quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Sobrevida ao absurdo

Por Rafael Gregório
Revista Carta Capital, 11 de dezembro

Está nos jornais: o suposto intérprete que, na terça-feira 10, passou quatro horas traduzindo para a linguagem dos sinais dos surdos a cerimônia do funeral de Nelson Mandela, morto no último dia 5 aos 95 anos, era um “fake”.

O governo da África do Sul ainda não explicou se o incidente se deve a uma escolha errada, a uma elaborada e fraudulenta trama ou a um mero trote, prosaico como a piada do carro de gelo. Ainda assim, o assunto teve fôlego para abastecer a máquina da zombaria virtual.

Bem-humorados louvaram o aventuroso e ainda não identificado intérprete, cujos sinais pareciam infantis e bizarramente improvisados. Naturalistas de plantão não hesitaram em associar a gafe ao subdesenvolvimento e à “africanidade”. Austeros, por sua vez, foram rápidos em condenar o ocorrido.

Não sem legitimidade, diga-se. Surdos sul-africanos ficaram indignados por terem sido tolhidos do direito à compreensão dos discursos e ritos da cerimônia de despedida de seu ídolo. Durante o evento, Wilma Newhoudt-Druchen, a primeira mulher surda eleita para o Parlamento Sul-Africano, publicou em sua conta no Twitter que “O intérprete do CNA (Congresso Nacional Africano, partido da situação) no palco está gesticulando lixo. Ele não pode interpretar. Por favor, o tirem”.

Também escapou da compreensão dessa parcela da população a sonora vaia do público presente no estádio ao presidente Jacob Zuma, que em poucos meses enfrentará delicada campanha pela reeleição.

David Buxton, CEO da Associação dos Surdos Britânicos, afirmou que o homem, que deveria sinalizar a linguagem de sinais sul africana (fixada para abarcar todas as 11 línguas oficiais do país e mais uma miríade de dialetos), estava “balançando as mãos, mas sem nenhum sentido”. Segundo ele, eram meros “sinais de mão infantis e de bater palmas, como se ele nunca tivesse aprendido uma palavra sequer na linguagem de sinais”.

A despeito das críticas, porém, e seguros de que o fato será devidamente escrutinado pelas vias oficiais e pela sempre vigilante e vociferante “opinião pública”, muitos viram no ocorrido motivos para celebrar. Entre eles, este humilde escriba.

Afinal, são tempos difíceis para a espontaneidade. Além de marombados e plurais seguranças para garantir privacidade e integridade física, artistas, políticos e celebridades em geral há tempos desfilam cercados por um séquito de “guarda-costas morais”.

Salvo exceções cada vez mais raras, não se obtém uma palavra – quanto mais um amontoado conjugado delas em frases e declarações – de uma pessoa pública, ou nem tanto, sem que cada vogal seja antes dissecada por um exército de patrulheiros do politicamente correto.

Esse condicionamento da verdade às conveniências afeta de maneira peculiar o campo da educação. Encontrar um parlamentar ou administrador público que não vomite frases feitas como “é preciso valorizar o professor”, “devemos aumentar os investimentos no ensino” ou a corrente e odiosa “por que não nos espelhamos na jornada integral e rigorosa da Coreia do Sul?” é tão fácil quanto presenciar um enterro de anão (sarcasmo espontâneo e alheio à correição detectado).

Quando troquei o Direito pelo Jornalismo, o fiz (também) sob a influência de certos textos magistrais. Um deles, uma entrevista da cantora Maysa a Jaguar, Tarso de Castro e Sérgio Cabral, do lendário semanário Pasquim. Em três perguntas e respostas que abrem a conversa, um retrato de um tempo bom que se foi:

Jaguar – Você acha que valeria a pena vender o Piauí para trazer o Frank Sinatra ao Brasil?

MAYSA – Para falar a verdade, nem que vendesse o Piauí haveria dinheiro pra pagar o que ele pede. Acho que teria que vender Brasília com o lago e tudo dentro. E não compensaria.

Sérgio – Você concorda com a afirmação de que Frank Sinatra é o maior cantor de todos os tempos?

MAYSA – Eu acho que sim. Além de ser um mau-caráter genial.

Tarso – O que você achou da música Sabiá, vencedora do Festival da Canção do ano passado?

MAYSA – A melodia é daquele gênero que só poderia ser do Antônio Carlos Jobim que costuma plagiar a si mesmo. A letra não tem nada. Acho que o Chico poderia fazer coisa melhor.

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Isso, hoje, é impensável. Assessores de imprensa, relações públicas, secretários e aspones em geral trabalham 24 horas por dia para evitar vacilos de espontaneidade. Fixam, desta forma, relações limpas e frias, sempre filtradas de quaisquer das manifestações de amor e ódio a que se sujeitam, por definição psíquica e biológica, a alma e a mente humanas. Opiniões do calor do momento são reduzidas a manobras e apostas calculadas. Afinal, há muito em jogo: os contratos de publicidade, as relações com poderosos, os patrocínios públicos de cidades, estados, País.

Ao leitor, o pão velho da comunicação: discursos assépticos, frios e estéreis, migalhas simpáticas que nada dizem e a ninguém afetam.

Pelo respeito que nutro pela comunidade que depende da tradução para os sinais, lamento celebrar. Lamento o prejuízo a esse público, lamento o atentado à igualdade de condições e à democracia.

Não posso, contudo, deixar de celebrar o valor de uma imagem: Barack Obama, homem mais poderoso do mundo, capaz de ceifar ou salvar milhões de vidas com um “sim” ou um “não”, a proferir louros a Nelson Mandela – e, durante longos minutos, ladeado por uma farsa improvisada.

Algo saiu do roteiro.


*Rafael Gregorio é editor-assistente de Carta na Escola e Carta Fundamental


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