domingo, 4 de novembro de 2007

Ela e o livro


Acabara de fechar As Moscas, de Sartre, e a certeza do bom livro, assim como o bom vinho, ficou na boca durante um tempo. Outra certeza era o amor pela filha e todas as suas pirraças, manhas, choros e aquele sorriso espontâneo que vem de lugar nenhum e irradia o coração do sol, que dá vontade de abraçar a tarde toda, infinitamente. O amor sufoca? Será que enche o saco ao outro lado? Mima? Meditava sobre o amor e a resistência quando os primeiros pingos caíram, suaves aqui, pesados acolá, desproporcionais como o caos, mas com uma liberdade confortante e, quiçá, estável. Levantar da cadeira disposta no lugar mais fresco do quintal resultou num exercício difícil, mas os pingos aumentaram, Sartre continuava em sua mão e sua filha corria em sua volta, formando círculos indecifráveis. Pegou-a pela mão esquerda e conduziu, ela e o livro, até a sala. A partir daí a chuva ganhou proporcionalidade e caiu em todo o seu vigor e explosão. O terraço em alumínio do vizinho dava a impressão de guerra, no quintal tudo era ensurdecedor. Ficara tanto tempo à porta olhando o torrencial desabar que, como em um mantra, entrara em transe; seus olhos distantes, opacos, a chuva caindo dentro e fora e o imenso espaço sendo inundado – água tomando os centímetros. Foi quando começou a chorar. Foi quando decidiu entrar na chuva por dois motivos: estava disposto a lavar metaforicamente alguma coisa dentro, assim como era necessário esconder o seu choro soluçar da filha que o olhava justamente com aquele sorriso. Algo cíclico chegara ao fim e não era o amor pela filha ou a chuva que resolvera transbordar outros quintais e corações. A sensação de liberdade era palpável e ele pôde contemplar, mesmo encharcado, o outro lado do fim.

4 comentários:

o refúgio disse...

Bonito, Marcelo, bonito.

Um beijo, Moço da Chuva. ;)

AB disse...

Adorei o "resumo da chuva", MARCELO..

Anônimo disse...

Gostei!

Fernanda Passos disse...

Lindo Marcelo.......meditações existencialistas sobre o amor. E esse livro de Sartre explicita isso muito bem. A condenação da liberdade.
;;))