Não foi quando ela sorriu um
sorriso carnudo e cheio de tudo e de brilho que ele percebeu que aquilo que
latejava pelos poros dos dois como vibração mística era a deixa para o desarme.
Não, não foi ali que ele percebeu.
Não foi quando ela cagou para o
dinheiro do outro e fez amor com ele com toda a vontade de gozar do mundo e
rangeu os dentes e disse que o amava como quem olha a luz e vê demônios e
santos no mesmo barco. Nem gozando e sendo molhado dessa maneira ele conseguiu
perceber.
Não foi quando ela disse a
verdade, quando se mostrou digna, quando chorou um tanto de Gilgamesh ou quando
secou as nuvens, trilhou o sol e virou a página sem olhar para trás ou jogar
uma palavra fora sequer, sem fazer doer ou odiar. Não, ele não foi capaz de
entender que templos são destruídos e erguidos todo santo dia, independente do
tempo de luto, eles sempre se erguem, tudo sempre renasce e vira outra coisa,
melhor e mais forte.
Não foi vendo um filme ou ouvindo
uma música, nem vestindo ou calçando algo que chamam de retrô, mas é só a moda atual faturando o que faz desde o século
passado: quando encher o saco, repita o desenho de 20 anos atrás até saturar e
o retrô passar a ser o de 10, o de 05
ou o passado do hoje e que nunca foi e só é o será.
Ele só percebeu quando se
encontraram, casualmente, num bar-temático, desses em que a mesa e a luminária
são lindas, mas a comida e a acústica são péssimas, e ela apresentou o seu
filho mais velho e o marido bem arrumado com os óculos que ele procurava para
usar na viagem que nunca fez. Ele só percebeu quando mordeu aquele sanduíche de
merda no meio daquele barulho adolescente e histérico e viu-se sozinho, sem
filhos ou companheira. Ele era quase um daqueles jovens escandalosos num corpo
velho fazendo barulho; ela era uma daquelas tantas mulheres que continuam
bonitas e que sabem andar, sem pressa quanto ao destino, com os olhos de quem
sabe o que tem e o que quer.
Percebeu e sorriu. De alguma
forma ela encontrou o pensamento dele flutuando naquele ambiente muito cool e pouco útil e sorriu de volta,
como que entendendo completamente o que tinha ganho e perdido da vida; ele
alisou o queixo, mostrou os dentes e pediu a conta com uma ponta de inveja do
homem com os óculos que ele tanto procurou. Ela tirou alguma coisa do rosto do
filho e segurou a mão do companheiro. Hoje ele ia comer todas; ela só ia comer
um.
Ele percebeu, finalmente, que era
feliz na solidão.
Ela sempre soube que era feliz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário