Carlos Latuff 2010 |
Por Marcos de Castro
Jornal O Globo, 13 de outubro de 2013
No meu segundo dia de DOI-Codi, nos fundos do quartel da PE da Rua Barão de Mesquita, no Rio, foram me buscar na cela onde eu tinha sido jogado na véspera sem entender os motivos daquela prisão.
Bem, eram tempos complicados, o embaixador americano no Rio tinha sido sequestrado (estamos em setembro de 1969), a ditadura levara um susto. Fácil de imaginar, mostrara-se incapaz de garantir segurança para o embaixador do país mais rico do mundo.
O diplomata, Charles Burke Elbrik, fora levado de Botafogo para o Rio Comprido, isto é, da Zona Sul para a Zona Norte da cidade, sem que ninguém reparasse naquela carga valiosa.
Uma demonstração de incompetência impressionante do governo brasileiro e da própria Embaixada dos Estados Unidos. Agora era a caça desesperada para consertar de algum modo o desastre.
Sem me chamar Joaquim nem morar em Niterói, fui preso logo na noite seguinte em meio a essa caçada. Assim conheci a verdadeira sucursal do inferno em que se transformara aquele centro de torturas, numa variedade que ia das mais primárias às mais brutais.
Amigo de um dos idealizadores do sequestro eu era, sim, mas, no momento de minha prisão, não o vira pelo menos nos seis meses anteriores, não sabia rigorosamente nada de suas atividades recentes. Não tinha a menor ideia de seu envolvimento com o sequestro.
Mas isso era de pouca importância para o pessoal do DOI-Codi. Caçar era o que eles queriam, assim mostravam serviço.
Só depois da primeira noite na cadeia do DOI-Codi, no 2º. andar, é que me chamaram para interrogatório. Desci certo de que tudo se explicaria em dois minutos e eu seria libertado. Apresentaram-me a um certo tenente cujo nome não cheguei a saber, pois no DOI-Codi ninguém usava o nome no uniforme, ao contrário de todo o resto do Exército.
O tenente apontou-me uma porta e disse que o interrogatório seria na sala a que ela dava acesso. Mandou-me seguir à frente, ele iria atrás.
Depois de meia dúzia de passos deu-me um golpe tão violento no ouvido direito, com a mão em concha, que até hoje ouço mal desse ouvido, garantindo-me meu otorrino que a causa foi esse golpe brutal, a que lá chamavam de “telefone”. Foi o cartão de visitas para mim.
O interrogatório não seria com esse competentíssimo tenente. Na sala de interrogatório entregou-me ao comandante do DOI-Codi, Francisco Moacir Méier Fontenelle, tenente-coronel, se não faço confusão com essas qualificações complicadas.
Depois de rápidas formalidades, ele me disse que eu só sairia dali se desse o nome dos sequestradores do embaixador americano e as circunstâncias do sequestro. Enquanto eu ia explicando que não sabia o nome de nenhum sequestrador, muito menos as circunstâncias do episódio, ele ia amarrando os fios de um telefone de campanha em quatro dos dedos da minha mão direita, dando folga ao dedão.
E enquanto amarrava, ria, ria gostosamente, o que me fez lembrar o porão do “Navio Negreiro”, de Castro Alves, as chicotadas zunindo nas costas dos negros caçados na África para serem escravos no Brasil. “E ri-se Satanás”, diz o poeta.
E Fontenelle não parava de rir enquanto amarrava meus dedos aos fios do telefone elétrico. “E ri-se Satanás”, eu repetia comigo mesmo, sem imaginar nem de longe a força de um choque de fios elétricos ligados a um telefone de campanha.
Não vou descrever aqui os pulos e berros que dei, que qualquer um dá, com aqueles choques. A impressão que se tem é que se trata de um choque mortal. Impossível dizer quantos minutos aquilo durou, ao fim dos quais ele me assegurou que repetiria a dose muitas vezes, diariamente, até que eu desse o nome dos sequestradores.
Seguiram-se dias tão tumultuados no Brasil, ao fim dos quais o general Garrastazu Médici assumiu a Presidência, para um período em que a tortura iria virar método institucional. Tortura e assassinato.
Naquele mesmo DOI-Codi de Fontenelle foram assassinados Mário Alves e Rubens Paiva. Mas chegou o momento de tornar tudo claro em relação às torturas e aos crimes no Brasil da ditadura militar. A Comissão da Verdade do Rio faz um trabalho extraordinário.
Um torturador é o mais baixo dos seres humanos, pois a tortura é por definição covarde, aplicada sempre a alguém indefeso, não poucas vezes gente de pés e mãos amarradas.
Nossa Comissão da Verdade quer transformar o local onde foi o DOI-Codi, na Tijuca, num Centro de Memória. Nada mais patriótico.
Um país que foge de sua verdade é um país de mentira. Há um certo Bolsonaro que parece ser contra a revelação dessa infâmia. Deixemo-lo investir contra a verdade, ficar a favor da covardia.
Tudo que pretendo com este depoimento simples é dar mais um passo a favor da Verdade, assim mesmo, com maiúscula. Verdade histórica, pois um país não pode fugir de sua História, ou jamais há de encontrar-se com um destino maior e mais digno.
Marcos de Castro é jornalista.
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