sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

Uma das coisas bonitas dessa vida é ler coisas como a história que reproduzo do Jens. Sou suspeito ao falar de muitos dos blogues que posto por aqui (freqüento diariamente e adoro muitos deles). Com a Toca do Jens não é diferente.
Vamos ao texto:
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MEU PRIMEIRO AMOR
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Adolescência é época de mudanças e descobertas. Os hormônios se assanham, produzindo alterações físicas; os neurônios encenam um bailado insano, nos relevando aspectos até então desconhecidos sobre nós mesmos e o mundo que nos rodeia.
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Foi nessa época que conheci a Naira, a filha do seu Antonio e da dona Leonor – vizinhos de frente da nossa nova casa (sempre em Ipanema). Eu tinha doze ou treze anos. A paixão foi à primeira vista. Fulminante. Ela tinha a minha idade. Era baixinha com cabelos pretos, crespos e abundantes, corpo sinuoso, coxas roliças, seios miúdos, bumbum saliente. O sorriso solar era um convite permanente às peraltices de menina. O olhar disparava faíscas de vida e alegria. A mulher mais bonita e gostosa do universo, na minha opinião juvenil. E era morena – branca, para os padrões nacionais. Na verdade, sua mãe era um pouco mais clara do que eu (portanto, de novo, branca).
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Como se diz hoje, rolou uma química entre nós. De maneira mais simples: gostei dela e ela de mim. Eu escrevia algumas bobagens que chamava de poemas e dava pra ela ler. Ela fazia o mesmo. Sentávamos lado a lado e conversávamos na área da frente da minha casa sobre as coisas do mundo (o nosso mundinho adolescente e o mundo grande e cruel). Nestas ocasiões eu ficava inquieto, espicaçado violentamente pelos sintomas do desejo. Disfarçadamente lançava olhares atormentados e gulosos para suas coxas, sempre à mostra em shorts justíssimos. Vez que outra ela tocava meu braço para enfatizar um comentário que julgava mais judicioso. Em outras, sua perna tocava a minha. Profundamente perturbado eu gaguejava, não conseguia pensar direito. Ela percebia e se divertia (as mulheres sempre dominam melhor estas situações). Mas a excitação também a dominava, era o que revelava o brilho dos seus olhos escuros.
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Namorava o Jorginho. Um mulato claro (branco, para os padrões de então). O pai dele era proprietário de uns dos poucos carros da vizinhança (uma caminhonete DKW), o que lhe clareava ainda mais a pele.
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Eu dançava (danço) muito mal. Eu disse muito. E pouco. Era o único negro de uma turma de mais de 10 guris e gurias. Nunca me discriminaram (com exceção do Jorginho. Certamente por ciúme e por ver em mim um igual). Mas havia os outros, os adultos. E, como disse Sartre, o inferno são os outros e, neste inferno, não eram bem vistas pessoas brancas que namoravam pessoas negras, ainda mais aquelas que, como eu, aderiram ao black power. Dona Leonor, especialmente, compartilhava desta visão. Não a culpo. Queria o melhor para a filha, economicamente falando, e, neste sentido, eu não era uma promessa alvissareira (além de negro, sonhador, “metido a poeta”, sem nenhum senso prático. Ela tinha razão).
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Eu e a Naira não dançamos juntos uma única vez nas inúmeras reuniões a que fomos com o resto do pessoal. Se isto tivesse acontecido, tenho certeza de que estaríamos juntos até hoje. Uma simples dança, um simples envolver-se em um abraço desencadearia uma revolução que nos faria ver a maravilha que seria viver juntos. Acho que não abriríamos mão dessa oferta. Mas faltou coragem. Faltou seguir o conselho do poeta “não dar bola pro perigo, deixar o barco correr”. Faltou viver a literatura. Mas éramos muitos jovens e os ventos rebeldes que açoitavam a juventude de outras plagas ainda sopravam timidamente nas ruas, esquinas e vielas de Ipanema.
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Como disse, não aconteceu. Quando ela fez 15 anos, participou do Baile de Debutantes do Grêmio Náutico Gaúcho. Um capricho da mãe, já que aquela não era a sua grei. A maioria da turma foi. Eu não. Na época, negros não podiam entrar no clube. E eu jamais faria como uma amiga da minha mana (que, sensatamente, era de outra turma composta por negros, na maioria, e brancos), que passou em todo o corpo um creme que as demais mulheres só usavam no rosto, a fim de embranquecer a pele e ir no famigerado clube. Não entrou. E, além do vexame, foi execrada por suas iguais.
Engraçado: nos últimos tempos tenho ido ao GNG com freqüência, por conta de eventos organizados ou com a presença do Chefe Simon. Alguma coisa mudou para melhor.
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Quando comecei a trabalhar num escritório de representação comercial, onde ficava longos períodos como o único responsável (seu Domingos, o português que era o dono do negócio, fazia longas viagens pelo interior do estado no meio e no final do ano) ela me visitava freqüentemente. Eram adoráveis aquelas conversas vespertinas.
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Concluindo: eu e a Naira nunca dançamos, nunca namoramos, nunca nos abraçamos, nunca nos beijamos e nunca deixamos de nos gostar. Soube depois, por uma amiga comum, que, estando eu casado e ela também, ambos com filhos, ao responder à indagação se era feliz, disse que não. Que a sua chance de felicidade era ter ficado comigo, como obviamente todos sabiam.
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Esta foi a primeira vez que fui assassinado. Como o poeta, então perdi um certo jeito de sorrir que eu tinha e passei a andar assim meio de banda.
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Apesar disso, na minha lembrança estes dias eram sempre ensolarados.
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Naira is dead.
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