Um relato de horror
*Publicado em O Globo - 08/12/2007 - Opinião
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Em 1729, o escritor Jonathan Swift apresentou o que chamou de “modesta proposta” para resolver o problema da infância abandonada no seu país. Na abertura, ele diz que sua “ ‘modesta proposta’ é para evitar que as crianças dos pobres da Irlanda se tornem um fardo para seus pais ou para seu país, e para torná-las benéficas ao público”. O livro com a proposta foi recentemente publicado no Brasil pela prestigiosa Editora UNESP, com ótimo prefácio de R. Morais.
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A proposta é um relato de terror: o famoso satírico recomenda que as famílias pobres vendam seus filhos para serem degustados como refinada iguaria pelas famílias ricas. Segundo ele, na sua sátira-terror, sua “modesta proposta” daria renda aos pobres e uma nova delícia gastronômica à nobreza, criaria empregos na rede hoteleira e tiraria da rua a infância abandonada. Além disso, segundo o Dr. Swift, reduziria o roubo, a mendicância, o complexo de culpa dos ricos e, sobretudo, o sofrimento das crianças e de suas famílias. Eliminaria a angústia das mães que não sabem onde os filhos estão ou que riscos eles correm perambulando pelas ruas. Pela “modesta proposta” de horror, as mães saberiam do destino do filho. E dormiriam tristes, mas tranqüilas. Além disso, obteriam uma renda, ao vender seus filhos.
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Felizmente, a proposta não foi aceita, por causa do tabu contra o canibalismo. A sociedade que abandona suas crianças defende a vida delas, por maior que seja seu sofrimento.
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Swift morreu em 1745. Tivesse vivido até o século XX, veria sua idéia adaptada e adotada em diversos países, sob formas diferentes, disfarçadas para serem aceitas, driblando os tabus religiosos contra o canibalismo.
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Em alguns países, a “modesta proposta” de Swift condena as crianças pobres ao trabalho infantil, fabricando sapatos que serão usados pelas crianças ricas de outros países. O tempo roubado de suas vidas infantis é transformado em sapatos. Em vez de servi-las à mesa, pisa-se nas suas infâncias.
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No Brasil, a idéia de Swift também foi adaptada e adotada. O tabu da antropofagia, trazido pelos portugueses, criou uma solução ainda mais sofisticada. Em vez de comer as crianças, como sugeria a “modesta proposta” de Swift, adotamos a opção de bebê-las na forma do suco das laranjas que elas colhem, com as mãos que deveriam usar lápis quando deviam estar na escola. Transforma-se em suco e toma-se a infância.
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Aqui também preferimos outra vertente da “modesta proposta” de Swift: a prostituição infantil. Os banquetes nas mesas dos castelos são substituídos pelas camas dos motéis. As crianças não são assassinadas para servirem ao paladar, mas seus corpos são usados em vida para servirem à luxúria.
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Swift ficaria impressionado com outra solução brasileira: a de comprar as crianças dos pobres pagando um valor mensal às suas mães para que as crianças continuem vivas. Sem escola, sem futuro, crescendo para ter filhos que viverão como elas vivem hoje, às custas de uma bolsa mensal para cada família.
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A “modesta proposta” foi adaptada para evitar o horror ao canibalismo explícito proibido pelo cristianismo, mas adotada com requintes às vezes mais cruéis, embora menos horrorosos. Porque, na sátira horripilante de Swift, a morte de criança seria um gesto simples, instantâneo e quase indolor, tal qual fazemos com bois, frangos, porcos. Na forma adaptada e adotada no Brasil, a criança é submetida a uma morte lenta, que dura toda sua infância - corpos vivos, cérebros abortados, vidas tristes.
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Há algo de errado na lógica da civilização adotada pelos seres humanos. Enquanto as sociedades antropofágicas cuidavam bem de suas crianças, nas sociedades que abandonam e exploram suas crianças, o canibalismo é tabu, é um ato abominável. Para respeitarem o horror à antropofagia, as perversas sociedades modernas abandonam suas crianças ao horror de um neocanibalismo. Muitas vezes, sem nem sequer perceberem.
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Tudo isto por falta de outra “modesta proposta”: em vez do neocanibalismo atual, escola igual para todos.
2 comentários:
Marcelo, nossos hábitos e nossa política são de arrepiar - e não é de agora. Cistovam é uma dessas raras pessoas que ainda têm coragem suficiente pra denunciar, chamar as coisas pelos nomes, jogar a verdade na cara da gente. Acho uma pena que o escravismo não tenha virado um tabu tão respeitado quanto o canibalismo, em nossa sociedade.
Um beijo pra você, menino.
Horripilante, MARCELO!
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