segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Um colosso de caráter moral inatacável

Jornal O Globo, 09 de dezembro de 2013

Vocês poderiam imaginar o que teria acontecido a nós se Mandela tivesse saído da prisão em 1990 eriçado de ressentimento contra a grande injustiça que ocorreu no Julgamento de Rivonia? Vocês poderiam imaginar o que a África do Sul seria hoje, se ele tivesse sido consumido por um desejo de vingança, de querer ressarcimento por todas as humilhações e toda a agonia que ele e seu povo haviam sofrido nas mãos de seus opressores brancos?



Nunca antes na História um ser humano foi tão universalmente reconhecido em vida como a personificação da magnanimidade e da reconciliação como Nelson Mandela foi.
Ele colocou de lado a amargura de suportar 27 anos em prisões do apartheid — e o peso de séculos de divisão colonial, subjugação e repressão — para personificar o espírito e a prática de ubuntu, ou bondade humana. Ele compreendeu perfeitamente que as pessoas dependem das outras para que os indivíduos e a sociedade prosperem.
Esse era o seu sonho para a África do Sul e a esperança que ele representava em todo o mundo. Se fosse possível na África do Sul, seria possível na Irlanda, seria possível na Bósnia e em Ruanda, seria possível na Colômbia, seria possível em Israel e na Palestina.
Claro que, no espírito de ubuntu, Madiba foi rápido em apontar que não poderia levar sozinho o crédito dos muitos elogios que surgiram em seu caminho e que estava cercado por pessoas íntegras que eram mais brilhantes e mais jovens do que ele.
Isso é apenas parcialmente verdadeiro.
A verdade é que os 27 anos em que Madiba, como era conhecido, passou no ventre da besta do apartheid aprofundaram sua compaixão e capacidade de empatia em relação aos outros. No topo das lições sobre liderança e cultura a que ele foi exposto, e de seu desenvolvimento de uma voz para os jovens na política anti-apartheid, a prisão parece acrescentar uma compreensão da condição humana.
Como o diamante mais precioso formado nas profundezas da Terra, o Madiba que emergiu da prisão em janeiro de 1990 era praticamente perfeito.
Em vez de querer o que lhe era devido, ele proclamou a mensagem de perdão e reconciliação, inspirando outros pelo seu exemplo de atos extraordinários de nobreza de espírito.
Ele personificou o que proclamou, colocou em prática o que disse. Ele convidou seu antigo carcereiro para participar de sua posse presidencial como convidado VIP, e chamou o homem que conduziu o caso do Estado contra ele no Julgamento de Rivonia, pedindo a pena de morte, para almoçar em seu escritório presidencial.
Ele visitou a viúva do sumo sacerdote do apartheid, Betsy Verwoerd, no enclave branco exclusivamente africâner de Orania. Ele tinha um talento único para atos espetaculares e simbólicos de grandeza humana que seriam acanhados se fossem realizados pela maioria dos outros. Quem vai esquecer o momento eletrizante da final da Copa do Mundo de rúgbi em 1995, quando ele entrou em campo no Ellis Park com o número 6 do capitão Francois Pienaar na camisa do Springbok que estava vestindo? Foi um gesto que fez mais pela construção e pela reconciliação da nação do que qualquer número de sermões de pregadores ou discursos de políticos.
Apesar de sempre um homem da equipe, Madiba também sempre esteve suficientemente confortável em sua própria pele, seguro em sua capacidade de discernir o certo do errado, que evidenciou algumas das inseguranças associadas a muitos políticos. Ele era capaz de aceitar críticas — e apto a pedir desculpas, quando sentia que um pedido de desculpas era devido.
Ele teve a coragem moral e ética, durante e depois de seu período na Presidência, para fazer e dizer coisas que nem sempre estavam de acordo com a política oficial de seu amado Congresso Nacional Africano (CNA).
Quando a Comissão da Verdade e da Reconciliação publicou seus resultados, contra alguns dos quais o CNA se opôs fortemente, Madiba teve o dom de aceitar publicamente o relatório.
Outro exemplo foi a criação do primeiro local rural de tratamento da Aids da África do Sul, por sua fundação, num momento em que o governo sul-africano foi hesitante e confuso em sua resposta à pandemia.
Quando um dos integrantes da Comissão da Verdade e da Reconciliação foi acusado numa audiência de anistia de estar envolvido no caso, Mandela nomeou uma comissão judicial para investigar. Mais tarde, recebi uma chamada da secretaria do presidente para obter os detalhes de contato do comissário. Eu percebi que o presidente queria colocá-lo à vontade, mas disse que, como presidente da comissão, eu deveria conhecer as conclusões da comissão judicial primeiro. Em poucos minutos, o próprio presidente estava na linha , dizendo: “Sim, Mpilo, você está totalmente certo. Sinto muito.”Os políticos acham quase impossível se desculpar. Somente pessoas verdadeiramente grandes pedem desculpas facilmente, elas não são inseguras.
Vocês poderiam imaginar o que teria acontecido a nós se Mandela tivesse saído da prisão em 1990 eriçado de ressentimento contra a grande injustiça que ocorreu no Julgamento de Rivonia? Vocês poderiam imaginar o que a África do Sul seria hoje, se ele tivesse sido consumido por um desejo de vingança, de querer ressarcimento por todas as humilhações e toda a agonia que ele e seu povo haviam sofrido nas mãos de seus opressores brancos?
Em vez disso, o mundo foi surpreendido, na verdade ficou admirado, pela inesperada transição pacífica em 1994, seguida não de uma orgia de vingança e retaliação, mas pela maravilha do perdão e da reconciliação sintetizados nos processos da Comissão da Verdade e da Reconciliação.
Foi sem surpresa que seu nome se ergueu acima de qualquer outro quando a BBC realizou uma pesquisa para determinar quem deveria dirigir um governo mundial para guiar os assuntos da nossa aldeia global conflituosa. Um colosso de integridade e caráter moral inatacáveis, ele era a figura pública mais admirada e mais venerada do mundo.
As pessoas sabiam, sentiam que ele se importava genuinamente. Ele se consumia por essa paixão em servir, porque acreditava que um líder existe para o benefício dos que são guiados, não para auto-engrandecimento ou autopromoção.
As pessoas sentem isso, você não pode enganá-las. Foi por isso que os trabalhadores da fábrica da Mercedes-Benz na Cidade do Cabo lhe presentearam com um carro especial que tinham feito com apreço. Foi por isso que, quando ele foi para a Grã-Bretanha em sua visita de Estado de despedida, a polícia teve de protegê-lo das multidões que poderiam esmagá-lo por amor. Normalmente, os chefes de Estado são protegidos em visitas do tipo para garantir a sua segurança contra quem pode ser hostil.
Sua paixão em servir o levou a continuar sua longa caminhada prodigamente, mesmo depois da aposentadoria. Assim, ele fez campanha vigorosa para os infectados pelo HIV e continuou a angariar fundos para crianças e outros projetos — tudo para os outros, não para si mesmo.
Ele tinha pontos fracos? Claro que sim. Sua principal fraqueza era a lealdade à sua organização e aos colegas. Ele manteve em seu gabinete ministros de baixo desempenho e incompetentes que deveriam ter sido demitidos. Esta tolerância com a mediocridade, sem dúvida, lançou as sementes para maiores níveis de mediocridade e corruptibilidade que estavam por vir.
Ele era um santo? Não se um santo é totalmente impecável. Creio que ele era santo porque ele inspirou outros poderosamente e revelou em seu caráter, de forma transparente, muitos dos atributos da bondade de Deus: a compaixão, a preocupação com os outros, o desejo de paz, perdão e reconciliação.
Dou graças a Deus por essa dádiva extraordinária para a África do Sul e o mundo.
Que ele descanse em paz e se eleve em glória.

*Desmond Tutu é arcebispo emérito da Cidade do Cabo, África do Sul, e vencedor do Prêmio Nobel da Paz em 1984

2 comentários:

Marcelo F. Carvalho disse...

E mais Leonardo Boff:
http://www.brasildefato.com.br/node/26832

Marcelo F. Carvalho disse...

Luis Nassif:
http://www.cartacapital.com.br/internacional/a-razao-de-mandela-ter-entrado-para-a-historia-5406.html