Estava ele ouvindo Pavarotti
cantar bravamente a sua ária e a sua filha debochando bravamente daquela música
estranha aos ouvidos inocentes e alegres da menina acostumada com a alegria de
um Palavra Cantada ou Bia Bedran. E ele, olhando-a com sorrisos nos olhos pela
brincadeira, colocou mais um gole daquele fabuloso e encorpado cabernet na
boca. Pensou na possibilidade de ser mais um dia sem dor, sem embaraços, mas a
campainha soou estridente e penetrou na sala, rasgando a imortalidade de
Puccini, inundando o ambiente doce.
“Chegou cedo”, ele disse com o
rosto simpático e totalmente pronto para absorver algum rompante. “Achei melhor
vir cedo por causa do trânsito”, foi a resposta esperada por ele e dita sem
muita vontade por ela. “Trouxe o boleto da escola e, antes que você reclame,
gostaria de dizer que quem bebe estes vinhos pode muito bem pagar a escola sem
fazer cara de bunda”. Ele sorriu porque achava que a hostilidade viria em algum
momento. “É natural o aumento escolar no começo do ano”, disse abrindo o talão
de cheques. Ela olhou com o semblante aflito, mas com alguma esperança de
conseguir uma confusãozinha antes de deixar aquele apartamento espaçoso e
limpo. Quadros da família em espalhados pelo corredor junto aos vasos de flores
guardavam duas ou três fotos dela. “Por que eu ainda estou aqui junto às outras
fotos”? Ele viu a casca de banana e desarmou a bomba: “Você vai estar sempre
aí, como parte importante da vida da gente”. Ela quis chorar e, portanto, disse
o óbvio: “Vai se foder, João Carlos”!
Pegou a menina pelos braços e
arrastou-a até a porta sob protestos da criança. “Eu venho segunda-feira pela
manhã ou, se preferir, levo à escola e você só tem que buscar”. Ele olhou-a
seriamente, mas sem nenhum tipo de irritação e disse algo como “fique a
vontade” ou “você é quem decide”. Ela optou por uma das duas hipóteses e, sem
deixar tempo para uma terceira, bateu a porta.
Elas se foram e ele atirou-se
numa daquelas poltronas do papai que tanto adorava quando estavam juntos, mas
que agora estava apenas ali na sala, ocupando espaço. Pavarotti encontrava-se
com Tosca e chovia E Lucevan Le Stelle
sobre ele, dando uma beleza maior àquele triste buquê na taça e o melancólico
sol caindo no mar. Precisava recuperar aquela mulher enquanto ainda existia
ódio dentro dela. Usaria o ódio para poder dançar mais algumas vezes com ela. A
primavera que nasce depois do inverno.
![]() |
Claude Monet |
Nenhum comentário:
Postar um comentário