quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Os segredos de uma prisioneira esquecida


Por Bolívar Torres
Caderno Prosa e Verso

Jornal O Globo, 12 de outubro, página 06

Assessora da Comissão da Verdade do Rio, a jornalista Denise Assis vive assombrada por interrogações, mistérios e lacunas. Desde maio deste ano, ela investiga, em uma sala do Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro, o destino de 148 desaparecidos ou mortos durante a ditadura militar. Uma rotina em que se equilibram as funções de historiador, detetive, guardião da memória, entre muitas outras responsabilidades.

O trabalho exige paciência e esmero, um mergulho nos arquivos confidenciais, registros de polícia — uma infinitude de fichas e listas que, ao serem cruzadas e associadas, abrem frestas para um dos períodos mais sombrios do país. Cada pasta empoeirada pode esconder uma pista. Um desfecho. Um consolo para as famílias daqueles que sumiram inexplicavelmente do radar da sociedade.

— Durmo e acordo pensando no destino destes procurados — conta Denise. — É uma preocupação constante, porque existe uma expectativa enorme da sociedade e, principalmente, dos familiares. A cada uma dessas pessoas corresponde um drama.

Trajetórias interrompidas e histórias mal contadas sempre moveram a carreira de Denise. Mas há uma, em especial, que nunca saiu da sua mira: trata-se do caso de Maurina Borges da Silveira, uma freira presa por “atividades subversivas”. O fato real rendeu a Denise uma série de reportagens publicadas no “Jornal do Brasil” em 2003. E serviu de inspiração para a protagonista fictícia de seu primeiro romance histórico, “Imaculada” (Topbooks), lançado no último dia 8, em uma rara pausa no seu trabalho para a Comissão da Verdade.

Em 1969, Maurina dirigia um orfanato de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo, quando foi avisada de que deveria esconder da polícia panfletos políticos e outros materiais “subversivos” pertencentes a jovens militantes que se reuniam no abrigo. Mais tarde, a freira justificou em uma carta que apenas pensava em proteger as crianças da instituição. Exilada no México contra sua vontade — em uma ainda mal esclarecida negociação que envolveu Igreja, militantes de esquerda e militares — suplicou para responder ao processo no Brasil, independentemente do que aquilo lhe custasse.

Denise Assis é jornalista e assessora da Comissão da Verdade do Rio
Embora desconhecido da opinião pública, o caso chegou aos ouvidos de Denise em 1977, na época recém-formada em jornalismo. Naquele momento, corria o rumor de que a madre teria sido abusada por seus torturadores — e engravidado. O fato embaraçoso — tanto para a Igreja quanto para o governo — explicaria o seu exílio forçado e todas as negativas posteriores para que voltasse ao país.

Obcecada por pontas soltas, a jornalista passou mais de 20 anos tentando remontar o percurso de Maurina. Acessando arquivos até então secretos, descobriu que o próprio Ministro da Justiça de Emílio Garrastazu Médici, Alfredo Buzaid, ficou perplexo quando o governo obstruiu, por meios inconstitucionais, o regresso da exilada ao Brasil. Afinal, a madre poderia se tornar um símbolo da luta contra a violência do regime.

Não há provas de que Maurina engravidou. Pelo que foi constatado, a hipótese parece improvável. Em suas investigações, porém, Denise recuperou uma carta desconcertante, em que a religiosa relata como foi abusada por seus torturadores. Passando a mão em seus joelhos, um deles a atormentou com provocações: “Vamos, me dá uma colher de chá... Pensa que eu estou há dias longe da minha mulher!...” Em outra carta, endereçada a Buzaid em 1971, a madre reitera seu desejo de ser julgada no Brasil: “Tenho eu obrigações para com o meu país, demonstrar a minha inocência”, insistiu. Com a anistia de 1979, Maurina enfim regressou. Denise conseguiu localizá-la sete anos antes de sua morte, em 2011. Encontrou-a adoentada em um convento no interior de São Paulo, mas a congregação proibiu a madre de relatar o seu passado.

— Ela estava disposta a falar, reconhecia que já era hora de recuperar este assunto. Mas não pôde — lembra Denise. — O que me impressiona é que ela se manteve fiel aos dogmas religiosos, perdoando seus torturadores. Com o jornalismo, confirmei muitas indagações, mas não a história da gravidez. O fato de não se configurar verdadeira não atenua os horrores enfrentados por ela, mas ainda assim era a grande pergunta em torno de seu nome. O romance tenta respondê-la da minha maneira. Na ficção tudo é possível.

A freira de “Imaculada” vive um drama semelhante ao de Maurina. Mas Denise faz questão de esclarecer que compôs um personagem romanesco. No voo livre da ficção, a jornalista se autoriza a criar fatos não confirmados. Também narra sentimentos que não cabiam na esfera objetiva do jornalismo. Realça o medo, os dilemas e, principalmente, a perplexidade de uma vítima inocente. Como reagir à repressão absurda, injusta e desumana?

— Ficamos vinte anos sem tratar o tema da ditadura com a profundidade e a assiduidade que ele merece — avalia a jornalista. — Talvez a ficção seja uma maneira de fazer com que a dimensão deste período seja compreendida. Acredito que a ditadura não pode ser dividida em diferentes fases, algumas mais brandas, outras mais duras. É um bloco só: a perda da liberdade. É a opressão.

Bolívar Torres
bolivar.correa@oglobo.com.br


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