quinta-feira, 28 de junho de 2007

O pobre e a Literatura Brasileira

Este texto você pode encontar no blog Ração (Razão) das Letras, do Halem Souza (http://racaodasletras.blogspot.com/). Simplesmente maravilhosa a visão do professor/escritor Halem e sua reflexão sobre tema muito pouco abordado. É ler pra nunca mais deixar de visitar o Blog do professor.
Abraço forte!





Se procurarmos refletir sobre o enfoque dado à pobreza, dentro da Literatura Brasileira, encontraremos duas situações bem distintas: escritores(as) que sentiram a penúria como experiência real em suas vidas e autores(as) que, apesar de representá-la literariamente, nunca passaram por privações de natureza econômica. Não se trata aqui de julgar uns superiores ou mais "habilitados" do que outros para escrever sobre a pobreza; apenas registrar algumas observações sobre componentes dos dois "gupos".


Vale ressaltar que, num país como o Brasil, que não conseguiu erradicar o analfabetismo (meta já alcançada por seus vizinhos Argentina e Uruguai, de economia muito menos pujante) e cujo consumo per capita de livros gira em torno de 1,8 por ano (bem abaixo dos 7 livros/ano, mais uma vez, da Argentina), a Literatura é considerada uma arte elitizada, o que justificaria um possível "desinteresse" dos(as) escritores(as) em agregar (para usar um verbo da moda) à sua ficção um segmento de pessoas que sequer lê. Por outro lado, segundo dados do IBGE, 59,8% das famílias no país ganham até 5 salários mínimos* (ou seja, são pobres), o que praticamente "obrigaria" os (as) autores(as) a retratar essa classe social, sob pena de reduzir muito as possibilidades representativas e miméticas de sua ficção. É importante lembrar contudo que, de acordo com o recente estudo coordenado pelo Ipea, intitulado Gasto e consumo das famílias brasileiras contemporâneas (disponível em http://www.ipea.gov.br/), 90% das famílias das classes A e B têm mais de 10 livros em casa contra apenas 42% nas classes D e E**. Estes últimos dados poderiam servir para reforçar a idéia de que incluir personagens de baixa renda (ou sem renda alguma) nas obras de Literatura seria desnecessário já que boa parte dos brasileiros não compra livros; portanto, não haveria necessidade nenhuma de produzir identificação imediata e fiel entre a realidade social desses brasileiros e a matéria narrada.


Ainda assim, os humilhados e ofendidos (para usar título cunhado por Dostoievski) aparecem aqui e ali, em obras consideradas "maiores" ou "menores" nas nossas letras.


Os escritores ditos regionalistas incluíram a pobreza em seus romances muito mais como parte da "paisagem" humana ou como compromisso ideológico do que qualquer outra coisa. É o caso de José Lins do Rego e Raquel de Queiroz. Guimarães Rosa é visto muitas vezes como um dos que "deu voz" aos miseráveis do sertão. Mas não podemos esquecer que mesmo com seu profundo conhecimento in loco da vida dos habitantes das grotas, brenhas e veredas, Rosa é principalmente um revolúcionário e experimentador da linguagem (sua maior força enquanto artista) e não um "engajado"; além do mais, foi diplomata durante anos, tendo vivido, sem apertos, no Rio de Janeiro e em outros lugares do mundo.


Graciliano Ramos, que, apesar de nunca ter sido miserável, passou por maus bocados, foi um dos que deu a melhor solução para o problema da representação do pobre em sua ficção. Guardando a devida distância (basta lembrar que em Vidas Secas temos "quadros" narrativos, em que as personagens quase não falam), escreveu ele em Angústia***: "A literatura nos afastou [a ele, o narrador Luis da Silva, dos pobres]: o que sei deles foi visto nos livros. Comovo-me lendo os sofrimentos alheios, penso nas minhas misérias passadas, nas viagens pelas fazendas, no sono curto à beira das estradas ou nos bancos dos jardins. Mas a fome desapareceu, os tormentos são apenas recordações" [grifo meu]


Jorge Amado também conseguiu equacionar bem o "problema da pobreza" em seus livros mas, alvo de um patrulhamento de viés neocolonialista existente na crítica literária brasileira, durante certo tempo, foi deixado de lado. Precisamos relê-lo.


Esse mesmo patrulhamento é o que tentou reduzir o alcance da obra de Lima Barreto, para mim, dentro da nossa Literatura, a que melhor tratou da "questão do pobre", sendo ele próprio, um deles. Há livros ruins, é verdade (Clara dos Anjos), mas há obras grandiosas também (Recordações do escrivão Isaías Caminha). Por seu compromisso militante, Lima Barreto - que preferia o naturalista e explícito Aluísio Azevedo ao realista e finório Machado de Assis - foi rotulado como um "anti-esteta", acusado de ser panfletário e não um escritor autêntico, "acusação" comum que atinigiu outros autores, como Gianfrancesco Guarnieri e Plínio Marcos.

E se pensarmos mais contemporaneamente, então, veremos que as tentativas de ficcionalizar a pobreza, às vezes, são bem sucedidas, por exemplo, num Rubem Fonseca; mas no geral, soam pouco verossímeis, inclusive no próprio autor de Feliz Ano Novo. Falta o "olhar de dentro da coisa". João Antônio (Malagueta, Perus e Bacanaço e outros), Carolina Maria de Jesus (Quarto de despejo - este livro de difícil classificação), Ferréz (Capão Pecado) e Paulo Lins (Cidade de Deus) têm esse olhar, por exemplo.


Evidentemente, a relação entre Literatura e pobreza precisa ser mais bem aprofundada, algo que escapa às possibilidades de uma simples postagem de blog como essa. Mas o assunto é instigante. Vou estudar mais.


*dados da PNAD (Programa Nacional por Amostras de Domicílios) 1999
**O mesmo estudo revela que os 50% mais pobres respondem por apenas 11% dos livros vendidos no país, enquanto os 10% mais ricos compram 47% do mercado editorial.
***RAMOS, Graciliano. Angústia. 19 ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Record, 1978

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