sábado, 13 de março de 2010

Circo da Notícia

As reformas e a dança dos fios

Por Carlos Brickmann

Observatório da Imprensa

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Faz tempo, muito tempo. Um dia, animadíssimo, um editor contou a Rolf Kuntz, um dos mais equipados jornalistas do país, que o jornal faria uma reforma gráfica. Rolf, entediado, perguntou: "Vão tirar os fios ou colocar os fios?"

As coisas hoje são mais complexas. O título do jornal muda de cor, as páginas, antes artesanais e bem trabalhadas, se contentam com desenhos pré-fabricados, aumenta o número de gráficos, reduz-se o tamanho dos textos ("em busca de maior agilidade e concisão, sem prejuízo do conteúdo analítico"). Nas sucessivas reformas que ocorrem nos principais jornais, muitas coisas já foram obtidas:

1. Vários jornais concorrentes ficaram parecidíssimos uns com os outros;

2. Na busca de textos curtos e ilustrações maiores, no estilo popularizado pelo USA Today, boa parte das publicações ficou com a cara da internet. Se é para ficar com a cara da internet, por que não preferir a internet, que ainda por cima tem som e imagens em movimento, pode ser atualizada a cada minuto e é de graça?

3. A reportagem ficou meio esquecida. Reportagem é uma operação cara, exige movimentação de repórteres, de fotógrafos, de automóveis, consome espaço, leva tempo. É mais fácil unir o Google a alguns telefonemas, tentar adaptar a história àquilo que a pauta prevê e conseguir informações de menor qualidade, mas que vão ocupar menos espaço e, quem sabe, com ilustrações caprichadinhas, não podem até mesmo quebrar o galho, sem que ninguém perceba?

Reforma-se a cara dos jornais, com assessoria de empresas internacionais, mas não se resolve um problema fundamental: José Serra foi a Minas, ouviu o coro "Aécio presidente", teve de sentar-se no almoço em frente a um antigo desafeto, Ciro Gomes, e tudo isso apareceu instantaneamente no rádio, na TV e na internet, foi repetido nos portais noticiosos da internet, no noticiário do rádio, nos jornais da TV. No dia seguinte, umas 18 horas mais tarde, os jornais contaram a mesma coisa, mas sem som e com imagem estática.

O Palmeiras, que por pouco não foi campeão brasileiro há poucos meses, começa a perder seguidamente. Os jogos são transmitidos pelo rádio e aparecem na TV, comreplay dos gols e dos melhores momentos, com comentários; os resultados estão na internet, com comentários de blogueiros diversos. E nos jornais, nem sequer se tenta descobrir o motivo da queda abrupta. Basta-lhes fazer uma matéria contando a mesma coisa que a gente viu na véspera.

Estará em queda a circulação dos jornais por falta de reformas gráficas? Pelo alto preço? Talvez não: reforma gráfica aparece a toda hora, e o preço só passa a ser alto quando o que se obtém pagando é inferior ao que é fornecido gratuitamente.

O Jornal da Tarde, que em um ano multiplicou por 3,5 sua tiragem de lançamento, publicava matérias de página inteira, diagramadas artesanalmente, com prioridade para aquilo que o leitor ainda não sabia. Se estava errado, por que a circulação passou de 12 para 40 mil exemplares em 12 meses?

Nós aqui, eles lá em baixo

Recentemente, uma grande rede de TV foi condenada a pagar indenização a um assessor de imprensa que lhe forneceu a informação correta. A emissora acrescentou fatos inexistentes à informação e, quando percebeu que estava errada, culpou o assessor. Erro duplo: primeiro, por não ter checado a informação de que dispunha; segundo, por jogar a culpa em quem não a tinha.

Mas não é um problema apenas de uma empresa. É comum que veículos de comunicação não se sintam bem quando têm de reconhecer que erraram. Há algum tempo, com base numa reportagem que teria sido publicada num jornal inglês, vários articulistas brasileiros demonstraram suas teses. O problema é que a reportagem não tinha sido publicada no jornal inglês.

Os articulistas se mantiveram olímpicos, distantes: o problema não era com eles. Nenhum pediu desculpas aos leitores. O jornal que os publicou deu uma nota explicando que a reportagem existia, tinha sido escrita, deveria ter sido publicada, mas o jornal inglês preferira engavetá-la, ou seja, a coisa era, embora não fosse. E até hoje há quem diga que o caso da Escola Base foi culpa exclusiva das autoridades que transmitiram as informações falsas aos repórteres. Os repórteres, que não as checaram, seriam vítimas.

Mas não eram: eles confiaram. E, mesmo diante das autoridades, a obrigação dos jornalistas é desconfiar.

Um homem raro

Na morte de José Mindlin, os meios de comunicação salientaram uma de suas características, talvez das menos importantes: a de bibliófilo. Ele efetivamente gostava de livros, montou uma esplêndida biblioteca, e isso seria o suficiente para consagrar a maior parte da humanidade. Mas Mindlin era muito mais: teve importante papel na industrialização do país e lutou enquanto pôde para que a indústria de autopeças continuasse sob controle nacional; e sua ação política foi notável pela visão, pela postura e pela honradez.

Mindlin só aceitou participar de um governo quando lhe foi apresentado o projeto de redemocratização do país, conduzido pelo general Ernesto Geisel, e que teria em São Paulo seu maior suporte civil, o governador Paulo Egydio. Mindlin assumiu a secretaria estadual da Cultura, que dirigiu com a habitual competência; e deu força ao jornalismo da TV Cultura, que passou a funcionar como contraponto das tevês privadas, ainda tolhidas pela censura do regime militar.

Em determinado momento, o esquema ruiu: o comando do jornalismo da TV Cultura foi preso em massa e o diretor de Jornalismo Vladimir Herzog assassinado por grupos contrários à abertura política. Mindlin teve a coragem de retirar-se do governo e dizer o motivo. Naquele momento, isso era muito perigoso. E, pouco depois, liderou um manifesto de empresários em favor da aceleração da abertura política.

Intelectual, bibliófilo, sim. Mas muito mais do que isso. Uma pessoa por inteiro. E integralmente dedicada a boas causas.

A verdade presumida

Bastou que uma revista especializada publicasse um estudo para que os meios de comunicação fossem atrás, aceitando todas as conclusões como verdadeiras. A principal informação acriticamente aceita é de que os homens que traem as esposas costumam ter o Quociente de Inteligência (QI) mais baixo.

É difícil entender o que uma coisa tem a ver com outra. Mas é fácil verificar que os exemplos históricos não batem com essa conclusão. Os irmãos Kennedy, que dificilmente poderiam ser enquadrados num grupo de baixo QI, eram tudo, menos fiéis. Aliás, o presidente Bill Clinton também não chegou a ser um exemplo de fidelidade conjugal. O filósofo Karl Marx, cujas teorias ainda hoje influenciam boa parte do mundo, nunca se contentou com a esposa Jenny von Westphallen. Albert Einstein foi homem de várias mulheres.

É correto supor que muitos homens rigorosamente fiéis também se destacaram pela inteligência. E será razoável imaginar que a inteligência não seja a principal qualidade de quem aceita esse tipo de pesquisa como se fosse séria.

A Devassa e o gol contra

Por falar em coisas pouco inteligentes, a história de Paris Hilton e da cerveja Devassa merece amplo destaque. Ao pedir que a propaganda da cerveja com Paris Hilton fosse suspensa, a Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres do governo federal fez o jogo do adversário: garantiu uma tremenda divulgação gratuita para a cerveja, uma divulgação muito maior do que a propaganda com a starlet americana poderia obter. Quanto de mídia gratuita conseguiu a Devassa?

E para que tanto estardalhaço contra o anúncio? Para nada. Não há, na campanha da Devassa, nada que não exista na propaganda de todas as demais cervejas (veja a nota abaixo). Por que os anúncios com Paris Hilton significam exploração do corpo feminino e com Juliana Paes, "A Boa", não significam? Qual a novidade, na propaganda das diversas marcas de cerveja, de mulheres bonitas com roupas reveladoras?

Quem viu um viu todos

O publicitário José Carlos Piedade, em bilhete a esta coluna, diz que a propaganda de cerveja que se faz atualmente não dá para distinguir uma marca da outra (aliás, quando passou pela Antarctica, Washington Olivetto dizia que os anúncios de cerveja pareciam ter sido gravados, todos, no mesmo bar da Áustria).

"Por volta dos anos 80", diz Piedade, "no lançamento da marca Kaiser, os publicitários Neil Ferreira e José Zaragoza (da DPZ) ousaram uma campanha às avessas, num tempo em que as cervejas estavam com suas publicidades absolutamente iguais, como agora. Resultado: a cerveja subiu sua participação no mercado de 3% para 18%. A propaganda está precisando de `sangue velho´, como diz o próprio Neil".

A propaganda precisa, também, tomar cuidado com os politicamente corretos, aqueles que são contra qualquer anúncio que tente vender qualquer coisa a qualquer pessoa, e que embora se considerem libertários, "da turma do bem", dificilmente se diferenciam dos censores.

A Bolsa-Equívoco

A internet foi inundada, nas últimas semanas, com protestos contra o Auxílio-Reclusão – uma quantia quase 50% superior ao salário mínimo, que seria paga a cada filho de pessoas condenadas e presas. Há um certo tom partidário na denúncia: seria mais uma bolsa do governo Lula, destinada especificamente a violadores da lei e fora do alcance de suas vítimas.

A notícia só é verdadeira em parte. O Auxílio-Reclusão existe, mas nada tem a ver com o governo Lula: foi instituído em 1991, quando o presidente era Fernando Collor. E não se destina a cada um dos filhos do condenado. O auxílio, que visa ajudar a família a manter-se quando um dos pais está preso, é de no máximo R$ 798,30, no total, sem relação com o número de dependentes (pode também ser fixado um valor menor). E só é pago quando o condenado é contribuinte do INSS.

O governo Lula tem inúmeros defeitos. Para criticá-lo, não é preciso atribuir-lhe defeitos novos.

Refazendo Mário de Andrade

Há alguns anos, trabalhando na Folha de S.Paulo, numa fase especialmente brilhante da "Ilustrada" (com Matinas Suzuki, Caio Túlio Costa, Leão Serva, Marcos Augusto Gonçalves), o repórter Miguel de Almeida assumiu uma empreitada das mais complexas: refazer o caminho de Mário de Andrade em O Turista Aprendiz. Deu uma belíssima série de reportagens.

Agora, Miguel lança seu livro sobre o mesmo tema: Trilha nos Trópicos. O lançamento é na quinta-feira, na Livraria da Vila (Rua Fradique Coutinho, 915, São Paulo), a partir das 18h30, com direito a participar de um bate-papo do autor com Walnice Nogueira Galvão. É uma boa conversa, um bom lançamento, uma boa leitura.

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