidade. 

Realidade tem algum parentesco com credibilidade? 

Uma coisa posso garantir: aqui no meu blogue realidade não faz morada. Sou cronista. Uma espécie de mentiroso profissional. Não sou jornalista - deem uma olhada na minha capivara aí do lado. 
Mas vamos supor que sim. Que a realidade exista. Onde estaria essa realidade? 

No destaque que a clamídia dá para celebridades instantâneas, no horóscopo? Nas entrevistas com os clones do Felipão? Nos ataques histéricos dos leitores pedindo providências e reclamando dos políticos e dos buracos na rua? Na apuração das escolas de samba? Nas propagandas de celulares? Nas receitas da Ana Maria Brega? 

A pergunta que faço ao colunista idôneo é a seguinte: querido vestal, oráculo dos oráculos, afinal, no que difere o lixo publicado no endereço que vos hospeda do lixo que circula pela internet em geral?

Voltando a Suassuna.

O autor de "Uma mulher vestida de sol" só pode morrer no Jornal Nacional? E se ele morrer aqui na minha crônica? E se o Bonner disser que finalmente seres de outro planeta fizeram contato comigo? De uma hora para outra, vocês acreditariam em vida inteligente fora da terra? Acreditariam em mim?
Ou seja. A "informação de qualidade" não está acima dos fatos, que, aqui entre nós, nem sempre representam o que há de melhor em termos de qualidade.

O fato de a Record ter comprado quase toda a grade de programação de seus concorrentes na tevê aberta, fez seus adversários não somente perderem a suposta qualidade, mas a credibilidade. Agora, uma regrinha de três. O fato é que Edir Macedo tem mais dinheiro que seus concorrentes. E se o Edir comprar a Globo? 

Nesse caso, não faria a mínima diferença Bonner anunciar o contato com ETs ou a volta de Jesus Cristo. All right?

Não existe uma disputa entre verdade e mentira. Existe um acordo. Do ponto de vista da pulverização e da manipulação da informação – como especulei acima – se Suassuna morreu no Jornal Nacional ou se o capeta bate ponto no templo de Salomão, isso é irrelevante.

Em outras palavras: não existe conteúdo nem qualidade de informação confiáveis. Nem jornalista imparcial, idôneo e impoluto.

Faz tempo, escrevi um texto cujo título remetia ao nosso querido King Kong: "a informação está voando ao redor, feito os aviõezinhos que bombardeavam o gorila do Empire State Building. E o mais interessante: esses aviões-mosquitos não defendem nenhum patrão. Simplesmente atordoam o gigante, e o confundem com sua infâmia e suposta 'falta de qualidade''.

De modo que não é absurdo dizer que não somente o quarto poder está em vias de extinção, mas todos os outros três já fazem água. 

As representatividades são uma lenda (não adianta fazer como Genghis Khan e prender, isolar ou matar meia dúzia de mensageiros explosivos). Os gigantes - eu dizia no texto supracitado -: "perderam o lugar no mundo, e só lhes resta o grito agônico do alto da torre, um urro ignóbil pela liberdade de ser redundante, ou seja, de gritar (ou informar, tanto faz...) que eles têm qualidade e que ... estão morrendo".

E Suassuna? Morreu?


terça-feira, 22 de julho de 2014

Pacifismo ou é integral ou não é pacifismo



A Grande Guerra (1914-1918) tem diversos nomes, sobrenomes, alcunhas e pseudônimos. Um deles, o mais veraz – a Guerra Inacabada – é também o mais atual: os três grandes conflitos bélicos que ocupam manchetes e “escaladas” no horário nobre são herdeiros diretos de uma guerra contínua e de uma paz, fugaz, periódica, raramente levada a sério.

Na Ucrânia, Gaza e Síria combate-se com armas ultramodernas em guerras com mais de um século de existência. O sangue que jorra é novo, as pendências são velhas, encarquilhadas. A Rússia nasceu na Ucrânia, que na realidade só existiu como Estado soberano num remoto passado.

Antes de 1914, parte Ucrânia era do Império Austro-Húngaro, a outra do Império Russo. De um lado um kaiser pretensamente esclarecido, do outro um czar absolutista e implacável. No meio, um vácuo político incapaz de absorver etnias e povos diametralmente opostos. Parte do vácuo foi entregue à recém-criada Polônia, filha do armistício de 1918 e de um confronto militar com um novo império, a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, que sobreviveu até ontem (1991).

Antes de 1914, todo o Oriente Médio e o Norte da África pertenciam ao Império Otomano, igualmente enterrado pelo armistício de 1918-1919. Caiu de podre, substituído por mais de uma dúzia de novos estados, reinos, emirados e califados teocráticos e alguns protetorados. Um dos sobreviventes, a Turquia, parcialmente europeia, conseguiu sobreviver ao tornar-se por via militar uma república soberana e secular.

Os cem anos do início da Grande Guerra começaram a ser lembrados desde 28 de junho, data em que um jovem terrorista sérvio, Gavrilo Princip, assassinou em Serajevo o casal de arquiduques, herdeiros do Império Austro Húngaro. Em 1º de agosto de 1914 começaram as hostilidades quando a Alemanha invadiu a neutra Bélgica. Cerca de 65 milhões de homens em armas durante mais de quatro anos. Cerca de 20 milhões ficaram nos campos de batalha.

Chance à paz

A mídia associada às editoras de livros encarregaram-se de oferecer aos netos e bisnetos das vítimas e testemunhas da catástrofe as explicações básicas para entendê-la.

Complicado: os tempos são outros, os mapas mudaram, as ideologias reescreveram relatos e biografias. A convergência da nostalgia com o entretenimento dissolveu os horrores. O magnífico seriado inglês Dawntown Abbey demonstra como a História cruel converte-se magicamente em histórias de vida, tristes, amenas, amargas ou edificantes.

O que falta ao salutar boom sobre a Grande Guerra é ressaltar o papel dos diferentes movimentos pacifistas. Sobretudo dos jornalistas pacifistas. Em 1911, o Nobel da Paz foi entregue a Alfred Hermann Fried, fundador do primeiro periódico pacifista, Die Friedenswarte (A Observação da Paz). Em 28 de julho de 1914, em Paris, um nacionalista franco-alsaciano assassinou o bravo tribuno e jornalista, pacifista e socialista Jean Jaurès, fundador do diário L’Humanité (depois órgão oficial do Partido Comunista Francês).

O Nobel da Paz de 1933 foi concedido ao jornalista inglês Norman Angell, que ainda antes do primeiro tiro da Grande Guerra empenhava-se em convencer a humanidade da eficácia da paz como um meio racional de resolver contenciosos entre nações. Seu best-seller A grande ilusão continua nas livrarias, sempre lúcido, nada místico.

O escritor Romain Rolland, Nobel de Literatura em 1915, continuou escrevendo seus panfletos antiguerreiros numa França delirante e patrioteira, até que foi obrigado a recolher-se na Suíça.

O que diferenciava esses pacifistas da maioria dos militantes contemporâneos era a integralidade das suas convicções. Eram contra a beligerância, contra todos os beligerantes, inclusive seus concidadãos.

O pacifismo meia-bomba onde os adversários são demonizados e os correligionários exaltados apenas camufla velhas intolerâncias, pinta de branco rubros rancores. Exclui em vez de incluir e agregar.

Nesta era da informação (ou da desinformação, dá no mesmo), o pacifismo tem chance de tornar-se efetivo. Na base do 50%, é inútil.