sexta-feira, 27 de julho de 2007

Um dia frio

A tristeza sempre o invadia em dias de frio e chuva fina, nunca gostou de ficar enclausurado, por causa da chuva, como ursos em hibernação; gostava menos ainda do frio. Calor se resolvia com um refrigerador de ar, mas inverno e chuvisco só se resolvia com amigos, amantes e vinho, caso contrário tudo poderia se tornar incompensável, afogadamente tedioso e triste. Livro e lareira também ajudava vez em quando, mas a cabeça não estava para leitura. E a coriza que não parava de descer, a manta sobre o colo deixava-o com uma preguiça revoltante e impraticável. Ligou a televisão, mas os programas insistiram em subestimá-lo com doses e pedaços fartos de desvio moral, com argumentos simplórios e tendenciosos recheados de complexidade tacanha e filosofia de festa de aniversário. Foi quando decidiu ligar para a filha que não falava havia alguns dias. Saíra da casa dela brigado, mandara o genro às merdas e ao PT e xingara a filha de tucana, de vendida, enfim. O telefone tocou muitas vezes e mais uma segunda vez, quando estava prestes a desistir, o auscultador, como era chamado pelo genro português e vascaíno, despertou e uma voz sem muita expressão disse “o que é?...” Eles tinham identificador de chamadas. “Sou eu.” Queria dizer coisa mais inteligente, mas a falta de expressão na voz do outro lado da linha o limitara e essas duas palavras bestas, óbvias, mas vivas. “E o que cê quer, porra?” A pergunta era bem direta, mas pelo menos a expressão voltara. “Eu queria dizer que estou numa depressão que só, por causa do avião, por causa do senado, por causa do Flamengo, dos ministros, do Pan, do morro do Alemão, por causa dos cambal, mas não agüento mesmo é ficar no frio sem dizer que te amo, minha filha.” O outro lado calou por alguns segundos eternos e frios. De repente, um forte calor vindo de um leste vivificante e abrupto, um estrondo de choro morno e bem-vindo desceu ladeira abaixo pelos buracos encostados ao ouvido do homem, quase podia se sentir a umidade. “Eu também te amo, seu filho-da-puta.” E isso também era amor.

5 comentários:

Fernanda Passos disse...

Ah Marcelo! Que massa. Lindo texto.
Alegre, concreto, quente. Nada de frio ou umidade nele( a não ser pelo choro dos personagens).
;)
Bjs.

o refúgio disse...

Belo texto, Marcelo! Você escreve tão bem, cara! Mas eu sou meio ursa, gosto de hibernar, ainda bem que no Nordeste o frio dura quase um segundo (risos).

Beijão.

Jens disse...

PQP, Marcelo! MUITO BOM!

Moacy Cirne disse...

Concordo com a galera: apesar do frio, o texto é quente. E bom. Um abraço.

Fernanda Passos disse...

Boa semana.
Bjs.