quarta-feira, 25 de setembro de 2013

rola o rock - e umas lágrimas também

Sim. Não há verdade maior.
The Boss é gente como a gente.
E, sendo ele quem é, manter-se assim,
a meu ver, é o maior exemplo do que é ser grande de verdade.
Divo. Naturalmente.

Portanto - e para todos - , convoco-vos para uma leitura lá no Pirata Zine sobre ele. The Boss. Nosso Bruce:

Pirata Zine

terça-feira, 17 de setembro de 2013

O inominável cerco a Minerva

Por Alberto Dines em 17/09/2013 na edição 764
Observatório da Imprensa

Por fastio, impaciência, instinto novidadeiro ou mero oportunismo, nossa imprensa gostaria de encerrar imediatamente a AP 470, o Caso do Mensalão, de preferência colocando alguns culpados no xilindró, ainda que por dias. A imprensa cria tensões que não consegue manter, sobretudo quando não dispõe de suficientes recursos, expertise ou maturidade.

É preocupante o desapontamento de grande parte da veiculação que se ocupa de política com o empate de 5 a 5 na decisão do Supremo Tribunal Federal sobre os embargos infringentes, mesmo que o voto de Minerva seja proferido por um magistrado louvado pela temperança e prudência. A deusa da sabedoria só é cultuada quando serve aos impulsivos.

A pressão exercida pela mídia sobre o decano dos ministros, Celso de Mello, para evitar o recomeço do julgamento, além de inédita e descabida revela encarniçamento e ferocidade inaceitáveis numa sociedade minimamente civilizada.

O ministro não fez suspense, ofereceu todas as pistas para evitar surpresas, revelou inclusive que o seu voto estava pronto desde a sessão em que ocorreu o empate (quinta-feira, 12/9). Permitiu igualmente que o colega Ricardo Lewandowski citasse em plenário uma opção anterior em favor dos embargos infringentes.

Estímulo à insensatez

Poucos deram atenção à condenação dos réus do mensalão pelo ministro-desempatador logo no início dos trabalhos, em 2012. Foi uma das mais arrasadoras e veementes manifestações em plenário. E mesmo assim jornais e jornalistas não souberam respeitar o seu livre-arbítrio ou o que antigamente se designava como liberdade espiritual.

Os valores simplistas e primários destilados pelos telefolhetins na mentalidade brasileira não admitem que um magistrado convencido da culpabilidade dos réus lhes ofereça todas as oportunidades para se defender.

O incessante e pertinaz resmungar da mídia chegou ao quintal – as redes sociais –, que logo começaram a articular manifestações na hora do julgamento diante da sede da suprema corte, na Praça dos Três Poderes.

A imprensa é absolutamente livre para convocar cruzadas, opinar, reclamar, cobrar e denunciar órgãos públicos, autoridades, empresas ou cidadãos. Mas uma imprensa que não sabe respeitar a consciência de um magistrado favorece a inconsciência e a insensatez.

Favorece os equívocos.

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segunda-feira, 9 de setembro de 2013

40 anos depois, o Chile canta Victor Jara




Passaram-se quarenta anos. Duas novas gerações de chilenos sequer eram nascidas quando o dia se fez noite na manhã do 11 de setembro de 1973 e a ditadura se instalou no país por 17 anos. Mas, na próxima quarta-feira, 40º aniversário do golpe militar que desapareceu com 2.300 opositores e torturou perto de 40 mil, o Chile vai relembrar.

A cada efeméride tem sido assim. E nas datas redondas como a deste ano o passado se aviva mais.

Em Deltona, cidade situada ao sul de Daytona Beach, no estado da Flórida, um vendedor de automóveis americano de 64 anos preferiria permanecer à margem dessas lembranças. Ele se chama Pedro Pablo Barrientos, tinha 24 anos e era tenente do Exército chileno em 1973. Mudou-se em 1989 para os Estados Unidos, onde tratou de adquirir nova cidadania. Esta semana, a família do músico Victor Jara entrou com um processo contra ele numa corte distrital de Jacksonville. Acusa-o de ter torturado Jara pessoalmente e sido o autor do primeiro dos 44 tiros que vararam o corpo do cantor popular depois de preso.

A ação foi encaminhada em nome da viúva e de suas duas filhas pelo Centro de Justiça e Responsabilidade, de São Francisco, baseada na Lei de Proteção a Vítimas de Torturas. Sancionada em 1991, essa legislação federal permite que cidadãos residentes nos Estados Unidos sejam processados em território americano quando suspeitos de violações de direitos humanos em outros países.

Pela primeira vez este que é um dos episódios mais encruados do 11 de setembro chileno parece ter uma real chance de ser esclarecido.

Na semana inicial do golpe todos os boatos eram críveis, por inverificáveis. A nova ordem militar de Augusto Pinochet havia cortado boa parte das linhas telefônicas na capital, e o toque de recolher era draconiano, impedindo que uns soubessem com certeza da sorte dos outros.

No caso de Victor Jara, soube-se apenas que fora preso junto com uma centena de estudantes e professores da Universidade Técnica Estadual e que, cinco dias depois, a bailarina inglesa Joan Turner Jara fizera o reconhecimento do corpo do marido no necrotério municipal. Sepultou-o sozinha, no Cemitério Geral de Santiago, com a ajuda do motorista do rabecão.

O venerado Jara era a voz do Chile socialista de Salvador Allende. Cancioneiro e poeta, compositor popular, professor e ativista político, além de dramaturgo e apaixonado pelas raízes folclóricas da Nueva Canción Chilena, era um letrista engajado e autor de músicas que arrebatavam a classe operária (“Te Recuerda Amanda”).

E esta voz tinha sido eliminada. As primeiras falsas certezas asseguravam que ele fora levado para o Estádio Nacional onde lhe teriam decepado as mãos de músico antes de executá-lo, como ocorrera com Che Guevara após sua captura na Bolívia — só que Guevara já estava morto ao ser mutilado.

Na verdade, Victor Jara sequer conseguiu chegar ao Estádio Nacional. Morreu numa arena menor. No centro de detenção improvisado do Estádio Chile foi logo identificado por um oficial e teve uma primeira avalanche de chutes e coronhadas à vista de todos. Com várias costelas quebradas e um olho inutilizado, permaneceu imóvel 24 horas ao alcance da bota militar, sem alimento ou água. Naquele mesmo estádio, quatro anos antes, fora aclamado vencedor do primeiro Festival da Nueva Canción Chilena com “Oração de um trabalhador”.

No domingo dia 16 circulara a notícia de que alguns detentos seriam libertados, o que levou os demais a escrever mensagens para esposas, filhos, pais, amigos. Victor Jara foi um dos mais ansiosos. Só parou ao ser arrastado por dois soldados até uma saleta de transmissão do estádio. Mas conseguiu deixar para trás as duas folhas de papel que escreveu, rapidamente escondidas pelo advogado Boris Navia.

Não eram cartas para a mulher nem para as filhas. Era um poema. Não tinha título. Descrevia o ambiente à sua volta. Foi-lhe dado, post mortem, o título “Estadio Chile”.

Os detentos fizeram duas cópias, entregues a um estudante e um médico que seriam libertados. Um deles foi revistado. Navia, que escondera o manuscrito original numa fenda aberta na sola do sapato, foi levado para o centro de torturas do velódromo. Mas a terceira cópia alçou voo e correu mundo.

A última visão que Navia e seus companheiros tiveram de Jara foi do seu espancamento a golpes de fuzil na saleta do estádio. No final da mesma tarde, cruzaram o saguão principal para serem transferidos para o Estádio Nacional. Ali se depararam com cerca de 50 cadáveres espalhados pelo chão. Entre eles, o de Victor Jara.

Foi somente em 2009 que a investigação conduzida pelo juiz Miguel Vásquez conseguiu chegar ao nome do homem que teria apertado o gatilho do primeiro tiro contra a nuca do prisioneiro. Depois, o oficial teria ordenado aos soldados presentes que prosseguissem com a fuzilaria. Embora Pedro Barrientos negue jamais ter sequer cruzado com o músico, a família Jara espera que o Supremo Tribunal chileno encaminhe o aguardado pedido de extradição aos Estados Unidos.

Se Barrientos algum dia retornar, talvez se pergunte para que serviu tanta brutalidade. O Estádio Chile foi rebatizado de Estádio Victor Jara. As fitas máster das gravações do músico que a ditadura se empenhou em destruir foram laboriosamente substituídas por outras versões. Brotaram remixagens, remasterizações, foi lançada uma caixa com 9 CDs, republicada uma antologia com seus poemas. Bandas jovens o interpretam como um dos seus, companheiros velhos o cantam como no passado. Hoje, Victor Jara teria 81 anos.
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Estádio Chile

Somos cinco mil
nesta pequena parte da cidade.

Somos cinco mil.
Quantos seremos no total,
nas cidades e em todo o país?
Somente aqui, dez mil mãos que semeiam
e fazem andar as fábricas.

Quanta humanidade
com fome, frio, pânico, dor,
pressão moral, terror e loucura!

Seis de nós se perderam
no espaço das estrelas.

Um morto, um espancado como jamais imaginei
que se pudesse espancar um ser humano.

Os outros quatro quiseram livrar-se de todos os temores
um saltando no vazio,
outro batendo a cabeça contra o muro,
mas todos com o olhar fixo da morte.

Que espanto causa o rosto do fascismo!

Colocam em prática seus planos com precisão arteira,
sem que nada lhes importe.

O sangue, para eles, são medalhas.

A matança é ato de heroísmo.

É este o mundo que criaste, meu Deus?
Para isto os teus sete dias de assombro e trabalho?

Nestas quatro muralhas só existe um número
que não cresce,
que lentamente quererá mais morte.

Mas prontamente me golpeia a consciência
e vejo esta maré sem pulsar,
mas com o pulsar das máquinas
e os militares mostrando seu rosto de parteira,
cheio de doçura.

E o México, Cuba e o mundo?

Que gritem esta ignomínia!
Somos dez mil mãos a menos
que não produzem.

Quantos somos em toda a pátria?

O sangue do companheiro Presidente
golpeia mais forte que bombas e metralhas.

Assim golpeará nosso punho novamente.

Como me sai mal o canto
quando tenho que cantar o espanto!

Espanto como o que vivo
como o que morro, espanto.

De ver-me entre tantos e tantos
momentos do infinito
em que o silêncio e o grito
são as metas deste canto.

O que vejo nunca vi,
o que tenho sentido e o que sinto
fará brotar o momento…”

Victor Jara

domingo, 8 de setembro de 2013

O Cairo, Damasco e a hipocrisia Norte-Americana


John Kerry anunciou esta semana, na Casa Branca, que os Estados Unidos têm “provas irrefutáveis” do uso de armas químicas pelo Governo Sírio. Traços de gás Sarin teriam sido encontrados no sangue e nos cabelos de voluntários que participaram do resgate de civis atingidos logo após um suposto ataque do governo contra rebeldes no dia 21 de um agosto.
Já vimos esse filme. O uso de armas de destruição em massa pelo governo de Saddam Hussein também foi apresentado de forma inconteste e irrefutável pelo governo norte-americano.

Em nome dessa “certeza”, o Iraque foi bombardeado e invadido, suas defesas foram destruídas por corajosos jogadores de vídeo-game instalados a bordo de aviões e porta-aviões, sem um único combate corpo a corpo, e morreram milhares de crianças e civis iraquianos.

E até hoje nem uma única arma de destruição em massa foi encontrada - apesar de milhares de soldados norte-americanos terem também sido mortos ou feridos, tentando ocupar o território virtualmente “conquistado”, de onde os EUA já se retiraram, depois de centenas de bilhões de dólares em gastos.

Na época, o inspetor da ONU Hans Blix – que deu uma entrevista esta semana ao jornal britânico The Guardian dizendo que não há justificativa para um ataque ocidental à Síria – negou que houvesse armas de destruição em massa no Iraque e teve sua missão em Bagdá interrompida pelos bombardeios norte-americanos.

Os EUA costumam usar, sem nenhum escrúpulo, seus eventuais aliados, e depois livrar-se deles sem nenhuma consideração moral ou ética.

Foi assim, quando se aliaram a Saddam armando-o na guerra contra o Irã, para depois destruir o seu regime sob um pretexto falso, e persegui-lo até a execução de sua sentença de morte por enforcamento, no dia 30 de dezembro de 2006 em Bagdá.

Foi assim que fizeram com Osama Bin-Laden – com cuja família os Bush tinham negócios - depois de apoiá-lo na guerrilha contra os russos no Afeganistão, até cercá-lo e abatê-lo desarmado, na frente de sua família, no dia 2 de maio de 2011, em Abbotabad, no Paquistão.
E foi assim que aconteceu também com Muamar Kadhaffi, capturado de mãos nuas e espancado brutalmente até a morte, em 20 de outubro do mesmo ano, em Sirte, na Líbia, a ponto de ter seu corpo transformado em um hambúrguer diante das câmeras de seus verdugos, armados pelos mesmos países ocidentais que antes o recebiam e apoiavam. 

Agora, a história se repete. Os EUA e as grandes redes de meios de comunicação do ocidente procuram desqualificar a denúncia da inspetora da ONU Carla Del Ponte, de que teria levantado evidências, na Síria, de que gás Sarin estaria, na verdade, sendo usado pelos “rebeldes”, apoiados pelo Ocidente, com a intenção de culpar o governo de Bashar Al Assad pelo seu uso.
Ao invadir outros países sem provas e sem autorização das Nações Unidas, os Estados Unidos agem como os nazistas, que deram início à Segunda Guerra Mundial com uma farsa que completou há três dias exatos 74 anos.

No dia 31 de agosto de 1939 a SS nazista simulou a invasão de uma rádio de língua alemã, na cidadezinha fronteiriça de Gleiwitz, por tropas do exército polonês, para divulgar uma falsa mensagem conclamando a população da Silésia a se revoltar contra Hitler.

Para dar o máximo de verossimilhança aos fatos, os oficiais de Himmler, disfarçados de soldados poloneses, levaram com eles, também vestidos com os mesmos uniformes, 12 prisioneiros de campos de extermínio, que foram abatidos no local, ao final da operação, para que seus cadáveres servissem de prova da suposta ”invasão” polonesa. No dia seguinte, 1 de setembro de 1939, as tropas de Hitler, já agrupadas na fronteira, invadiriam a Polônia, dando início à Segunda Guerra Mundial.

Ressabiado, talvez, pela participação – sem provas que a justificassem – da Grã Bretanha na Guerra do Iraque, o Parlamento inglês negou na última semana ao Primeiro-Ministro James Cameron autorização para participar do ataque à Síria.

O mundo espera que o Congresso dos EUA, obedecendo à opinião da maioria da população norte-americana, tome atitude semelhante. E que Obama recue, como pode acabar fazendo, de seu plano contra a Siria, estabelecido, como afirmou John Kerry, em sua entrevista na Casa Branca, para “mandar uma firme mensagem” a outros países, como a Coréia do Norte e o Irã. 

Não se pode aceitar que a mesma nação que apóia e financia, com bilhões de dólares, o exército golpista egípcio - para que seus soldados massacrem a população civil nas ruas do Cairo - ataque ou bombardeie Damasco, sob pretexto de defender a liberdade.


terça-feira, 3 de setembro de 2013

A autocrítica como autodefesa

Por Sylvia Debossan Moretzsohn
Edição 762


Não, não foi um delírio, nem obra de algum hacker brincalhão. No fim da tarde de 31/8, em sua página na internet, O Globo anunciava o lançamento de seu Projeto Memória e destacava: “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro”. Uma autocrítica inédita, previsivelmente louvada com as palavras protocolares de praxe pelos políticos e demais fontes chamadas a se pronunciar para “repercutir” a notícia, que ocupou página inteira na edição dominical (1/9) impressa.

O gesto, entretanto, está muito longe da nobreza pretendida. A começar pelo próprio texto de apresentação, que abre com um dos slogans mais enfáticos nas manifestações dos últimos meses: “A verdade é dura, a Globo apoiou a ditadura”. O redator assume a dureza dessa verdade, mas argumenta que, “há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro”. Não justifica o motivo para tanta demora em expor esse reconhecimento, uma lerdeza incompatível com a agilidade requerida para a atividade jornalística: afirma apenas que o lançamento do “Memória O Globo” – um projeto dedicado a “resgatar e preservar a história do jornal” – seria uma boa oportunidade para “tornar pública essa avaliação interna”. A coincidência com o recrudescimento das críticas à empresa seria apenas isso: uma coincidência, aliás muito bem-vinda, uma resposta ao “clamor das ruas”.

O texto que se segue é desses exemplos de contorcionismo verbal que fazem a alegria dos linguistas e dos que se divertem com as agressões à lógica. O apoio ao golpe se justificaria em nome da democracia – afinal, no contexto internacional da Guerra Fria, estávamos diante da ameaça de radicalização à esquerda do governo constitucional de João Goulart, que resultaria numa ditadura proletária; para prevenir esse perigo iminente, os militares intervieram, prometendo eleições para muito breve – e os inúmeros exemplos dessa História sempre citada não foram suficientes para levantar suspeitas sobre a distância entre as intenções declaradas e a prática da repressão crescente para a consolidação dos golpistas no poder; o apoio do jornal – e das Organizações Globo, de modo geral – permaneceu até o fim do regime, embora sempre com o alerta sobre a necessidade do retorno, “no menor prazo possível”, à “normalidade democrática”. Finalmente, “os homens e as instituições que viveram 1964 são, há muito, História”; porém, agora, à luz dessa mesma História, é forçoso reconhecer que o apoio ao golpe foi um erro.

O recurso à História, nesses termos, já virou um clichê para quem se vale de alusões pretensamente sofisticadas para não dizer nada: a História aparece então como um álibi indiscutível, porque não se pode mudar o que aconteceu. E, como tudo o que aconteceu foi feito com a melhor das intenções, estamos todos absolvidos. Sigamos em frente, com a consciência tranquila, na certeza de que sempre será possível nova autocrítica daqui a algumas décadas, sem que nossas ações cotidianas sejam objeto de questionamento no calor da hora – porque, à luz do momento, é o que nos parece adequado fazer.

Envergonhado, vergonhoso

De fato, O Globo – porque “a Globo” ainda não existia – apoiou a ditadura como todos os outros jornais, à exceção da Ultima Hora, que era legalista e foi empastelada. Uma significativa parcela da população também apoiou o golpe, marchando com a família e acendendo velas na janela para espantar o fantasma do comunismo, e surfou alegremente a onda do milagre econômico e sua promessa do Fusquinha na garagem.

O que distingue as Organizações Globo de seus concorrentes é sua perseverança no apoio ao regime, até o último minuto, ignorando o “clamor das ruas” a que “governos e instituições têm, de alguma forma, que responder”: a surdez diante da monumental campanha pelas eleições diretas – aliás, mais um “erro” que o jornal vem, tardiamente, reconhecer – é talvez o melhor exemplo desse descompasso intencional.

Aliás, é interessante ler o editorial citado nessa autocrítica, no qual Roberto Marinho faz o seu “julgamento da revolução”, vinte anos depois (em 7/10/1984, ver aqui): era, na verdade, um recado à linha dura recalcitrante, às vésperas da sucessão presidencial, já enterrada a hipótese de eleição direta. O “julgamento” é absolutamente favorável aos governos militares e em momento algum se menciona a palavra “tortura”.

O mea-culpaé envergonhado porque pisa em ovos e busca estabelecer para o jornal uma trajetória coerente com os princípios democráticos, mesmo quando esses princípios foram agredidos violentamente desde que os tanques impuseram o regime de exceção. E é vergonhoso porque omite os interesses das Organizações Globo nessa festejada nova ordem, expressos nos acordos que garantiram a formação do atual império de comunicações, e para os quais, por todos, o livro A história secreta da Rede Globo, de Daniel Herz, oferece sólida documentação.

De passagem, o texto menciona o empenho de Roberto Marinho contra a perseguição a jornalistas de esquerda, vários dos quais trabalhavam em suas empresas durante a ditadura. É verdade, mas faltou dizer como alguns desses jornalistas atuavam: em cargos de chefia, sabiam as regras do jogo e estavam, melhor que ninguém, alertas para as táticas que seus parceiros de ideologia pudessem utilizar para driblar a censura. Perfeitos cães de guarda, não dos interesses da sociedade – como querem os liberais da teoria do jornalismo –, mas do patrão.

Recontando a história

O tom dessa autocrítica equivale ao dos demais textos incluídos na seção “erros e acusações falsas”, nos quais o jornal ora se exime de responsabilidade sobre denúncias contra si – como a do caso Proconsult, a acusação de tentativa de fraude contra a eleição de Leonel Brizola para o governo do Rio de Janeiro, em 1982, e a da participação do BNDES na renegociação das dívidas da Globopar, em 2005 –, ora tenta justificar seus “erros” em momentos cruciais na história recente do país, como na campanha das Diretas, em 1984, e no próprio apoio ao golpe que resultou na longa ditadura.

Salvo nesse último caso, que constitui a novidade do momento, trata-se de textos semelhantes aos publicados no site Memória Globo, que a Rede Globo lançou em 2008 como parte de um projeto para contar sua trajetória, desenvolvido desde 1999.

Diferentemente do que ocorre com O Globo, que reproduz as páginas do jornal – embora sempre seja possível excluir desse arquivo a edição de segundos e terceiros clichês, eventualmente muito reveladores –, sobre o material televisivo nunca será possível ter certeza se os trechos disponibilizados são de reportagens que efetivamente foram ao ar ou de cenas gravadas mas não editadas. Eugênio Bucci, a propósito, mencionava esse risco num de seus artigos no livro Videologias, há quase dez anos.

As desculpas no caso das Diretas

Ainda assim, é interessante visitar o site da Rede Globo para verificar o que se diz a respeito do “erro” na cobertura das Diretas, um movimento que começou com manifestações de pequeno porte. Naquele momento – e a frase é autoexplicativa quanto às intenções de controlar os fatos –, “o presidente das Organizações Globo temia que uma ampla cobertura da televisão pudesse se tornar fator de inquietação nacional”. Esse controle se manteve até o fim, mesmo diante da magnitude dos comícios, a começar pelo primeiro grande evento da campanha, em 25 de janeiro de 1984, na Praça da Sé, finalmente veiculado em rede nacional.

Candidamente, o texto desse mea-culpa também envergonhado diz que “a Globo sofreu a acusação de mentir ao telespectador dizendo que o comício era apenas uma festa em comemoração aos 430 anos da cidade de São Paulo”, e aponta a origem do que chama de “confusão”: a chamada da matéria, que “parecia” – só parecia – “não levar em consideração a dimensão política do evento”, ao anunciar: “Festa em São Paulo. A cidade comemorou seus 430 anos com mais de 500 solenidades. A maior foi um comício na Praça da Sé”. Mas, “em seguida, a reportagem de Ernesto Paglia relatou com todas as letras o seu objetivo: pedir eleições diretas para presidente da República”.

A reprodução do vídeo mostra que a frase de fato está lá, porém perdida no meio de uma série de informações irrelevantes. O próprio depoimento do repórter, disponível ao pé da página, informa sobre os cuidados para mencionar o objetivo daquela “festa”: não só a prudência em relação ao controle exercido pela direção da empresa, mas também a necessidade de se resguardar da fúria da população que atacava quem estivesse identificado com a Globo. Por isso, Paglia teve de se instalar no vigésimo andar de um prédio, “bem distante daquela turba enfurecida”, com uma lente que havia sido trazida do Rio para São Paulo, uma “lente brutal, de mil milímetros – ou seja, um metro de lente, com uma zoom movida a manivela (...), uns três ou quatro operadores para a mesma máquina”. E deixa claro que começou a reportagem com uma série de banalidades para finalmente falar nas diretas.

Isto é memória, para quem foi testemunha ocular da história ou para quem se dispuser a pesquisar. Para os demais, a história pode ser outra. Recentemente, a GloboNews veiculou uma reportagem especial sobre manifestações populares, na onda dos protestos que tomaram as ruas desde junho deste ano. E, no capítulo das Diretas, lá estava Ernesto Paglia com a frase isolada, sobre a imagem da multidão na Sé: “Milhares de pessoas vieram para o centro de são Paulo para, na Praça da Sé, se reunir num comício que pediu eleições diretas para presidente”.

Quem vê isso assim, e não viveu ou não sabe da história, pode até achar que a Globo cobriu o comício como deveria. E é assim que se recontam os fatos, atualizando a memória de modo que o passado se ajuste às conveniências do momento.

“Você me desobedeceu”

Também vale a pena visitar o site para verificar a versão oficial sobre o caso Proconsult, em que a empresa rejeita as acusações de cumplicidade no denunciado esquema de fraude na totalização dos votos e admite apenas um “erro” de estratégia, que submeteu a TV ao ritmo muito mais lento do jornal impresso e privilegiou uma contabilidade minuciosa da votação para todos os cargos eletivos, e não para o que seria jornalisticamente mais importante – a eleição majoritária, para governador, centro de toda a excitação popular –, o que tornava absurdamente morosa a divulgação dos resultados parciais e favorecia o tal clima de inquietação que a própria Globo, como se viu, dizia querer evitar.

Quem quiser acreditar nessa versão pode ficar à vontade. Mas há inúmeros outros depoimentos que a contestam. Um deles, o do jornalista Luis Carlos Cabral, editor regional de jornalismo da Globo em 1982, que anos depois deu seu testemunho ao semanário O Nacional, já extinto:

“Vamos contar essa história de uma vez por todas. O papel da Rede Globo de Televisão no caso Proconsult, nas eleições de 82, era apenas o de preparar a opinião pública para o que ia acontecer: o roubo, por Moreira Franco, dos votos de Leonel Brizola. Aliás, dos votos do povo”.

Em seguida, apresenta os bastidores:

“Era lá [na sala de computação de O Globo] que as distorções aconteciam. O método correto de se computar as eleições do Rio é o seguinte: injetam-se dois votos da capital, um voto do interior e um voto da periferia. [Porém] Injetavam-se, digamos, dois votos do interior, onde Moreira tinha sabida maioria, nenhum voto da Baixada e um da capital”.

A desculpa oficial da empresa era de que havia problemas estruturais:

“O sistema havia sido mal montado. Tratava-se, enfim, de uma questão de incompetência. A desculpa é, logo se verá, esfarrapada. Se há alguma coisa competente no Brasil, esta é, reconheça-se, O Globo e a TV Globo. Roberto Marinho sabe fazer o que quer”.

Luis Carlos prossegue relatando as denúncias de fraude, como o roubo de urnas, que não puderam ir ao ar por ordens superiores, e o clima de revolta popular contra os jornalistas da Globo, diante da expectativa da vitória de Brizola e da discrepância entre os números apresentados pela emissora e os veiculados pelo Jornal do Brasil (o impresso e a rádio). Finalmente, o jornalista recebeu a autorização de um dos filhos de Roberto Marinho para injetar os votos em projeção correta.

Então o telefone tocou. Era a voz cavernosa do chefe:

“Você me desobedeceu. Eu disse que não era para projetar e você passou o dia inteiro projetando, dizendo que o Brizola vai ganhar. Você me desobedeceu”.

Não havia desobedecido, apenas a contraordem não lhe havia sido transmitida.

A disputa pela memória

O relato está reproduzido no livro Jornalistas pra quê?, que o Sindicato dos Jornalistas do Rio publicou em 1989. Seria muito oportuna a reedição dessa obra, que expõe uma série de casos de falta de ética e, em relação às Organizações Globo, cita um episódio muito revelador da maneira pela qual Roberto Marinho usava o poder, ainda que eventualmente não lograsse êxito: a tentativa de demitir o então ministro da Fazenda, Maílson da Nóbrega, em agosto de 1989, ditando ao telefone uma nota que citava inexistentes “fontes de Brasília” sobre a iminência da perda do cargo. Foi um golpe fracassado, motivado, depois se soube, pela oposição do ministro a interesses da Globo na área da telefonia móvel.

O mea-culpa relativo ao apoio ao golpe de 1964 está nesse contexto em que as Organizações Globo procuram estabelecer sua própria história. É um direito que lhes assiste e é uma iniciativa de alta relevância como fonte de análise.

Mas há dois complicadores nesse processo. O primeiro é que projetos de “memória” trazem embutidos um sentido de referencialidade enganador, porque a memória é sempre seletiva. O segundo é que a Globo, pretensamente “o” lugar de encontro de todos os brasileiros – “a gente se vê por aqui” –, é uma referência para o público. Fala direto a ele e reconta a própria história diariamente.

Outras versões estão disponíveis. Mas quem sabe disso?

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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007)