quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Conto de Natal

A minha artista Vanguardíssima, Sandra Camurça, que torce pro Santa Cruz e adora uma briga justa, lembrou, agora há pouco, de um conto publicado por um outro brigão (que eu igualmente admiro) e sensível Pirata Z, o Xará Marcelo, jornalista com selo de qualidade Fausto W - o Mega-Ultra-Foda e incomparável Fausto do JB. 
Lindamente bem escrito, como sempre, e emocionante na medida certa. Italiano e mundial. 
Reproduzo aqui com os votos de um natal repleto de paz e, como diria o Xará Pirata, que os seus olhos sejam atendidos.


Por Pirata Z

um conto de natal
ecco! - ou, 'Don' Angelo e o cavalo do Zorro


1973. eu, 7 anos de idade.
como todo mundo, em toda família, eu tinha um tio meio 'torto' - casado com 
uma irmã de meu avô siciliano - e meio banana, também. seu nome era [ó só]
Américo... rico. muito rico. bobo. muito bobo. vai vendo.

todo ano, próximo ao natal, ele perguntava qual presente a gente gostaria de
ganhar, mas, no almoço de natal, sem nem embrulhar, ele dava pra todos uma
mesma revistinha do rato mickey... no ano seguinte, a mesma pergunta, e eu,
bobo, na batata, respondia: "a capa, a espada, a máscara e o cavalo do Zorro!". tá.
chegava o natal, revistinha do rato mickey. no ano seguinte, mesma pergunta,
mas, desta vez, pensando que, talvez por conta do cavalo, que devia custar uma
nota, é que eu nunca ganhava o que pedia, tirei o bicho do pedido. em vão... no
almoço de natal, revistinha do rato mickey... vendo-me murchar, 'Don' Angelo,
meu avô, não se conteve. cuspiu no prato uma castanha que estava comendo,
juntou os polegares às pontas de cada mão em concha e, agitando-as, disparou:

- ascuta me, Américo: sei pazzo?
- what's up? - provocou o tio américo, que adorava falar inglês menos para se
exibir e mais para irritar meu avô, sabendo-lhe o apego às suas raízes.
- uatis api mio cazzo! risponda me: sei pazzo?
- no, i don't. why?
- então, caspita ! qual o prazer de deixar uma criança triste?!
- mas eu não dei o presente?
- ah, fancullo! um aviso: nunca mais - mai, capice? - dê presente para meus
netos, capice?
- mas...
- capice, pezzo di merda?
- tá, tá, entendi...
- ecco!

e, com seu sangue siciliano ebulindo nas veias, 'Don' Angelo esmagou uma
noz com as bases das mãos, 'sinalizando', claro, que é o que faria com o crânio
do cunhado cretino, não fosse isso matar Giulia, a sua irmã, de desgosto, com
o que, além de tudo, sem o bolo de nozes que esta fazia, os natais nunca mais
seriam iguais - e natal, para o meu avô, era coisa muito séria; daí sua fúria.

'Don' Angelo foi um homem de amores plurais; assim, amou intensamente,
enquanto viveu, os netos e as mulheres - nesta ordem, graças à qual minha
avó, 'Dona Pina', assim o definia: - "um péssimo marido, um pai severo e um avô
de conto de fadas" - e foi, mesmo, tudo isso, mas eu tive a sorte de ser neto...
militar reformado, nunca foi rico, mas, para os netos - e para as "ragazzas",
claro - jamais negou nada, nunca aparecendo para ambos com as mãos vazias
[e, no natal, essa característica era elevada à enésima potência].

pelos netos, em dezembro, sossegava o "periquito", vivendo exclusivamente
para a família. ia ao banco, sacava todo dinheiro duma conta de poupança que
mantinha para o natal, na qual, de janeiro a novembro de cada ano, 'pingava'
toda grana que conseguia economizar. pegava o seu Maverick - que, pra mim,
nanico como fui em criança, parecia um iate -, juntava os netos, e íamos às 
compras - exceto as de nossos presentes, que essa era uma delícia toda dele.

filho de um comerciante de frutas, secos e molhados,
'Don' Angelo era um craque pra escolher as melhores e
mais variadas frutas. pelo toque e pelo cheiro, sabia se
eram, ou não, as mais deliciosas - idem para a escolha
das azeitonas e do azeite [siciliano, sempre, e o cheiro
deste nunca mais saiu de minha memória], bem como
do cordeirinho a ser assado e do vinho a ser bebido [até
pelas crianças, aos bocadinhos por ele, claro, servidos].

comprávamos ainda todos os ingredientes para as massas e doces que Dona
Pina preparava em casa - até os 9 anos, nunca comi massa industrializada -, e
mais: velas, adereços para a árvore que ele montaria, tudo de necessário para
receber "os cavaleiros e a princesa de meu reino", referindo-se, respectivamente,
aos 4 netos e à única neta de sua corte muito particular - e tudo isso em troca,
acredite, de ouvir uma única e mesma palavra de cada neto à sua pergunta:

- então: tutti bellissimo?
- ecco! - exclamávamos, individualmente, a palavra mágica.

e 'Don' Angelo, depois de ouvir 5 ecco, com o seu rosto de homem mais feliz
do mundo, ensopava um dos finos lenços que adorava ganhar. italianíssimo...
por aí, creio, dá para imaginar o que significou pra ele a babaquice do tal tio
Américo, à qual reagiu não só esmagando a noz, mas, faltou dizer, chamando-
me junto a si, colocando-me no seu colo e, com o maior sorriso, dizendo-me:

- ei, piccolo Zorro, que cara é esta, hãn? no natal do ano que vem, EU vou te
dar a tua capa, a tua máscara, a tua espada, e mais: vou te dar o teu cavalo!
- branco, vô?
- ecco!
- grande?
- bem - e olhou em direção ao Américo, antes de responder: - mezzo. pode?
- ecco!
- ecco! - repetiu 'Don' Angelo, com um sorriso diferente no rosto.

durante o ano, eu não pensava noutra coisa que não no cavalo que meu avô
me prometera. em outubro, comecei a ser preparado para a chegada do bicho -
e meu avô, com toda sua lábia, me convenceu de que ter um cavalo 'diferente'
era muito mais legal do que ter um cavalo igual a qualquer outro. concordei.

num domingo, estava na casa de meu avô. Palmeiras e São Paulo jogariam
uma partida decisiva, e meu avô estava muito agitado, nervoso. acendeu seu
cachimbo, colocou-me em seu colo, e me perguntou:

- quem vai ganhar, Zorro?
- o Palestra. de quanto, vô?
- não importa. basta ganhar - e viva o Palestra!
- viva!

5 minutos de jogo, gol do São Paulo. o cachimbo de 'Don' Angelo foi ao chão.
toca o telefone, minha avó atende e passa o aparelho pro meu avô, dizendo:

- é o Américo.

o tio Américo era tão são-paulino, mas tão são-paulino, que, rico, comprara
uma mansão no Morumbi, para facilitar a vida dos amigos que tinha no clube,
nos dias em que fazia festas pra estes.
meu avô, já esperando a gozação, atendeu.

- alô. sim... sei... caspita! já disse que sei! fancullo! o jogo apenas começou -
bum! bateu o telefone, e exclamou: - e viva o Palestra!
- viva! - acompanhei.

10 minutos para acabar o primeiro tempo. falta a favor do São Paulo. Pedro
Rocha, se não me falha a memória, vai bater. tem, dizem, um canhão no pé.

- vô, eu quero um canhão pra colocar no pé.
- filho, fica quietinho. vamos torcer pra bola acertar o placar.
- mas cê me dá um canhão pra colocar no pé?
- dou, mas depois.

gol do São Paulo. desta vez, eu - não o cachimbo -, é que vou ao chão, com o
salto que meu avô deu da cadeira, berrando palavrões, brigando com o locutor,
esquecendo-se de que eu estava em seu colo...

- desculpe, filho. foi sem querer que o vovô fez isso, ouviu?
- ouvi. me dá um canhão pra colocar no pé?
- dou, mas amanhã. hoje é dia de torcer pro Palestra. e viva o Palestra!
- viva!

toca o telefone.

- se for o filho da puta do Américo, diz que tô com a irmã dele, ligo depois.
- alô - atendeu 'Dona' Pina, que foi logo dizendo: - Américo, se eu fosse você,
ligava mais tarde.
- certo, Pina, mas fala pro Angelo não se esquecer do que...
- Américo - interrompeu minha avó.
- quê?
- fancullo!

começa o segundo tempo. 15 minutos de jogo, pênalti para o Palmeiras, que
Leivinha converte. toca o interfone, minha avó atende.

- sim, claro. mil desculpas. obrigado. - diz 'Dona' Pina, que desliga o aparelho
e fala para meu avô: - o síndico pediu pra fazer menos barulho.
- corintiano filho de uma puta, isso sim!

mais 10 minutos, Ademir da Guia cruza para César Maluco, que, de cabeça,
empata para o Palmeiras. indescritível, a reação de meu avô. toca o telefone -
desta vez, ele mesmo atende:

- parla, cornuto! grita agora, fala agora! o quê? da onde? sim, e daí? fancullo!
- quem era, o Américo? - quis saber minha vó.
- não, o síndico do prédio vizinho.
- e o que ele queria?
- pediu pra eu fazer menos barulho, o corintiano filho de uma puta.

o São Paulo, preferindo levar a decisão pros pênaltis, se fecha na defesa, e o
jogo fica amarrado, mas o Palmeiras insiste em tentar resolver o jogo no tempo
regulamentar. Luís Pereira vem com a bola lá de trás, da defesa palmeirense,
avança rumo ao meio-de-campo, e, quando um são-paulino vem marcá-lo, ele
toca para Dudu, que toca de primeira pra Leivinha, que dribla um, dribla outro,
avança e toca pra Ademir da Guia, que conduz a bola até a meia-lua com toda
a classe que lhe valeu o apelido de "Divino", corta um, desvia de um 'carrinho'
e, antes que 'Don' Angelo terminasse de mastigar o braço da poltrona, toca na
bola por baixo, esta encobre o goleiro e desce "lambendo" a rede, e o Palmeiras
vira o jogo. 3 a 2. faltando 1 minuto pra acabar, a torcida invade o campo. fim.

sentiram falta de algo e de alguém? eu também, no dia, porque 'Don' Angelo
não comemorou o gol, a vitória, o título, nada... saíra de mansinho da sala, pra
falar no outro telefone. ao encontrá-lo, vi que falava baixinho com alguém.

- era o tio Américo?
- não, filho, era a vizinha japonesa.
- e o que ela queria?
- não sei, filho, eu não falo japonês...

noite de natal. 'Don' Angelo, animadíssimo, entregando os presentes para
os netos. chega a minha vez.

- e a mio piccolo Zorro... questo!

qual prometera, 'Don' Angelo me deu a capa, a máscara e a espada do Zorro.

- e o cavalo, vô? - cobrei
- amanhã, na casa da tia Giulia.

mal dormi, aquela noite. já de manhã, as horas pareciam não passar, nada
de chegar a hora do almoço. me distraí com os apetrechos do Zorro, e usei um
cabo de vassoura à guisa de cavalo, e 'cavalguei' e enfrentei inimigos até ser
finalmente chamado para o banho, que tava na hora de ir à casa de tia Giulia.
fui vestido de Zorro, como recomendara 'Don' Angelo, para minha alegria, e,
lá chegando, tio Américo, com os seus cabelos brancos levantados de um jeito
muito engraçado, parecendo um moicano, ou parecendo ter uma crina, pegou-
me no colo, colocou-me sobre os seus ombros, e me disse:

- muito prazer, Zorro! meu nome é Pangaré, e eu sou o seu cavalo. Vamos?

e tio Américo saiu correndo pelo jardim enorme de sua casa, trotando e, eu
não entendi porque, gritando "Palestra, Palestra, Palestraaa!!", mas me diverti,
achando até melhor que um cavalo de verdade, que não gritaria "Palestra"...
eu o cavalguei por uns 5 minutos, até que meu avô veio, me tirou do ombro
de tio Américo, e disse:

- pronto, filho. depois você anda mais a cavalo.
- mas, vô, tava legal...
- dopo, filho, dopo. eu prometo. eu sou de não cumprir o que prometo?
- não.
- ecco! e você, Américo, vá se arrumar, vá.
- mas...
- caspita! vá se arrumar, que seus netos chegaram, porca miséria!
- olha, depois não venha me dizer que eu não paguei a...
- Américo, vá se arrumar pra receber seus netos! que prazer você tem em
deixar crianças tristes, dio santo!

na hora, fiquei injuriado, mas 'Don' Angelo, esperto, me distraiu rapidinho,
retomando aquela conversa sobre comprar um canhão para o pé, e aí, claro, o
"cavalo" não importava mais.
tempo depois, já crescidinho, ele já morto - 1982 -, é que pude, finalmente,
entender a dimensão emocional de 'Don' Angelo, "péssimo marido, pai severo e
um avô de conto de fadas". era mesmo. inclusive para netos que não os seus.


~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ pz ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~ ~



Marcelo Carota é jornalista, escritor, zineiro, paulista e palmeirense. 
Mora em Brasília/DF e se auto-denomina um caipira punk.


Texto editado originalmente em 19/12/2007 na Pirata Zine (zine eletrônica), edição 107, ano 4.


segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

Resumo da Chuva 2014


E mais um ano cruza a reta final e está pronto para receber a bandeirada! É este tragicômico 2014. A gente não quer mais te ver por aqui.

E se as eleições deram pano para outras mangas e muitas cartas escondidas, acusações e bandalheiras por todo o Brasil, fabricação de factóide, revistas jogando o jornalismo na lama, em movimentos de puro desespero e panfletagem, e outros fatos lamentáveis, nada foi mais representativo do que o Lobão com suas passeatas totalmente Vida Bandida. Nada, absolutamente nada, foi tão risível e deprimente do que assistir um ídolo definhar intelectualmente – e olha que a concorrência foi dura. Muitos quiseram o seu lugar, mas ele não deixou. Como um bom Lobo, tratou de morder o seu nicho inverossímil, de convicções ébrias e etéreas e foi pra rua com o seu chapéu de Napoleão e a barba da Al-Qaeda. Melhor, impossível.

No terreno das mortes o fôlego de Zé Maria deu inveja a muito maratonista. Foi de uma congestão hercúlea. Desde as mais rotineiras às chocantes. Eusébio (o Cristiano Ronaldo dos tempos em que, para ser craque, tinha que ser pintor), Philip Seymour Hoffman (Boogie Nights, Capote, Magnólia, Jogos de Poder... Tá bom?), Eduardo Coutinho, José Wilker, Gabriel Garcia Márquez (Puta-que-pariu!), Jair Rodrigues, Mãe Dinah (que, infelizmente, não previu a própria morte, nem a de ninguém), João Ubaldo, Suassuna (sacanagem, porra!), Rubem Alves, Robin Williams (fez Bom Dia Vietnã e Sociedade dos Poetas Mortos, pra mim já tá bom, entrou pra história), Eduardo Campos (Não me dizia nada, mas foi trágico, forte), Antônio Ermínio de Moraes, Hugo Carvana, Leandro Konder, Manoel de Barros (o encantador de passarinhos). Bem, eu não vou nada bem...

E, enquanto ia numerando (com a ajuda do oráculo google, o novo grande arquiteto do universo) os mortos que me convinham, a Alemanha fazia o gol número 7.700 contra o Brasil.

Mas nem tudo foram lágrimas! Teve um tal de Haddad, louco de pedra, que foi contra a postura patropi da política brasileira e, invertendo a lógica tupiniquim, abriu guerra contra o retrocesso em Sampa. Teve o Chico lançando livro, o Pink Floyd se despedindo, escândalos de corrupção às toneladas (sinal de que estamos investigando os branquinhos dentro dos seus condomínios de luxo e não, apenas, o preto favelado), as 1.000.000 de pessoas protestando no Centro do Rio de Janeiro (e a globo dizendo ser 100 mil), Brasília ocupada de forma magnífica (êta povo bom! Só quem não conhece a história desse povo pode cometer a asneira de falar em gigante acordando...).

Aliás, o exoesqueleto não foi du-caralho?E a Malala Yousafzai? Linda criança no ápice do mundo! 

O Botafogo caiu... Mas convenhamos: tem coisas que só acontece com o Botafogo.




Chega de eufemismos



Num longo ensaio publicado seis meses atrás na revista “New Yorker”, o jornalista Adam Gopnik disserta sobre linguagem e eufemismos. O autor sustenta que é preciso coragem para eliminar o clichê e o eufemismo do nosso discurso, pois significa estarmos dispostos a chegar mais perto da verdade.

“Sempre que falamos de forma direta sobre algum tema que atrai camadas de mentiras estamos promovendo a sanidade da nação”, escreveu Gopnik. Ou, como dizia George Orwell, metáforas surradas não passam de uma sopa de palavras destituídas de qualquer poder evocativo, que servem de muleta ao orador sem imaginação ou àquele com algo a esconder.

De fato, como demonstrou o laborioso relatório final da Comissão Nacional da Verdade divulgado semana passada em Brasília, abordar temas cabeludos sem recorrer a malabarismos linguísticos acaba apontando para responsabilidades reais. E assim, sem meandros, a tortura praticada no período da ditadura militar brasileira foi qualificada como política de Estado. E os responsáveis finais por essa política de Estado estão listados nominalmente, começando pelo mais alto escalão. A História agradece. E a História do Brasil se engrandece.

A publicação do relatório da Comissão de Inteligência do Senado dos Estados Unidos sobre o abuso de poder da CIA entre 2001 e 2009 foi mais oblíqua na questão da responsabilidade final. Mas teve o mérito de acabar com uma das mais perversas sopas de palavras criadas e manipuladas pelo governo de George W. Bush — o eufemismo “Técnicas de interrogatório avançadas”, por vezes também chamado de “conjunto de procedimentos alternativos”.

No lugar desses eufemismos de sonoridade funcional, asséptica e enganosa, o relatório de 6.700 páginas e 38 mil notas de rodapé usa o substantivo correto, de compreensão universal: tortura. A partir de agora, todo cidadão americano terá de aceitar a responsabilidade de saber que autoridades de seu país optaram por transformar agentes em torturadores.

Apesar da avalanche de evidências, o atual diretor da CIA, John Brennan, não se sentiu capaz de pronunciar a palavra crua e nua em seu depoimento perante a comissão. Optou por designar como “métodos repugnantes” o elenco de atrocidades cometidas pelos serviços de inteligência. “Os interrogatórios eram cuidadosamente calibrados e humanos”, acrescentou em seu testemunho o ex-agente Melvin Goodman. E José Rodriguez, o mais graduado chefe de operações responsável pelo programa de tortura, ainda defendeu a prática como “tendo recebido o aval das mais altas autoridades jurídicas do país e ter sido aplicada por profissionais altamente treinados”.

Nessa linha, o descompasso mais grotesco entre fato e fantasia ficou a cargo de Michael Hayden. Por ter sido um dos diretores da CIA de George W. Bush, foi inquirido sobre a reidratação retal que fazia parte do balaio de abusos. “Alto lá”, indignou-se Hayden, “eram procedimentos médicos voltados para a recuperação de prisioneiros desidratados. Não podíamos recorrer a injeções intravenosas por estarmos lidando com detentos não cooperativos”.

No implacável relatório da comissão senatorial americana, porém, consta o telegrama de um agente relatando que o detento Majid Khan recebera o seu “almoço do dia (homus, macarrão com molho, nozes e uvas passas) por inserção retal. Usamos o tubo Ewal maior que tínhamos”. Um chefe da equipe de interrogadores listado no relatório confirmou a eficácia do método da reidratação retal: obtém-se o “controle total” do preso. O procedimento “limpava a cabeça” da vítima, testemunhou outro interrogador.

Perdida a batalha contra a divulgação do relatório, os apologistas das “técnicas de interrogatório avançadas” deslocam-se agora para outra trincheira. Tendo à frente o cavernoso Dick Cheney, vice-presidente à época e homem-forte do governo Bush, tentarão refutar as conclusões do trabalho e desmontar a acusação de que o Poder Executivo, o Congresso e o Departamento de Justiça receberam informações incompletas e equivocadas sobre o programa. “Tudo besteira”, diz Cheney, sem mexer qualquer músculo da fisionomia inescrutável. “O programa foi autorizado. A CIA não procederia sem autorização e tudo foi revisado pelo Departamento de Justiça antes de ser deslanchado.”

A sombria tagarelice de Cheney recebeu uma resposta alentadora por parte do veterano Ray McGovern, que por três décadas serviu a seu país como oficial de Inteligência do Exército e analista da CIA. “Hoje ninguém mais pode ‘autorizar’ a tortura. Nem o estupro. Nem a escravidão”, escreveu McGovern, hoje membro de um grupo intitulado Veteranos Profissionais de Inteligência Pró-Sanidade (VIPS). “A tortura faz parte da categoria moral que os estudiosos de ética classificam como mal intrínseco — o fato de ela dar ou não algum resultado é irrelevante.”

Segundo essa linha de pensamento, torturar é errado não pela existência de uma Convenção da ONU e de leis nacionais que a proíbem. Ocorre o contrário. As proibições legais foram sendo construídas porque as sociedades civilizadas reconheceram que seres humanos não devem torturar, ponto.

Joseph Brodsky, o poeta e ensaísta que emigrou para os Estados Unidos após ser expulso da União Soviética, escreveu: “A vida é um jogo cheio de regras, mas sem árbitro. Aprende-se a viver observando o jogo, mais do que consultando qualquer livro, inclusive o Livro Sagrado. Nenhuma surpresa, portanto, que tantos trapaceiem, que tão poucos vençam, que tantos percam.”

Para o detentor do Nobel de Literatura, o perigo está no homem que não sabe argumentar ou se expressar de forma adequada — ele acaba recorrendo à ação. “E dado que o vocabulário da ação limita-se, por assim dizer, a seu corpo, esse ser humano agirá com violência e estenderá seu vocabulário com uma arma no lugar do que poderia ser um adjetivo.”

A Comissão da Verdade brasileira e o relatório sobre Tortura do Senado americano certamente alegrariam a alma dividida do poeta.


Dorrit Harazim é jornalista

quinta-feira, 13 de novembro de 2014

Adeus!

...e a vida, que não perde tempo nem desperdiça o riscado, levou dois dos meus grandes para as terras do sem-fim, ou para aquele estado do não-sentir. 
Manoel e Leandro, cada qual na sua lapidação dos entendimentos necessários, pousaram por aqui há algum tempo, mas quis a Literatura imortalizá-los pelo conteúdo e não pelo formol. Uma pena. As estrelas podem até ganhar companhia, mas eu queira mesmo era os ter aqui, pescando ou comprando um pão, na labuta diária que é viver.
Dedico a eles o meu mais profundo carinho.
E que suas sementes alfabéticas cresçam pela tangente e transformem-se em lindezas.
"O artista é um erro da natureza. Manoel foi um erro perfeito".


Tratado geral das grandezas do ínfimo

A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil.
Fiquei emocionado.
Sou fraco para elogios.


O Livro sobre Nada

  • Com pedaços de mim eu monto um ser atônito.
  • Tudo que não invento é falso.
  • Há muitas maneiras sérias de não dizer nada, mas só a poesia é verdadeira.
  • Não pode haver ausência de boca nas palavras: nenhuma fique desamparada do ser que a revelou.
  • É mais fácil fazer da tolice um regalo do que da sensatez.
  • Sempre que desejo contar alguma coisa, não faço nada; mas se não desejo contar nada, faço poesia.
  • Melhor jeito que achei para me conhecer foi fazendo o contrário.
  • A inércia é o meu ato principal.
  • Há histórias tão verdadeiras que às vezes parece que são inventadas.
  • O artista é um erro da natureza. Beethoven foi um erro perfeito.
  • A terapia literária consiste em desarrumar a linguagem a ponto que ela expresse nossos mais fundos desejos.
  • Quero a palavra que sirva na boca dos passarinhos.
  • Por pudor sou impuro.
  • Não preciso do fim para chegar.
  • De tudo haveria de ficar para nós um sentimento longínquo de coisa esquecida na terra — Como um lápis numa península.
  • Do lugar onde estou já fui embora.
Manoel de Barros

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O dinheiro não é um valor

Imagine que você acaba de chegar a um lugar onde pessoas conceituadas estão discutindo sobre economia e finanças. Imagine o que aconteceria se você dissesse:

? O dinheiro não é um valor.

Provavelmente, uma onda de protestos criaria enormes dificuldades para você argumentar em defesa da sua tese. Talvez você não consiga nem falar!

A palavra “valor” se presta a uma enorme confusão. Ela engloba tanto os chamados “valores” econômicos como os valores éticos, estéticos, filosóficos, religiosos, humanos em geral.

Economicamente, o valor se traduz no dinheiro. O dinheiro indica o preço, o que a mercadoria está valendo no momento da compra e venda.

O dinheiro é o equivalente universal na esfera das mercadorias. Ele tem desempenhado um papel historicamente importante, tem agilizado comércio, tem viabilizado acordos complexos.

Não tem sentido investir contra o dinheiro ou desprezá-lo. Ele contribui para medir o que precisa ser medido. Avaliações criteriosas dependem de instrumentos delicados e, muitas vezes, dependem da quantificação promovida pelo dinheiro.

O dinheiro chegou a se transformar, como observou Goethe no Fausto, numa espécie de Deus. A maioria das pessoas, implícita ou explicitamente, vice em função do dinheiro. Essa opção lhes parece tão “natural” que ela frequentemente se espantam quando outras possibilidades são evocadas.

Para o comum dos mortais, o dinheiro é o valor dos valores. Se paramos para pensar, entretanto, verificamos que as coisas são mais complicadas do que parecem.

O dinheiro remete sempre a algo quer você pode adquirir com ele, a algo que não é ele, a algo que está fora dele. O poder do dinheiro é grande, mas não é ilimitado. O mundo do dinheiro é o das circunstâncias, que são, por definição, relativas.

O mundo das coisas relativas é importantíssimo, é ineliminável da nossa existência humana. Mas não a esgota.

Todas as culturas, de todos os povos, ao que tudo indica, mostram que os seres humanos necessitam de valores de outro tipo: valores intrinsecamente qualitativos, vividos como absolutos.

Cada cultura faz suas escolhas a respeito do que sejam honestidade, sinceridade, coragem, tolerância, solidariedade, beleza e generosidade. E cada pesoa, em algum momento, faz sua própria avaliação das ações humanas à luz das virtudes e dos valores que nelas se expressam.

É claro que esses valores ? éticos, estéticos, filosóficos, religiosos, humanos ? também são relativizados quando são vividos, traduzidos em ações históricas. A hisatória modifica tudo, nada escapa a ela.

Tudo se transforma. O que conta, porém, é o modo como se realiza cada transformação. Existem movimentos que se esgotam, conscientemente, nas circunstâncias em que ocorrem; e existem mudanças que plantam ideias com a esperança de que algo delas venha a perdurar.

Se eu for ao encontro de um comerciante de quem quero comprar alguma coisa, é natural que eu leve dinheiro e procure gastá-lo conscientemente. Se quero vender um produto, procurarei obter um bom preço por ele. Seria uma rematada tolice, descuidar de gastos e despesas, ignorar os limites do orçamento, dilapidar perdulariamente o patrimônio,em nome de um discurso esnobe, romântico e demagógico, contra o dinheiro.

O problema não está no respeito à lógica da economia (ou, mais precisamente, das finanças) no território que lhe é próprio: o erro essencial está na aceitação de uma “geleia geral”, que mistura os valores, dissolve os conceitos e mistura as ideias. “Valores” mensuráveis, circunstanciais, que tentam se fazer passar por valores essenciais, duradouros, tornam-se trapaceiros, impostores.

Os “valores” que podem ser traduzidos em preços têm uma indiscutível utilidade imediata, porém permanecem presos aos horizontes das preocupações imediatas. Causam graves distorções ideológicas e sérios danos morais, quando interferem no âmbito dos autênticos valores (sem aspas). Desrespeitam os valores humanos que não estão à venda.

A expansão exagerada dos domínios do dinheiro tende a impedir que os seres humanos reconheçam a demanda – diversificada mas permanente- dos valores que as culturas particulares vão tecendo e com os quais vai se constituindo uma expressão infinitamente universal da humanidade.

O dinheiro não substitui esses valores. E, quando se pretende usá-lo para substituí-los, ele os destrói.

Um exemplo disso se encontra na argumentação do personagem que dá título ao magnífico O sobrinho da Rameau, de Diderot. Quando procura convencer seu interlocutor de que o dinheiro podia ser o fundamento de todos os valores, o “sobrinho” só consegue demonstrar que essa convicção resulta em completa insensibilidade ética, em cinismo crasso. “O dinheiro é tudo. O resto, sem o dinheiro, não é nada”.

As discussões atuais a respeito da solidariedade às vítimas do maremoto na Ásia nos fazem recordar esse texto literário de Diderot, que Goethe, Hegel, Marx e Freud consideravam uma obra-prima. O sobrinho de Rameau é uma clara demonstração de que, por mais importante que possa vir a ser, o dinheiro não é um valor.

Tragédia na Ásia

A “parcimônia” da ajuda do governo dos Estados Unidos às vítimas do maremoto na Ásia levou alguns dirigentes do Estado mais rico do mundo a desenvolver uma argumentação que girava em torno de números. Qual seria a cifra adequada à extensão da catástrofe? Como deveriam ser feitos os cálculos? Com base no número de mortos? E deveriam ser incluídos nos cálculos também os desaparecidos?

Foi constrangedor ver um funcionário da ONU tendo que puxar as orelhas do governo Bush. E foi mais constrangedor ainda ler depopis na manchete de um grande jornal norte-americano a autocrítica: “De fato, temos sido avarentos”. Nas semanas que se seguiram, a doação aumentou, e um representante do Estado avarento admitiu que o governo Bush estava procurando melhorar sua imagem entre os mulçumanos.

Configurou-se, pois, uma situação criada por uma catástrofe natural, logo imposta como um desafio colossal a todos os que podiam intervir para evitar que a tragédia se alastrasse. Os olhos do mundo se fixaram, sobretudo, nos mais poderosos. Os norte-americanos se viram, de repente, no centro do palco.

Num primeiro momento, os indivíduos que haviam se tornado decisivos para ajuda às vítimas trataram de definir sua intervenção por meio de “valores” (dólares). Em seguida, o critério monetário foiu completado com conveniências políticas de imagem (propaganda).

Valores éticos, óbvios, de solidariedade humana, não apareceram no discurso das autoridades estadunidenses durante as primeiras semanas da calamidade.

Aparentemente, não foram considerados necessários. O que confirma o esvaziameno que estão sofrendo.

Leandro Konder é filósofo

[Publicado no JB, caderno Ideias, do sábado 22 de janeiro de 2005]


terça-feira, 11 de novembro de 2014

Os pilares da estupidez


Está em curso, há anos, nas "redes sociais" insidiosa campanha de agressão à democracia e crescentes ataques às instituições. 

Quem cala, consente. Os governos do PT têm feito, em todo esse período, cara de paisagem. Nem mesmo quando diretamente insultados, ou caluniados, os dirigentes do partido tomaram qualquer providência contra quem os atacava, ou atacava as instituições, esquecendo-se de que, ao se omitirem, a primeira vítima foi a democracia. Nisso, sejamos francos, foram precedidos por todos os governos anteriores, que chegaram ao poder depois da redemocratização do país. 

Mergulhados na luta política e na administração cotidiana dos problemas nacionais, nenhum deles percebeu que o primeiro dever que tínhamos, nesta nação, depois do fim do período autoritário, era regar e proteger a frágil flor da Liberdade, ensinando sua importância e virtudes às novas gerações, para que sua chama não se apagasse no coração dos brasileiros. Se, naquele momento, o da batalha pela reconquista do Estado de Direito, cantávamos em letras de rock que queríamos votar para presidente, hoje parece que os polos da razão foram trocados, e que vivemos sob a égide da insânia e da vilania. 

Em absoluta inversão de valores, da ética, da informação, da própria história, retorna a velha balela anticomunista de que Jango — um latifundiário liberal ligado ao trabalhismo — ia implantar uma ditadura cubano-soviética no Brasil, ou que algumas dezenas de estudantes poderiam derrubar, quatro anos depois, um regime autoritário fortemente armado, quando não havia nenhuma condição interna ou externa para isso. Retorna a velha balela anticomunista de que Jango ia implantar uma ditadura cubano-soviética no Brasil

Agora, para muitos que se manifestam pela internet, quem combatia pela democracia virou terrorista, os torturadores são incensados e defendidos, e prega-se abertamente o fim do Estado de Direito, como se o fascismo e o autoritarismo fossem solução para alguma coisa, ou o Brasil não fosse ficar, política e economicamente, imediata e absolutamente, isolado do resto do mundo, caso fosse rompida a normalidade constitucional.

Ora, os mesmos internautas que insultam, hoje, o Judiciário, sem serem incomodados — afirmando que o ministro Toffoli fraudou as eleições — já atacaram pesadamente Aécio Neves e sua família, quando ele disputava a indicação como candidato à Presidência pelo PSDB em 2010. São eles os mesmos que agridem os comandantes militares, acusando-os de serem "frouxos" e estarem controlados pelos comunistas, e deixam claro seu desprezo pelas instituições brasileiras, incluindo as Forças Armadas, pedindo em petição pública à Casa Branca uma intervenção dos Estados Unidos no Brasil, como se fôssemos reles quintal dos EUA, quando são eles os que se comportam como abjetos vira-latas, em sua patética submissão ao estrangeiro. 

São eles os que defendem o extermínio dos nordestinos e a divisão do país, como se apenas naquela região a candidata da situação tivesse obtido maioria, e não estivéssemos todos misturados, ou nos fosse proibida a travessia das fronteiras dos estados.

São eles que inventam generais de araque, supostos autores de manifestos igualmente falsos, e usam, sem autorização, o nome de oficiais da reserva, em documentos delirantes, tentando manipular, a todo momento, a base das Forças Armadas e as forças de segurança, dando a impressão de que existem sediciosos no Exército, na Marinha, na Aeronáutica, quando as três forças se encontram unidas, na execução de projetos como o comando das Operações de Paz da ONU no Haiti e no Líbano; as Operações Ágata, em nossas fronteiras; o novo Jato Cargueiro Militar KC-390 da Embrer; o novo Sistema de Mísseis Astros 2020 da Avibras; ou o novo submarino nuclear brasileiro, no cumprimento, com louvor, de sua missão constitucional.

O site SRZD, do jornalista Sérgio Rezende, entrou em contato com oficiais militares da reserva, que supostamente teriam "assinado" um manifesto, que circula, há algum tempo, na internet. O texto se refere a "overdose de covardia, cumplicidade e omissão dos comandantes militares" e afirma que, como não há possibilidade de tirar o PT do poder, é preciso dar um golpe militar, antes que o Brasil se transforme em uma "Cuba Continental".

Segundo o SRZD, todos os oficiais entrevistados, incluindo alguns generais, negaram peremptoriamente terem assinado esse "manifesto" e afirmaram já ter entrado em contato com o Ministério do Exército, denunciando tratar-se o e-mail que divulgava a mensagem de uma farsa e desmentindo sua participação no suposto movimento.

Por mais que queiram os novos hitlernautas, os militares brasileiros sabem que o governo atual não é comunista e que o Brasil não está, como apregoam os “aloprados” de extrema direita que tomaram conta da internet, ameaçado pelo comunismo internacional.

Como dizer que é comunista, um país em que os bancos lucram bilhões, todos os trimestres; em que qualquer um — prerrogativa maior da livre iniciativa — pode montar uma empresa a qualquer hora, até mesmo com apoio do governo e de instituições como o Sebrae; no qual investidores de todo o mundo aplicam mais de 60 bilhões de dólares, a cada 12 meses, em Investimento Estrangeiro Direto; onde dezenas de empresas multinacionais se instalam, todos os anos, junto às milhares já existentes, e mandam, sem nenhuma restrição, a cada fim de exercício, bilhões e bilhões de dólares e euros em remessa de lucro para e exterior?

Como taxar de comunista um país que importa tecnologia ocidental para seus armamentos, tanques, belonaves e aeronaves, cooperando, nesse sentido, com nações como a França, a Suécia, a Inglaterra e os Estados Unidos? Que participa de manobras militares com os próprios EUA, com países democráticos da América do Sul e com democracias emergentes, como a Índia e a África do Sul?

Baboso, atrasado, furibundo, ignorante, permanentemente alimentado e realimentado por mitos e mentiras espatafúrdias, que medram como fungos nos esgotos mais sombrios da Rede Mundial, o anticomunista de teclado brasileiro é sobretudo hipócrita e mendaz.Nada contra alguém ser de direita, desde que se obedeçam as regras estabelecidas na Constituição

Ele acredita "piamente" que Dilma Rousseff assaltou bancos e matou pessoas e que José Genoino esquartejou pessoalmente um jovem, começando sadicamente pelas orelhas, quando não existe nesse sentido nenhum documento da ditadura militar. 

Ele vê em um site uma foto da Escola Superior de Agricultura da USP, a Esalq, situada em Piracicaba, e acredita, também, "piamente", que é uma foto da mansão do "Lulinha", que teria virado o maior fazendeiro do país, junto com seu pai, sem que exista uma única escritura, ou o depoimento — até mesmo eventualmente comprado — de um simples peão de fazenda ou de um funcionário de cartório, que aponte para alguma prova ou indício disso, como de outras "lendas urbanas", como a participação da família do ex-presidente da República na propriedade de um grande frigorífico nacional.

Ele crê, piamente, e divulga isso, todo o tempo, que todos os 600 mil presos brasileiros têm direito a auxílio-reclusão quando quase 50% deles sequer foram julgados, e menos de 7% recebem esse benefício, e mesmo assim porque contribuíram normalmente, antes de serem presos, para a Previdência, durante anos, como qualquer trabalhador comum.

Nada contra alguém ser de direita, desde que se obedeçam as regras estabelecidas na Constituição. Nesse sentido, o senhor Jair Bolsonaro presta um serviço à democracia quando diz que falta, no Brasil, um partido com essa orientação ideológica, e já se declara candidato à Presidência, por essa provável agremiação, ou por essa parcela do eleitorado, no pleito de 2018. 

Os mesmos internautas que pensam que Cuba é uma ditadura contagiosa e sanguinária, da qual o Brasil não pode se aproximar, ligam para os amigos para se gabar de seu novo smartphone ou do último gadget da moda, Made in República Popular da China, que acabaram de comprar.

Eles são os mesmos que leem os textos escritos, com toda a iberdade, pela opositora cubana Yoami Sanchez — já convenientemente traduzidos por "voluntários" para 18 diferentes idiomas — e não se perguntam, por que, sendo Cuba uma ditadura, ela está escrevendo de seu confortabilíssimo, para os padrões locais, apartamento de Havana, e não pendurada em um pau de arara, ou tomando choques e sendo espancada na prisão. 

Mas fingem ignorar que 188 países condenaram, na semana passada, em votação de Resolução da ONU, o embargo dos Estados Unidos contra Cuba, exigindo o fim do bloqueio.

Ou que os EUA elogiaram e agradeceram a dedicação, qualidade e profissionalismo de centenas de médicos cubanos enviados pelo governo de Havana para colaborar, na África, com os Estados Unidos, no combate à pandemia e tratamento das milhares de vítimas do ebola. 

Ou que a Espanha direitista de Mariano Rajoy, e não a Coreia do Norte, por exemplo, é o maior sócio comercial de Cuba. 

Ou que há poucos dias acabou em Havana a XXXIII FIHAV, uma feira internacional de negócios com 4.500 expositores de mais de 60 países — aproximadamente 90% deles ocidentais — com a apresentação, pelo governo cubano, a ávidos investidores estrangeiros, como os italianos, canadenses e chineses, de 271 diferentes projetos de infraestrutura, com investimento previsto de mais de 8 bilhões de dólares.

Radical, anacrônica, desinformada e mais realista que o rei, a minoria antidemocrática que vai, eventualmente, para as ruas e se manifesta raivosamente na internet querendo falar em nome do país e do PSDB, pedindo o impeachment da presidente da República e uma intervenção militar, ou dizendo que é preciso se armar para uma guerra civil, baseia-se na fantasia de que a nação está dividida em duas e que houve fraude nas urnas, mas se esquece, no entanto, de um "pequeno" detalhe: quase um terço dos eleitores, ou mais de 31 milhões de brasileiros, ausentes ou donos de votos brancos e nulos, não votaram nem em Dilma nem em Aécio, e não podem ser ignorados, como se não existissem, quando se fala do futuro do país. 

Cautelosa e consciente da existência de certos limites intransponíveis, impostos pelo pudor e pela razão, a oposição tem se recusado a meter a mão nessa cumbuca, fazendo questão de manter razoável distância desse pessoal. 

Guindado, pelo voto, à posição de líder inconteste da oposição, o senador Aécio Neves, presidente do PSDB, por ocasião de seu primeiro discurso depois do pleito, no Congresso, disse que respeita a democracia permanentemente e que "qualquer utilização dessas manifestações no sentido de qualquer tipo de retrocesso terá a nossa mais veemente oposição. Eu fui o candidato das liberdades, da democracia, do respeito. Aqueles que agem de forma autoritária e truculenta estão no outro campo político, não estão no nosso campo político". 

Antes dele, atacado por internautas, por ter classificado de "antidemocráticas" as manifestações pedindo o impeachment da presidente Dilma e a volta do autoritarismo, o sociólogo Xico Graziano, também do PSDB, já tinha afirmado que "a truculência dessa cambada fascista que me atacou passa de qualquer limite civilizado. No fundo, eles provaram que eu estava certo: não são democratas. Pelo contrário, disfarçam-se na liberdade para esconder seu autoritarismo".

E o vice-presidente nacional do PSDB, Alberto Goldman, também negou, no dia primeiro, em São Paulo, que o partido ou a campanha de Aécio Neves estivessem por trás ou apoiassem — classificando-as de "irresponsáveis" — as manifestações pelo impeachment da presidente Dilma Rousseff. 

É extremamente louvável a iniciativa do presidente da OAB, Marcus Vinícius Furtado Côelho, de pedir a investigação e o indiciamento, que já estão em curso, pela Polícia Federal, com base na Lei do Racismo por procedência, dos internautas responsáveis pela campanha contra os nordestinos, lançada logo após a divulgação do resultado da eleição. 

Mas, se essa campanha é grave, mais grave ainda, para toda a sociedade brasileira, tem sido a pregação constante, que já ocorre há anos, pelos mesmos internautas, da realização de um Golpe de Estado, do assassinato e da tortura de políticos e intelectuais de esquerda, e de "políticos" de modo geral, além do apelo à mobilização para uma guerra civil, incluindo até mesmo a sugestão da compra de armas para a derrubada das instituições.

Cabe ao STF, ao Ministério Público, ao TSE, e aos tribunais eleitorais dos estados, que estão diretamente afeitos ao assunto, e à OAB, por meio de seus dirigentes, pedir, como está ocorrendo nos casos de racismo, a imediata investigação, e responsabilização, criminal, dos autores desses comentários, cada vez mais rançosos e afoitos, devido à impunidade, e o estabelecimento de multas para os veículos de comunicação, que os reproduzem, já que na maioria deles existem mecanismos de "moderação" que não têm sido corretamente aplicados nesses casos. 

A Lei 7.170 é clara, e define como "crimes contra a Segurança Nacional e a Ordem Política e Social, manifestações contra o atual regime representativo e democrático, a Federação e o Estado de Direito".

Há mais de 30 anos, pelas mãos de Tancredo Neves e de Ulisses Guimarães — em uma luta da qual Aécio também participou — e de milhões de cidadãos brasileiros, que foram às ruas, para exigir o fim do arbítrio e a volta do Estado de Direito, o Brasil reconquistou a democracia, pela qual havia lutado, antes, a geração de Dilma Rousseff, José Dirceu, José Serra e Aluísio Nunes, entre outros.

Por mais que se enfrentem, agora, essas lideranças, não dá para apagar, de suas biografias, que todos tiveram seu batismo político nas mesmas trincheiras, enfrentando o autoritarismo. 

Cabe a eles, principalmente os que ocupam, neste momento, alguns dos mais altos cargos da República, assumir de uma vez por todas sua responsabilidade na defesa e proteção da democracia, para que a Liberdade e o bom-senso não esmoreçam, nem desapareçam, imolados no altar da imbecilidade. 

Jornalistas, meios de comunicação, Judiciário, militares, Ministério Público, Congresso, Governo e Oposição, precisamos, todos, derrubar os pilares da estupidez, erguidos com o barro pisado, diuturnamente, pelas patas do ódio e da ignorância, antes que eles ameacem a estabilidade e a sobrevivência da nação, e da democracia.


segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Entre tosqueiras e terrorismo

            Soa quase como uma heresia saborear os pensamentos que me percorrem, mas preciso materializá-los para o bem da sinceridade: essa campanha presidencial me deixou com saudade das bolinhas de papel...
            Se achávamos a campanha do nosso querido vampiro José Serrador de um calão abaixo das notas do Enem, o que se viu em torno deste tucano amestrado e aterrorizado pela memória do (presidente-que-não-foi-mas-quase) avô foi de lamber os beiços do subterrâneo. A mídia PIG deste país está de parabéns. Nunca antes na história este país foi tão melecado e enlameado por jornalismos de esgoto e denuncismos irresponsáveis. Fora as manifestações públicas de proprietários midiáticos e filhos destes com cartazes de xingamentos a países vizinhos, entre outras tosqueiras sem noção. O golpe de misericórdia foi a capa-plágio daquela revista que jogou o jornalismo fora (já não tinha quase nenhum) e aderiu ao terror.
            Muita coisa estava em disputa, mas o ódio que se seguiu a isso tinha origens genéticas e pré-concebidas em outros níveis ideológicos que convém, com o tempo, ser refletido, debatido e sanado. Houve um gigante adormecido, há muito, que acordou de fato, mas esse gigante desperto atende pelos nomes de preconceito e intolerância. Ele é enorme e saiu pela epiderme da nossa classe dominante atrasada, egocêntrica, altamente religiosa e racista. O que se viu nas redes sociais e nas ruas foi uma explosão furiosa contra os “inferiores”. O próprio FHC-Catinga fez coro  e “preconceituou”: votar na Dilma era coisa de desinformados, ou seja, coisa de gente sem instrução. Só faltou chamar de vagabundos, mas isso ele já fizera com os aposentados.
            A esquerda pegou pesado também. O show de horrores não teve fim. Precisamos pensar mais sobre o que queremos fazer com toda essa liberdade que a democracia nos dá.
            Enfim, entre mortos e feridos salvaram-se os que permaneceram de pé. Que este governo possa colocar certas coisas no prumo e que venha a reforma política imediatamente. Clamamos por isso.

            No mais é parabenizar a presidenta e desejá-la um bom governo. Os brasileiros merecem.

sábado, 18 de outubro de 2014

Por que eu voto (novamente) em Dilma Rousseff?


Não podemos tampar o sol com a peneira. Houve erro e provavelmente muito roubo na gestão da Petrobrás. O caso da refinaria de Pasadena é o paradigma disso e este é o calcanhar do valente guerreiro Aquiles do atual Governo.

Entretanto, mantendo minha posição de 2010, quando firmei meu voto em Dilma Rousseff, não tenho simpatia nem pelo PT, nem pelo PSDB. Ambos os partidos sempre fizeram alianças espúrias e cometeram atos nefastos em nome da governabilidade, rezando pela cartilha de Maquiavel de que os fins justificam os meios...

Só que no governo do PSDB, o Brasil avançou na miséria e na desigualdade social, enquanto o PT, criou escolas, faculdades, concedeu bolsas de estudos e retirou 42 milhões de pessoas da extrema pobreza.

Para mim, este continua a ser o argumento definitivo.


O BRASIL REAL - DE 2002 A 2013
Por Luiz Alberto de Vianna Moniz Bandeira. Fonte: Pátria Latina


1. Produto Interno Bruto: 
2002 – R$ 1,48 trilhões
2013 – R$ 4,84 trilhões 

2. PIB per capita:
2002 – R$ 7,6 mil
2013 – R$ 24,1 mil

3. Dívida líquida do setor público: 
2002 – 60% do PIB
2013 – 34% do PIB

4. Produção de veículos: 
2002 – 1,8 milhões
2013 – 3,7 milhões

5. Safra Agrícola: 
2002 – 97 milhões de toneladas
2013 – 188 milhões de toneladas

6. Investimento Estrangeiro Direto: 
2002 – 16,6 bilhões de dólares
2013 – 64 bilhões de dólares

7. Reservas Internacionais:
2002 – 37 bilhões de dólares
2013 – 375,8 bilhões de dólares

8. Empregos Gerados: 
Governo FHC – 627 mil/ano
Governos Lula e Dilma – 1,79 milhões/ano

9. Taxa de Desemprego: 
2002 – 12,2%
2013 – 5,4%

10. Falências Requeridas em Média/ano: 
Governo FHC – 25.587
Governos Lula e Dilma – 5.795

11. Salário Mínimo: 
2002 – R$ 200 (1,42 cestas básicas)
2014 – R$ 724 (2,24 cestas básicas)

12. Dívida Externa em Relação às Reservas:
2002 – 557%
2014 – 81%

13. PROUNI – 1,2 milhões de bolsas

14. Salário Mínimo Convertido em Dólares:
2002 – 86,21
2014 – 305,00

15. Exportações:
2002 – 60,3 bilhões de dólares
2013 – 242 bilhões de dólares

16. Inflação Anual Média:
Governo FHC – 9,1%
Governos Lula e Dilma – 5,8%

17. PRONATEC – 6 Milhões de pessoas

18. Taxa Selic:
2002 – 18,9%
2012 – 8,5%

19. FIES – 1,3 milhões de pessoas com financiamento universitário

20. Minha Casa Minha Vida – 1,5 milhões de famílias beneficiadas

21. Luz Para Todos – 9,5 milhões de pessoas beneficiadas

22. Capacidade Energética: 
2001 - 74.800 MW
2013 - 122.900 MW

23. Brasil Sem Miséria – Retirou 22 milhões da extrema pobreza

24. Criação de Universidades Federais: 
Governos Lula e Dilma - 18
Governo FHC - zero

25. Criação de Escolas Técnicas:
Governos Lula e Dilma - 214
Governo FHC - 11
De 1500 até 1994 - 140

26. Desigualdade Social: 
Governo FHC - Queda de 2,2%
Governo PT - Queda de 11,4%

27. Produtividade: 
Governo FHC - Aumento de 0,3%
Governos Lula e Dilma - Aumento de 13,2%

28. Taxa de Pobreza:
2002 - 34%
2012 - 15%

29. Taxa de Extrema Pobreza:
2003 - 15%
2012 - 5,2%

30. Índice de Desenvolvimento Humano:
2000 - 0,669
2005 - 0,699
2012 - 0,730

31. Mortalidade Infantil:
2002 - 25,3 em 1000 nascidos vivos
2012 - 12,9 em 1000 nascidos vivos

32. Gastos Públicos em Saúde:
2002 - R$ 28 bilhões
2013 - R$ 106 bilhões

33. Gastos Públicos em Educação:
2002 - R$ 17 bilhões
2013 - R$ 94 bilhões

34. Estudantes no Ensino Superior: 
2003 - 583.800
2012 - 1.087.400

35. Risco Brasil (IPEA):
2002 - 1.446
2013 - 224

36. Operações da Polícia Federal:
Governo FHC - 48
Governo PT - 1.273 (15 mil presos)

37. Varas da Justiça Federal:
2003 - 100
2010 - 513

38. 40 milhões de pessoas ascenderam à Nova Classe Média (Classe C) e 42 milhões de pessoas saíram da miséria.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Delação Premiada: lendas, mitos, talvez verdades

Por Carlos Brickmann
Observatório da Imprensa


Como dizia a vovó, gato escaldado tem medo de água fria. Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça. Cidadãos normais, quando o governo anuncia que o preço da gasolina não vai subir, vão ao primeiro posto para encher o tanque. Pois caldo de galinha e bom senso nunca fazem mal a ninguém.

Observando o país real, nada mais justo do que acreditar, sempre que alguém acusa uma estatal, que houve mesmo superfaturamento. Se há empreiteiras no negócio, coisa boa não é. E se alguém anda com um belo dinheiro no bolso, embora nenhuma lei o proíba – é perigoso, porque bandido é o que não falta, mas não é ilegal – pode prender o afortunado, porque alguma deve ter aprontado.

Tudo isso pode estar errado, mas é fácil de entender: já vimos este filme muitas vezes, e no fim sempre roubam a bilheteria. O que é difícil entender é a cega confiança em delação premiada. O sujeito está preso, sujeito a toda sorte de constrangimentos, sua família é constantemente ameaçada daquilo a que chamam de esculacho, informações são vazadas todos os dias, a conta-gotas, para destruir sua reputação; e ele é informado de que, se não colaborar, estará sujeito a centenas de anos de prisão. Em compensação, se colaborar, passa do inferno ao céu de um dia para outro, com direito aos gozos dos bem-aventurados.

Este colunista não entende nada de Direito; bons amigos, da área, acham que tudo está bem. Mas não consegue ver direito a diferença entre as ameaças ao preso e sua família e as torturas físicas que todos condenamos. Não há, ao que se saiba, violência física; mas a violência moral contra o preso escolhido como candidato à delação premiada é permanente.

A justificativa da delação premiada não é, porém, o tema deste colunista – entre outras dezenas de motivos, por não entender nada de Direito. O que parece assustador é a confiança dos meios de comunicação nas informações obtidas por esse meio. Digamos que o prisioneiro seja informado de que, quanto melhor se comportar, quanto mais gente de determinadas listas apontar, mais benefícios terá com a delação premiada. Digamos que, para amarrar direitinho uma boa história de acusação, seja necessário incluir na trama alguém absolutamente insuspeito – alguém, por exemplo, como a Madre Tereza de Calcutá.

Voltemos ao delator (eta, palavra mais carregada de significados negativos!). Não podemos esperar dele que tenha a moral ilibada; ou não teria participado das manobras que agora denuncia. Também não podemos esperar que esteja absolutamente tranquilo, imune a eventuais pressões e ameaças à senhora sua mãe, à senhora sua esposa, a seus filhos e outros parentes. Não é lógico que resista: se quiserem que delate São Francisco de Assis, ele o fará. Ou não, como diria Caetano Veloso. E como é que os meios de comunicação irão distinguir a falsa delação da delação verdadeira? Investigando, ouvindo gente, tentando entender a papelada. Mas o que se vê, hoje em dia, é que não há jornalistas investigando o caso do “petrolão”: há repórteres, ótimos repórteres, usando seus bons contatos para obter, das autoridades, os vazamentos mais saborosos.

Laudos? OK, os laudos são importantes. Mas já houve laudos que apontaram problemas em próstatas de mulheres, lembra? Um repórter, grande amigo deste colunista, descobriu que seu índice de PSA, importante indicador de câncer na próstata, estava altíssimo. Seu irmão, médico, desconfiou, e mandou refazer o exame. O PSA estava normal. Foram ao laboratório do primeiro exame, um grande e bem reputado laboratório, e descobriram que lhe tinham entregue um laudo errado. E o tempo de terror que passou entre a descoberta do índice do primeiro laboratório e o índice normal do segundo laboratório? Não há maneira de compensar esse tipo de falha.

Este colunista viu laudos diversos no caso PC Farias, contraditórios, mas todos atestados por profissionais reconhecidos.

Voltemos ao tema original.

1. Um cidadão submetido às pressões habituais para que se transforme num delator premiado é digno de confiança? Quem garante que o que diz é verdade?

2. Considerando-se que o prisioneiro está nas mãos dos acusadores, quem garante que se comportarão como bons meninos, incapazes de tentar influir nas narrativas do delator?

Só há uma maneira de a imprensa lidar com esse tipo de caso: da mesma maneira que o irmão médico do repórter com PSA alto. Buscar confirmação em outra fonte, estudar profundamente o caso, envolver-se na pesquisa, duvidar dos presentes informativos que recebe. E lembrar-se de que a função do jornalista não é confiar em ninguém, muito menos em autoridades. A função do jornalista é desconfiar sempre – e mais desconfiar quanto mais poderosa for a fonte.


Faltou combinar com os russos


As urnas trouxeram más notícias para os institutos de pesquisa no domingo passado (5), quando parte das previsões eleitorais aferidas na véspera ou até na boca de urna foram atropeladas pela apuração.

As divergências entre previsão e apuração afetaram a credibilidade das pesquisas e levaram junto a cobertura dos jornais, amplamente escorada nos levantamentos --nunca as pesquisas eleitorais foram tão predominantes como neste ano.

Além delas havia basicamente mais dois ingredientes: trocas de acusações entre candidatos e denúncias de corrupção. O primeiro é o prato-feito fácil de todas as campanhas eleitorais, aquecido pela polarização e pelo micro-ondas insano de blogs e redes sociais.

No segundo, o protagonismo é do Ministério Público Federal, e os jornais ficaram no papel de publicar títulos e manchetes quase sempre construídas com um fio de notícia, em vazamentos feitos a conta-gotas por gente envolvida na investigação. O lide das reportagens trazia dois dedos de novidade, e o restante do texto era contexto e memória do que já havia sido publicado.

Nesse cenário desanimador, o infortúnio ajudou a pauta, e a adversidade que jogou Marina Silva na disputa garantiu uma montanha-russa que aumentou o trabalho dos institutos e facilitou o das Redações. Em 44 dias, a Folha deu oito manchetes para o Datafolha e uma para o Ibope, fora os títulos menores.

Pelo predomínio e pela influência das pesquisas no noticiário --e nos votos--, era obrigatório que o jornal fizesse uma avaliação consistente das divergências entre urnas e pesquisas, abordando os casos um a um e tentando fornecer explicações claras para não dar margem a desconfianças sobre manipulação.

Não foi o que aconteceu. A reportagem publicada na terça (7) soou como discurso chapa-branca, com título anódino (“Institutos de pesquisa sofrem críticas”) e linha-fina que dizia que as diferenças haviam gerado reclamações de políticos. Não foram só eles, a grita foi geral. Não foram só reclamações, foi incompreensão e desejo de entender.

Observei a inconsistência na crítica interna, ponderando que jornal deveria ter procurado outros especialistas, para ouvir opiniões independentes. Deveria ter aprofundado a discussão sobre as metodologias adotadas e seus limites.

A Secretaria de Redação acha que minha crítica está errada, porque parte do pressuposto de que os números da apuração precisam ser iguais aos da pesquisa e argumenta: “Quando o resultado da urna é igual ao da pesquisa divulgada na véspera, não é acerto do instituto. É apenas indício de que não houve transferência relevante de votos no sábado e no domingo, quando as pessoas mais falam de eleição”.

Bom, o jornal costuma celebrar o acerto quando os números coincidem. Deveria parar de fazê-lo. Depois, o problema não é do pressuposto, e sim do tratamento conferido a dados que deveriam ser extensivamente relativizados.

Conversei com Mauro Paulino e Márcia Cavallari, responsáveis pelos dois principais institutos de pesquisa, que enfatizaram as condicionantes das pesquisas. Paulino me informou, por exemplo, que dois terços das entrevistas do Datafolha foram feitos na sexta e um terço na manhã de sábado. Ele diz que havia um movimento de mudança de voto iniciado com o debate da “TV Globo” (em que Marina Silva foi mal) e intensificado ao longo do fim de semana pelas pesquisas de sábado, que deram o tucano em ascensão. O índice foi mudando.

A explicação faz sentido, mas nenhuma dessas ressalvas era contemplada na reportagem do domingo nem nas explicações de terça. No dia da eleição, havia uma longa análise do Datafolha, mas esses aspectos não eram mencionados.

Houve outras diferenças até mais gritantes que a da disputa presidencial, mas não é papel da ombudsman avaliar o desempenho dos institutos de pesquisas. É do jornal, que faz desses levantamentos a peça de resistência de seu noticiário.

A Secretaria de Redação afirma que a cobertura da Folha é cuidadosa e não trata pesquisa como tentativa de previsão do resultado das urnas. Se é essa a percepção, é bom acender a luz amarela, porque os russos não estão entendendo.

***
Vera Guimarães Martins é ombudsman da Folha de S. Paulo


sábado, 11 de outubro de 2014

WandNews - 59ª edição


E é chegada a edição de número 59 da sua WandNews, a coluninha que vem recheada com os absurdos mais sensacionais da semana.

Hoje temos a dignidade médica como escudo do chorume, a revista VEJA trocando “Guerra e Paz” por “Walt Disney”, a retumbante ignorância da revolta bandeirante contra nordestinos, e um Wando Responde ao separatista.


CHORUMINHO

Muitos comentaristas gostam de dizer que minha intenção é dividir o Brasil entre brancos e negros, pobres e ricos, norte e sul. É como se vivêssemos em plena igualdade de condições, sem conflitos de qualquer tipo, numa harmonia social de fazer inveja a qualquer país escandinavo. Hoje vamos dialogar com um chorumito que mostra que a realidade é bastante diferente.

Uma comunidade de quase 100.000 médicos e estudantes de medicina no Facebook foi alvo de uma reportagem do IG, que mostrou o peculiar ativismo político de alguns doutores brasileiros. O grupo não poderia ter um nome mais adequado: 


E é com toda essa dignidade que alguns integrantes têm destilado ódio contra quem não escolheu o mesmo candidato da maioria da classe médica. Segundo a reportagem, os militantes-doutores "pregam ‘castrações químicas’ contra nordestinos, profissionais com menor nível hierárquico, como recepcionistas de consultório e enfermeiras, e propõe um ‘holocausto’ entre os eleitores da petista"

Quanta dignidade! Médicos pisoteiam o Juramento de Hipócrates em público e propõem métodos nazistas para impedir a proliferação daqueles que optaram por um outro projeto político.

Uns confessam fazer campanha com pacientes dentro do consultório, outros dizem colocar ”a recepcionista no lugar dela” ameaçando com demissão caso Dilma ganhe.

Algumas frases revelam o tamanho da sensibilidade social desses médicos:

Um verdadeiro pot-pourri de chorumes encharcados de ódios contra quem não compartilha do mesmo nível hierárquico desses deuses do Olimpo. Sem muito o que dizer diante desse holocausto de dignidade, encerro a seção mais nobre dessa coluna com um trecho do Juramento de Hipócrates:



BEIJO NO CORAÇÃO

Em 1983, dois cientistas alemães da Universidade de Hamburgo revolucionaram o mundo da ciência. Uma fusão entre células de um boi e células de um tomate criou o “boimate”, o “fruto da carne”.

Essa notícia era uma brincadeira de 1º de abril da revista New Scientist, mas VEJA levou muito a sério. Além de criar um diagrama explicando o processo, a revista entrevistou um biólogo pra comentar a anedota com ares científicos. 

O beijo no coração não tinha como não ser pra revista, que novamente ficou confusa e protagonizou mais um capítulo da série “boimate”. 

Na última sexta, em entrevista dada a Globo depois do debate presidencial, Eduardo Jorge se saiu assim quando perguntado sobre o uso da maconha:

" (…) prefiro ler Tolstói, Romain Rolland, observar pássaros, brincar com meu neto, jogar futebol. Tenha paciência!"

Mas a VEJA entendeu:

"Prefiro assistir a Toy Story com meu neto ou jogar futebol”

Além da edição magistral das falas do candidato, a revista trocou o nome do escritor russo por o de um desenho animado da Disney. 

Se cientistas alemães pudessem fundir células de Tolstói com células de Buzz Lightyear, o personagem de Toy Story, talvez conseguiríamos criar esse incrível personagem:



IMAGEM WANDALIZADA

Mesmo com tantos motivos pra criticar o governo e sua candidata, a revolta contra os eleitores mais pobres parece ser mesmo a tática preferida de alguns militantes opositores.

Se você acha que os médicos esvaziaram os reservatórios de chorume, prepare-se para ler um texto vindo diretamente das profudenzas do volume morto, O manifesto anti-nordeste foi publicado na Revista Actual, que circula gratuitamente pelo interior de São Paulo. O título da coluna é “DESESPERO”:


O colunista Anderson Magalhaes propõe uma estratégia terrorista pra dificultar a participação dos pobres na festa da democracia. A coluna começa até que bem tranquila:

"Ainda tem salvação!!! Nesta eleição, diga não ao povão e faça com que a Dilma e sua corja perca seus votos na última hora”

Até aí, nada tão absurdo perto das declarações feitas no “Dignidade Médica”. Preste atenção apenas no erro de concordância em negrito, ele lhe será útil daqui a pouco.

"Vamos fechar as bocas de urna e as bocas de fumo, trancar as nossas ‘secretárias do lar’ em casa, interditar as casas de forró e proibir os porteiros de saírem dos prédios. Vamos paralisar todas as linhas de trem e ônibus, tirar a tv aberta do ar e obrigar todos assinarem pay per view. Subornar todos os que tenham ajuda de custo para o supermercado. Cancelar os vôos vindos do Nordeste e fazer sanções econômicas à Bahia enquanto Carlinhos Brown não prometer voto de silêncio … Ate la, Salvador e adjacências vão viver apenas do que produzem: dendê, cocada e Luiz Caldas"

A coisa alcançou um nível tão chorumesco, que chego até imaginar que o colunista seja um petralha infiltrado na revista pra difamar a oposição.

Mas tudo que está ruim ainda pode piorar:

Alagoas, Piaui e Maranhão ficariam de fora do cenário eleitoral por falta de quorum alfabetizado. E, para ter seu voto validado, todos terão de formular uma frase inteira sem erros de concordância e com todos os plurais - a regra vale para Goias e Tocantins, que politicamente pertencem a região Norte. Será que da certo?

Numa democracia isso não dá certo, não, querido. Sua proposta é o mais puro creme de chorume fascista. E, nesse mundo idealizado, está claro que sua carreira de carrasco gramatical seria um fracasso


WANDO RESPONDE

No post "Fernando Henrique o preconceito contra o nordestino", em que escrevo sobre a desqualificação histórica do nordestino em períodos eleitorais, um bandeirante confuso apareceu pra dar um recado aos leitores:


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