sábado, 26 de julho de 2008

Reconhecer para controlar e combater

Arthur Dapieve
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Um dos meus bisavôs paternos era de Udine. Tão a nordeste da Itália que, quando ele nasceu, a cidade fazia parte do Império Austro-Húngaro. Desencontramo-nos. Nasci pouco depois de sua morte. Desde a mais remota infância, porém, escutei variações em torno do adágio “Roma não fica na Itália, fica no norte da África”. Suspeito que, na sua boca, a frase devia desprezar mais Roma que a África. Afinal, quando sua mulher suíça morreu, ele se casou novamente com uma mulata brasileira. A “Vó Nega” nos fazia biscoitos deliciosos enquanto brincávamos com os gatos hospedados num forno desativado.
Ciente do bairrismo italiano, diverti-me quando li “1933 foi um ano ruim”, de John Fante, um dos meus heróis literários. Num certo trecho, o personagem autobiográfico de Fante — ali chamado Dominic Molise, não Arturo Bandini, como em “Pergunte ao pó” — fala do preconceito que a sua avó paterna, nascida em Torricella Peligna, carregou da Itália para os EUA contra a sua mãe, americana, mas filha de imigrantes de Potenza.
“Na opinião de vovó Bettina, os potenzeses, depois dos americanos, eram o povo mais ridículo do mundo”, lê-se na tradução de Lúcia Brito para a L&PM. “Não que vovó alguma vez houvesse ido a Potenza e visto com seus próprios olhos, mas toda a vida ela ouviu histórias absurdas sobre os potenzeses. Uma vez que os abruzzeses precisavam de um lugar que considerassem abaixo do seu, decidiram-se por Potenza, do mesmo modo que os calabreses desprezavam os sicilianos, os napolitanos desdenhavam de tudo ao sul de Nápoles, os romanos empinavam o nariz para os napolitanos, e os florentinos menosprezavam os romanos. Para os abruzzeses, o povo de Potenza era uma espécie de piada nacional, como se vivessem em barracas e fossem todos pigmeus.”
É cômico, sim, eco das cidades-estado em conflito permanente na Itália medieval, mas ao mesmo tempo é trágico e atual. Não me surpreende, por isso, que o governo populista de direita de Silvio Berlusconi tenha ordenado o início de um censo da população cigana na Itália, inclusive as crianças. Pelo seu nomadismo, os ciganos são um Outro com o qual qualquer italiano de cabeça paroquial pode se antagonizar.
Os alemães do tempo de Hitler começaram assim e acabaram mandando também os ciganos para as câmaras de gás. Logo, há uma tragédia em andamento no, digamos, carrinho de bebê da civilização ocidental (pois o berço é a Grécia). Aliás, nós costumamos usar “tragédia” como mero sinônimo de “desgraça”. No sentido original grego, entretanto, uma tragédia implica ainda a plena consciência da infelicidade por vir. É o caso.
Édipo arranca os olhos. Medéia mata e despedaça o irmão. Uma tragédia precisa de uma imagem forte. A dos ciganos na Itália de hoje já tem a sua. No sábado passado, duas meninas ciganas morreram afogadas em Torregaveta, perto de Nápoles. Tinham ido vender bijuterias para os banhistas e, por causa do calor, arriscaram-se no mar agitado. Cristina, de 16 anos, e Violetta, de 14, foram retiradas d’água sem vida. Seus corpos foram cobertos por toalhas. Até aí esta é a narrativa de uma desgraça corriqueira nas praias de todo o planeta.
A tragédia sobreveio quando os corpos ficaram por horas — indignidade comum no Brasil, independentemente da origem das pessoas — cercados por olhares indiferentes. A foto dos banhistas ao sol, a poucos metros dos pés descobertos das meninas mortas, calou na consciência culpada da Itália, que se perguntou: teria sido assim se não fossem ciganas? Primeiro foram incendiados acampamentos, depois veio o recenseamento, e agora isso?
O episódio decerto não torna os italianos “o povo mais ridículo (ou odioso) do mundo”. Apenas para continuar na Europa, a autônoma Catalunha, formalmente parte da Espanha, criou quatro escolas especiais onde serão segregados os imigrantes africanos entre 8 e 18 anos e as batizou, com evidente cinismo, de “espaços de boas-vindas educativas”. São flashes de todo um continente empenhado em manter os pobres alheios do lado de fora.
Como qualquer animal, o homem percebe como potencialmente perigosos os grupos diferentes do seu, seja do ponto de vista do fenótipo racial, da etnia, da religião ou da classe social, ainda mais em tempo de pouca-farinha-meu-pirão-primeiro. Veja-se a quantidade de genocídios prescritos no Antigo Testamento em prol da sobrevivência dos antigos hebreus. Ou a fúria entre os povos que outrora pareciam irmanados na extinta Iugoslávia comunista.
O que diferencia o homem dos outros animais, portanto, não é a supressão desse instinto e sim a capacidade voluntária ou de exacerbá-lo, transformando um dado biológico em arma política, ou de atenuá-lo, graças ao auto-exame constante da consciência e, se necessário, da implementação de leis de direitos civis, programas de integração e cotas.
É uma visão bastante pessimista da Humanidade, eu sei, essa da invencibilidade do preconceito. Sobretudo porque até 11 de setembro de 2001 vivíamos a utopia da vida em harmonia global. Por outro lado, parece-me mais prático admitir que esse mal existe e está sempre à espreita, em variados graus e disfarces, inclusive nas sociedades que se fantasiam de “democracia racial”, como o Brasil. É melhor do que julgar-se acima dele, a salvo em algum paraíso terreal, e desse modo ir eternizando os mecanismos de exclusão.
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O Globo - Segundo Caderno (Pág.06 - 25/07/2008)

sexta-feira, 25 de julho de 2008

Antes de começar:
Não concordo com metade do texto – esta é a minha primeira apresentação. Acredito ser de uma importância sem tamanho à exposição de uma África singular para, mais tarde, adentrarmos nos “conceitos reais” do que são e para que servem as múltiplas áfricas dentro de nós e enraizadas no mundo.
Contudo, concordo com a linha seguida que me diz: “Descobri que não sou um negro brasileiro, mas um brasileiro negro”. Esta é a chave da questão. Aliás, enquanto negro, que sou, fico incomodado com a segregação involuntária ao ouvir a orgulhosa afirmação: “sou afro-descendente”. Pô, mas, de acordo com o pouco que estudei em História e Geografia, não somos todos? Não está lá nossa origem (branco, negro, vermelho, amarelo)?
Posto o texto do Doutor Magnoli porque, acima de tudo, acredito em reflexões e debruçamentos e, apesar de não ter tanta certeza, acho que é pelo diálogo e pela busca que chegaremos a todos os lugares.
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Visita à 'terra dos negros'
Demétrio Magnoli
(O Globo - Opinião - Pág. 7 - 24/07/2008)
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Milton Gonçalves encarna um personagem protagonista na novela do horário nobre da Rede Globo. É uma boa notícia para todos que apreciam a arte do grande ator. Devia ser motivo de celebração pelos grupos do movimento negro que apontam a persistência de uma regra racial oculta na seleção de elencos no Brasil. Mas eles não gostaram, pois o personagem de Milton Gonçalves é um político corrupto. O deputado estadual José Candido (PT-SP) acusou o ator de prestar um “desserviço” ao movimento negro, criando “uma má impressão do negro à população”. Se entendi direito, o corpo negro é imune à corrupção.
Numa entrevista a “O Estado de S. Paulo”, o ator não se limitou a responder a Candido, mas ofereceu uma aula singela. Ele disse que “algumas coisas mudaram na minha cabeça” depois de visitar a África: “Descobri que não sou um negro brasileiro, mas um brasileiro negro. Descobri que não sou africano, sou brasileiro.” São duas descobertas incompreensíveis para os que nos governam.
Uma lei de 2003 tornou obrigatório o ensino de “história e cultura afro-brasileira e africana” nas escolas brasileiras. Num parecer destinado a esclarecer o espírito da lei, o Conselho Nacional de Educação afirma que o “fortalecimento de identidades e de direitos deve conduzir para o esclarecimento a respeito de equívocos quanto a uma identidade humana universal”. Segundo o Estado brasileiro, a Humanidade se divide em raças e as crianças devem aprender que uma ponte racial liga os negros do Brasil a uma pátria ancestral africana.
“Não sou um negro brasileiro, mas um brasileiro negro.” O ator está dizendo que a sua identidade principal emana da esfera política e tem como referência o conceito de cidadania, não o de raça. Os brasileiros, de todos os tons de pele, formam uma nação única, alicerçada sobre o contrato constitucional da igualdade perante a lei. A identidade brasileira constitui nossa identidade pública. No espaço privado, segundo opções pessoais, podemos nos definir como negros, brancos, mestiços, gays ou corintianos.
“Não sou africano, sou brasileiro.” A segunda descoberta esclarece a primeira — e esclarece muito mais. A África está no Brasil, de mil maneiras, e há inúmeros bons motivos para se falar mais da África na escola. O melhor foi explicado pela antropóloga Yvonne Maggie, no seu “O medo do feitiço: relações entre magia e poder no Brasil” (RJ, Arquivo Nacional, 1992). Analisando a perseguição judicial contra as religiões mediúnicas, Maggie comprova a hipótese de que a crença na magia afeta pessoas de todas as cores e classes sociais no Brasil. Isso forma uma ponte essencial entre nós e a África. Mas essa ponte também conecta todos os brasileiros e faz de nossa mestiçagem algo muito mais profundo que o intercâmbio de genes. Mesmo assim, não somos africanos.
O Brasil é o Novo Mundo; a África é o Velho Mundo. No Brasil, o que vale não é a ancestralidade, mas a posição e a renda. Na esperança de inventar uma Europa tropical, o Império do Brasil distribuiu títulos nobiliárquicos, mas tais signos da diferença circulavam como mercadorias especiais no bazar dos privilégios simbólicos. Na África, como em tantos lugares da Europa, a linhagem de sangue define posições e regula relações. Atrás de uma fachada política de repúblicas, as sociedades africanas continuam a girar à volta de constelações de reis tradicionais e líderes ancestrais. Sob muitos sentidos, não é o brasileiro, mas o europeu que está mais em casa na África.
“Não sou africano.” Ninguém é africano. África, no singular, é uma declaração de ignorância. Os europeus inventaram uma África singular para designar a “terra dos selvagens” e, mais tarde, a “terra dos negros”. Os intelectuais negros dos EUA e do Caribe que formularam a doutrina do pan-africanismo beberam no conceito racial europeu para desenhar no céu dos seus sonhos a África singular. No início do século XXI, o Brasil oficial ainda não aprendeu que existem Áfricas incontáveis e pretende usar o nome do continente como metáfora para ensinar uma fábula racial às crianças.
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DEMÉTRIO MAGNOLI é sociólogo e doutor em geografia humana pela USP.
E-mail: demetrio.magnoli@terra.com.br.

domingo, 20 de julho de 2008

Habeas corpus para Jefferson

Zuenir Ventura
(O Globo - Opinião - pág.07 - 19/07/2008)
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Aproveitando a onda do liberou geral, anuncio que estou em campanha para obter um habeas corpus. Não para mim. A seguir, vocês verão para quem, conhecerão minhas alegações e espero que me apóiem.
Se em menos de 48 horas Daniel Dantas ganhou dois. Se Naji Nahas, Celso Pitta e todo o grupo também conseguiram os seus rapidamente. Se Salvatore Cacciola, velho freguês, vai obter outro mais cedo ou mais tarde, por que Jefferson Hermínio Coelho não merece um, após 20 dias de prisão? Para quem não leu a notícia, ele cometeu um crime com requintes de azar e confusão. Imaginem que com tanta gente para assaltar num domingo de junho na orla de Fortaleza, foi escolher logo quem? Logo o presidente do Supremo Tribunal Federal! Assaltar, não, roubar. Que roubar? Nem isso. Tentou e fracassou. Tão desastrado é que, ao arrancar o cordão de ouro do pescoço do ministro Gilmar Mendes, foi agarrado por dois PMs e dois seguranças que escoltavam o juiz.
Jefferson tem 18 anos e é um amador, aprendiz de assaltante. Pelo fiasco, encontra-se numa cela com mais quatro presos, e ainda não pôde receber qualquer visita. Nem do pai, que está indignado. Queria para o filho o tratamento que a vítima dele, como presidente do STF, concedeu ao dono do Opportunity, mandando libertá-lo duas vezes, apesar das acusações de formação de quadrilha, corrupção ativa, evasão de divisas e gestão fraudulenta de instituição financeira. A madrasta do rapaz está igualmente revoltada. “Não sei se foi uma aventura ou brincadeira de mau gosto. Mas ele é réu primário e, por lei, tem direito a responder em liberdade”, alega Antônia Raimunda. Mas, também, por que a família não arranja um bom advogado? Por menos de R$1 milhão, conseguiria um no Rio ou em São Paulo.
Se o seu caso fosse parar no STF, Jefferson encontraria certamente a boa vontade de vários ministros, inclusive da vítima, que já tinha recebido críticas pela suposta liberalidade com que mandou soltar presos da Operação Navalha na Carne em 2007. A repórter Carolina Brígido revelou numa matéria como a Casa é pródiga na concessão desse instrumento para réus ainda não condenados em última instância. Todos os dias, segundo ela, uma “enxurrada de pedidos” chega lá. Também no ano passado, o ministro Marco Aurélio Mello mandou libertar 20 presos da Operação Hurricane, entre os quais o bicheiro Turcão. Isso sem falar no famoso, controvertido habeas corpus de 2000, graças ao qual Cacciola fugiu para a Itália, onde viveu livre e solto por oito anos, até dar uma chegada a Mônaco com a namorada, achando com certeza que estava no Brasil. Foi preso. O pedido de extradição acabou sendo aceito, e ele voltou declarando: “Estou tranqüilo, confio na Justiça brasileira.” Pena que Jefferson não possa dizer o mesmo.

quarta-feira, 16 de julho de 2008

OS OLHOS DA RUA

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Gerimaldo Nunes[ in Correio das Artes. João Pessoa, 1996 ]

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meu pai espiava a rua

de uma forma diferente

colhia cada pedra

cada paralepípedo

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olhos abertos

fixos.

desvendava assim mundos

que muitas vezes nem existia

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roubei do meu pai seus olhos

e seu olhar.

devoro a rua

com a mesma fome,

o mesmo medo.

e crio monstros invisíveis

pra me distrair.

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* Poema encontrado aqui, ó:

Balaio Porreta 1986

domingo, 13 de julho de 2008

Um certo gosto de passado,
do que não foi
não poderia ser
não se fez
não cumprimos.
Ficamos.
Sem o adeus que fere
e encerra.
Sem talvez
ou rituais ordinários.
Sem perdas.
Nem partidas.
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Acantha Sirte
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Pois é, a senhorita Acantha voltou ao mundo do Blogue e, espero, para nunca mais sair. É muito, muito bom jogar os cotovelos na mesa do computador e devorar suas sátiras, suas retóricas, seus textos inteligentíssimos e sua poesia... Ah, a sua poesia!
http://www.banalidades-raras.blogspot.com/


sábado, 12 de julho de 2008

STF, PF, PQP!

Peço licença ao Chico Buarque e desligo o aparelho de som para escutar a decisão (por duas vezes!) do Presidente do (nosso!) STF, juiz Gilmar Mendes. Lembro algo sobre o STF: Não foi esta mesma instituição, na figura do seu ministro, Marco Aurélio de Mello, que mandou soltar o ilustríssimo meliante Salvatore Cacciola e os 15 (eu disse quinze!) bicheiros e bingueiros presos na Operação Furacão da Polícia Federal?
Muitos dizem que as operações da nossa PF andam sedentas por holofotes, o que concordo plenamente, mas o que é mais difícil de esquecer: o vazamento para a mídia da prisão de algum “Bem-feitor-do-próprio-bolso” ou as decisões esquisitas do nosso Supremo? Quer saber? A PF está de parabéns! Num país onde polícias civil e militar estão desacreditadas, corrompidas e sucateadas, pegar o retrospecto investigativo e incisivo da PF e comparar com o que anda acontecendo em Terra Brasilis é quase impossível não saltar às vistas o seu bom desempenho. Muitos adolescentes, alunos meus, querem ser do BOPE por causa de um filminho que mostra a inversão da polícia; contudo, se a PF continuar a fazer o seu trabalho, dentro de muito pouco tempo verei alunos desejando ingressar na polícia (desta vez, pelos motivos certos) e praticar o bem.
Sei que todos estarão libertos ao final destas linhas, mas só em ver as algemas pulsando na pele dos donos do poder, sinto-me incluído novamente, pronto para começar a me iludir (outra vez!) com um mundo melhor.
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Aliás, não poderia sair do texto sem antes recomendar uma visita, sem compromisso, ao blogue do Luis Nassif sobre o escândalo Veja e o caso Daniel Dantas. Vale a conferida!
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Aliás (2), não poderia sair do blogue sem deixar este texto-pérola escrito por Bob Fernandes:
Bob Fernandes, Os intestinos do Brasil, copyright Terra Magazine, 9/07/08
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A Polícia Federal trabalhou duramente para que Daniel Dantas fosse preso. A Polícia Federal não queria, de forma alguma, que Daniel Dantas fosse preso. A Polícia Federal fez tudo para que Daniel Dantas fosse preso. A Polícia Federal fez tudo para que Daniel Dantas não fosse preso. A Polícia Federal trabalhou contra a Polícia Federal.
Esse é mais um capítulo do mergulho nos intestinos do Brasil. Estão presos o banqueiro do Opportunity, o megaespeculador Naji Nahas, o ex-prefeito Celso Pitta e outros 17 dos 21 que tiveram a prisão decretada. É quarta-feira, 9 de julho.
Nas telas, ondas, bits e páginas, a futebolização de sempre: aplausos entusiasmados, críticas ferozes à ação da polícia. O que ainda não chegou à tona é a verdadeira história dessa gigantesca ação policial, da encarniçada batalha que se travou nos setores de Inteligência e da Polícia.
O que se narra aqui são cenas, é o contorno dessa batalha, mas antes é preciso lembrar que este é apenas mais um capítulo.
Crucial, decisivo para que se entenda o todo, o que se movia, se move - e se moverá -, mas apenas mais um capítulo no enredo da maior disputa da história do capitalismo brasileiro, disputa essa que carrega em si o esteio, a sustentação do poder. Do Grande Poder. O delegado Protógenes Queiroz comandou as investigações no último ano. Antes dele, ao tentar seguir a pista da organização comandada por Dantas, outros delegados fraquejaram. Ou desistiram, ou...
Protógenes foi conduzido ao comando da investigação sigilosa pelo então diretor geral da Polícia Federal, Paulo Lacerda, hoje chefe da Agência Brasileira de Inteligência, Abin. Paulo Lacerda queria e autorizou a operação até deixar a direção da PF.
Um dia, convidado pelo presidente Lula, Lacerda foi para a Abin. Em seu lugar assumiu Luiz Fernando Corrêa, que chefiava a Força Nacional de Segurança Pública. Luiz assumiu com fama de amigo de José Dirceu.
Se era ou se não era, se suas relações vinham apenas da proximidade no trabalho de segurança da PF ao candidato Lula em eleição anterior, é uma outra questão, mas o fato é que Luiz Fernando chegou ao cargo com essa fama: amigo de José Dirceu.
Logo ao assumir, o diretor da PF quis mais informações sobre que investigação seria aquela relativa aos negócios e métodos de Daniel Dantas. Normal. Parte das suas atribuições de comando.
O delegado Protógenes, por seu lado, ofereceu explicações genéricas, mas guardou o que era secreto, segredo de justiça.
Normal. Manhas de um tira brilhante, esperto, do policial que prendeu Paulo Maluf, o contrabandista Law Kin Chong, que pôs na marca do pênalti o Corinthians da MSI, Kia Joorabichian e Dualib, que investiga para a FIFA as lavanderias do futebol mundo afora. Normal, em meio aos rumores sobre vazamentos na investigação e, pior, propinas. Subornos em favor de Dantas.
Na diretoria de Inteligência, um aliado do diretor geral na busca de informações amplas sobre o núcleo das investigações: o delegado Daniel Lorenz.
Protógenes Queiróz é duro na queda. Primeiros embates, e a operação Satiagraha perde estrutura. O comando esvazia parte da logística; retira agentes e peritos, encolhe a sala, asfixia as investigações....o corriqueiro nos jogos de guerra.
O jogo é maior, muito maior. As pedras se movem. Ao diretor da Polícia Federal chega o recado. Suave, mas direto: as investigações devem prosseguir.
Fim do ano. Mídia afora, o festival de plantações, versões. A batalha, que é política, comercial, policial, segue seu leito também nas telas, ondas, bits e páginas. Véspera do Natal. Estranhíssima entrevista do diretor geral.
Luiz Fernando Corrêa escolhe o encarte semanal "Brasília" do jornal mineiro Hoje em Dia para mandar um recado em forma de entrevista. Manchete:
-Cada geração tem um papel a cumprir. Cumpriu, sai fora!
Até o vidro fumê do edifício sede da PF em Brasília captou a mensagem e os destinatários: Paulo Lacerda e antigos delegados que comandaram a Polícia durante 4 anos e 8 meses do governo Lula. Para não haver dúvidas, a capa do tablóide berrou:
-PF dividida.
Véspera do Natal, peru, nozes, vinhos, poucos civis devem ter lido. Mas a polícia inteira leu. Comentou, discutiu. E mesmo o mais desatento agente sacou que a barca do delegado Protógenes Queiroz, fosse qual fosse, não era uma boa aos olhos da direção.
Parênteses. Daniel Dantas e os seus comemoravam, vibravam a cada boa notícia. Sim, o que não faltou nesse enredo foi notícia. Capas e capas.
O carnaval se foi. E um fato: a repórter quer falar com o delegado Queiroz. Quer informações sobre uma investigação que envolveria Daniel Dantas e o Opportunity. Apreensão, no início de abril - e isso são fatos. Objetivos. Conhecidos desde então: a repórter vai publicar o que tem se não for recebida.
A situação se agrava. Por ordem do comando, o delegado Protógenes Queiroz perde quase toda a logística. Fato registrado, inclusive, em imagens: a sala sendo esvaziada, a tralha tecnológica removida.
Queiroz começa a fingir que a operação faz água. Cede, aceita conversar com a repórter; Andréa Michael, da Folha de S.Paulo. Mas faz uma exigência aos superiores: quer a presença do diretor geral, Luiz Fernando Corrêa, e de Lorenz, o diretor de Inteligência. Corrêa não vai, manda alguém da comunicação social. Lorenz, presente. Na conversa, o delegado Queiroz contorna, tergiversa, despista, e guarda tudo o que disse e o que não disse.
Sábado, 26 de Abril. Anunciado o acordo das teles, vem aí a BrOi. No caderno "Dinheiro", da Folha, em quase meia página a repórter Andréa Michael relata os contornos de uma operação a caminho, destinada a prender Daniel Dantas.
Domingo, 27 de Abril. A operação está morta. Protógenes Queiroz faz dois movimentos. Primeiro, na véspera, a ligação para Lorenz, que está no Chile. Cobra a conta da conversa com a repórter, quando apenas despistou. A conversa, de parte a parte, não é boa. Segundo movimento: Queiroz, para efeito externo, dá a operação como morta. Para efeito interno, os fatos incendeiam agentes, peritos e delegados envolvidos numa operação cada vez mais secreta.
Segue a semana. Queiroz é comunicado. Não há, não haverá mais logística alguma. Caso encerrado. Caso que o diretor geral e o diretor de Inteligência seguem a desconhecer em seu teor. O delegado está solto no espaço.
Uma outra rede conecta-se, subterrânea, solidária. O outro lado da polícia trabalha, secretamente, pela Satiagraha, a "firmeza na verdade" de Gandhi.
Notas em colunas, sites. Chutes, bravatas, cascatas, desinformação. A operação é adiada. Uma, duas, três vezes. O delegado Protógenes Queiroz é monitorado, vigiado. Pela Polícia Federal. E sua equipe contra-ataca: vigia, monitora, flagra e registra, os movimentos dos monitoradores da própria PF.
Daniel Dantas e os seus estão tensos. Em dúvida: acabou, ou não acabou? Na dúvida, encaminham ao Supremo Tribunal Federal um pedido de habeas corpus preventivo, para Dantas e a irmã, Verônica. Daniel Dantas morde a isca. Humberto Braz, ex-presidente da Brasil Telecom e o amigo Hugo Chicaroni são os intermediários. A oferta é feita ao delegado Vitor Hugo Rodrigues Alves.
Na churrascaria El Tranvia, bairro de Santa Cecília, São Paulo, o ensaio para o acordo final: US$ 1 milhão.
Como sinal, duas parcelas, uma de 50 e outra de 80, e pagamento em outras duas de US$ 500 mil. Encontros e acordos fechados em 18 e 26 de junho. Para livrar a cara dos Dantas. Há algo no ar. Frases soltas.
Gilmar Mendes é o presidente do STF. No meio da semana, pós-São João, desponta nas telas, um tempão nos telejornais, nas manchetes do dia seguinte. Refere-se a informações vazadas por policiais, uma "coisa de gângsters" e ao "terrorismo lamentável".
A fala ecoa. Cada um entende como quer. Críticas gerais às interceptações telefônicas (mesmo às autorizadas judicialmente).
Julho chegou. Fim de semana. Notas, boatos... Daniel Dantas está em Nova Iorque... Daniel Dantas aguarda o habeas corpus para voltar ao Brasil... Sete de Julho. O delegado geral, Luiz Fernando Corrêa, que até a véspera nada sabia sobre a verdadeira extensão de Satiagraha, quer agora saber de tudo. De tudo, não saberá. Extrema tensão. Como há um mês, no Rio de Janeiro.
Agentes da equipe de Queiroz seguiam gente dos Dantas, pelas ruas do Rio. A polícia foi chamada, quase um confronto até o esclarecimento "somos da PF" e o despiste numa operação banal qualquer. Mas a queixa subiu.
Chegou ao diretor geral da PF, a Heráclito Fortes (DEM-PI) no senado e ao advogado geral da União, José Antonio Toffoli, adentrou o Supremo Tribunal.
Seis da manhã, 8 de julho. Avenida Viera Souto, Ipanema, Rio de Janeiro. Daniel Dantas está preso.
Furacão na mídia, por todo o dia. À noite nos telejornais e no dia seguinte, este 9 de julho, a repercussão.
Gilmar Mendes, o presidente do STF, ataca a "espetacularização das prisões, incompatível com o Estado de Direito", critica duramente o pedido de prisão, negado, contra a repórter da Folha de S. Paulo:
-...isso faz inveja ao regime soviético...
Frases soltas no ar.
Miriam Leitão, a comentarista econômica, também está no ar. Na rádio CBN, Miriam conversa com Carlos Alberto Sardenberg.
Meio dia e quarenta. Miriam diz não ter entendido direito porque Daniel Dantas foi preso. Afinal, constata, as acusações são inconsistentes, "coisas do passado", e é preciso que a Polícia Federal explique melhor por que fez essa operação "com tamanho estardalhaço..."
Miriam se vai. Sardenberg chama os comerciais, não percebe que o microfone está aberto, e deixa escapar:
-...ela tava estranha, não?
Frases soltas no ar.
Daniel Dantas está preso. Esse, o policial, é mais um capítulo da operação que chegou aos intestinos do Brasil.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Justiça (ainda) é um exercício "Res-Publicano"


O pirata, o juiz e as melancias
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Marcelo Carotta tem mais de 40 anos e, como jornalista, trabalhou em Minas toda a sua vida. Como jamais foi colunista amestrado, desses que quando estão muito irritados com alguma patifaria escrevem "homessa, que maçada", jamais conseguiu ficar muito tempo nos jornais, revistas e rádios em que trabalhou. Abriu um botequim onde bebia mais que os clientes que, eles mesmos, punham o dinheiro da conta na caixa registradora e faziam o troco. Não demorou a falir. Decidiu fazer um sítio na net, um dos mais lidos – Pirata Zine – para ver no que dava enquanto ganhava uma graninha aqui e outra ali. Seu sonho, como os de Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Zuenir Ventura, Ziraldo, Drummond, sempre fora vir para o Rio onde teria, pensava ele, mais oportunidades. Ficou em Minas cuidando do pai com câncer há anos e quando o velho morreu botou o pé na estrada. Convidei-o para ser o sub-editor do meu sítio eletrônico – O G/lobo e lá está ele assistindo o editor Jean Scharlau. As coisas andam que é uma beleza. Sai até artigo me esculhambando.
No Rio, tentou em vão todas as redações de jornais Algumas não o aceitaram por escrever bem, o que é verdade, outras por ser muito velho, outras porque só podiam pagar salário de estagiário ou não pagar nada. Houve até uma que o botou para correr por ter sido recomendado por mim. Verdade é que ele embora tenha uma excelente base cultural e ser um grande repórter, continua no Rio. Mas seus gritos não atingem nem os cachorros que riem das suas tentativas de acabar com eles.
Por que conto esta história pela qual todos passamos, até mesmo o velho Machado, homenageado recentemente com uma bela biografia de Daniel Piza e pela Flip, para a qual este ano, tenho certeza, me convidarão? Conto porque quero e, como não sou açougueiro, não necessito de ganchos embora esta crônica tenha muitos, como todos perceberão.
Pessoal que me acompanha sabe que não faço bom juízo da nossa Justiça decretada por ricos para ricos. Contei casos de nossos irmãos brasileirinhos que estão em cana, inocentes, sem julgamento porque às vezes o juiz ficou doente e outras decidiu ir para o motel com a namorada. Chegou então um e-mail do Carotta contando-me o caso de um juiz decente que faço questão de publicar, pois ele deveria ser o nosso ministro da Justiça. Duraria algumas horas, creio.
A Escola Nacional de Magistratura incluiu, em seu banco de sentenças, o despacho incomum do Juiz Rafael Gonçalves de Paula, da 3.ª Vara Criminal da Comarca de Palmas, em Tocantins. A entidade considerou de bom senso a decisão de seu associado, mandando soltar Saul Rodrigues Rocha e Hagamenon Rodrigues Rocha. É o auto de prisão em flagrante de Saul e Hagamenon, detidos pelo roubo de duas (2) melancias. O promotor de Justiça opinou pela manutenção dos indiciados na prisão.
Agora vejamos a obra-prima que é a decisão do Rafael:
"Para conceder a liberdade aos indiciados, eu poderia invocar inúmeros fundamentos: os ensinamentos de Jesus Cristo, Buda e Gandhi, o Direito Natural, o princípio da insignificância ou bagatela, o princípio da intervenção mínima, os princípios do chamado Direito Alternativo, o furto famélico, a injustiça da prisão de um lavrador e de um auxiliar de serviços gerais em contraposição à liberdade dos engravatados e dos políticos do mensalão deste governo, que sonegam milhões dos cofres públicos, o risco de se colocar os indiciados na Universidade do Crime (o sistema penitenciário nacional)...
Poderia sustentar que duas melancias não enriquecem nem empobrecem ninguém.
Poderia aproveitar para fazer um discurso contra a situação econômica brasileira, que mantém 95% da população sobrevivendo com o mínimo necessário, apesar da promessa deste Presidente que muito fala, nada sabe e pouco faz.
Poderia brandir minha ira contra os neoliberais, o consenso de Washington, a cartilha demagógica da esquerda, a utopia do socialismo, a colonização européia...
Poderia dizer que George Bush joga bilhões de dólares em bombas na cabeça dos iraquianos, enquanto bilhões de seres humanos passam fome pela Terra...
E aí? Cadê a Justiça nesse mundo?
Poderia mesmo admitir minha mediocridade por não saber argumentar diante de tamanha obviedade.
Tantas são as possibilidades que ousarei agir em total desprezo às normas técnicas. Não vou apontar nenhum desses fundamentos como razão de decidir...
SIMPLESMENTE MANDAREI SOLTAR OS INDICIADOS... QUEM QUISER QUE ESCOLHA O MOTIVO!
Expeçam-se os alvarás de soltura. Intimem-se".
RAFAEL GONÇALVES DE PAULA
Juiz de Direito