quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Ele percebeu, ela sempre soube

Não foi quando ela sorriu um sorriso carnudo e cheio de tudo e de brilho que ele percebeu que aquilo que latejava pelos poros dos dois como vibração mística era a deixa para o desarme. Não, não foi ali que ele percebeu.

Não foi quando ela cagou para o dinheiro do outro e fez amor com ele com toda a vontade de gozar do mundo e rangeu os dentes e disse que o amava como quem olha a luz e vê demônios e santos no mesmo barco. Nem gozando e sendo molhado dessa maneira ele conseguiu perceber.

Não foi quando ela disse a verdade, quando se mostrou digna, quando chorou um tanto de Gilgamesh ou quando secou as nuvens, trilhou o sol e virou a página sem olhar para trás ou jogar uma palavra fora sequer, sem fazer doer ou odiar. Não, ele não foi capaz de entender que templos são destruídos e erguidos todo santo dia, independente do tempo de luto, eles sempre se erguem, tudo sempre renasce e vira outra coisa, melhor e mais forte.

Não foi vendo um filme ou ouvindo uma música, nem vestindo ou calçando algo que chamam de retrô, mas é só a moda atual faturando o que faz desde o século passado: quando encher o saco, repita o desenho de 20 anos atrás até saturar e o retrô passar a ser o de 10, o de 05 ou o passado do hoje e que nunca foi e só é o será.

Ele só percebeu quando se encontraram, casualmente, num bar-temático, desses em que a mesa e a luminária são lindas, mas a comida e a acústica são péssimas, e ela apresentou o seu filho mais velho e o marido bem arrumado com os óculos que ele procurava para usar na viagem que nunca fez. Ele só percebeu quando mordeu aquele sanduíche de merda no meio daquele barulho adolescente e histérico e viu-se sozinho, sem filhos ou companheira. Ele era quase um daqueles jovens escandalosos num corpo velho fazendo barulho; ela era uma daquelas tantas mulheres que continuam bonitas e que sabem andar, sem pressa quanto ao destino, com os olhos de quem sabe o que tem e o que quer.

Percebeu e sorriu. De alguma forma ela encontrou o pensamento dele flutuando naquele ambiente muito cool e pouco útil e sorriu de volta, como que entendendo completamente o que tinha ganho e perdido da vida; ele alisou o queixo, mostrou os dentes e pediu a conta com uma ponta de inveja do homem com os óculos que ele tanto procurou. Ela tirou alguma coisa do rosto do filho e segurou a mão do companheiro. Hoje ele ia comer todas; ela só ia comer um.

Ele percebeu, finalmente, que era feliz na solidão.

Ela sempre soube que era feliz.



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