sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Inverno na praia

      Estava ele ouvindo Pavarotti cantar bravamente a sua ária e a sua filha debochando bravamente daquela música estranha aos ouvidos inocentes e alegres da menina acostumada com a alegria de um Palavra Cantada ou Bia Bedran. E ele, olhando-a com sorrisos nos olhos pela brincadeira, colocou mais um gole daquele fabuloso e encorpado cabernet na boca. Pensou na possibilidade de ser mais um dia sem dor, sem embaraços, mas a campainha soou estridente e penetrou na sala, rasgando a imortalidade de Puccini, inundando o ambiente doce.
      “Chegou cedo”, ele disse com o rosto simpático e totalmente pronto para absorver algum rompante. “Achei melhor vir cedo por causa do trânsito”, foi a resposta esperada por ele e dita sem muita vontade por ela. “Trouxe o boleto da escola e, antes que você reclame, gostaria de dizer que quem bebe estes vinhos pode muito bem pagar a escola sem fazer cara de bunda”. Ele sorriu porque achava que a hostilidade viria em algum momento. “É natural o aumento escolar no começo do ano”, disse abrindo o talão de cheques. Ela olhou com o semblante aflito, mas com alguma esperança de conseguir uma confusãozinha antes de deixar aquele apartamento espaçoso e limpo. Quadros da família em espalhados pelo corredor junto aos vasos de flores guardavam duas ou três fotos dela. “Por que eu ainda estou aqui junto às outras fotos”? Ele viu a casca de banana e desarmou a bomba: “Você vai estar sempre aí, como parte importante da vida da gente”. Ela quis chorar e, portanto, disse o óbvio: “Vai se foder, João Carlos”!
      Pegou a menina pelos braços e arrastou-a até a porta sob protestos da criança. “Eu venho segunda-feira pela manhã ou, se preferir, levo à escola e você só tem que buscar”. Ele olhou-a seriamente, mas sem nenhum tipo de irritação e disse algo como “fique a vontade” ou “você é quem decide”. Ela optou por uma das duas hipóteses e, sem deixar tempo para uma terceira, bateu a porta.
      Elas se foram e ele atirou-se numa daquelas poltronas do papai que tanto adorava quando estavam juntos, mas que agora estava apenas ali na sala, ocupando espaço. Pavarotti encontrava-se com Tosca e chovia E Lucevan Le Stelle sobre ele, dando uma beleza maior àquele triste buquê na taça e o melancólico sol caindo no mar. Precisava recuperar aquela mulher enquanto ainda existia ódio dentro dela. Usaria o ódio para poder dançar mais algumas vezes com ela. A primavera que nasce depois do inverno.

Claude Monet



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