terça-feira, 10 de julho de 2007

O ódio incerto

Já estava planejado e era certo que a operação seria demorada, pouco cirúrgica ou convincente, mas seria apoiada e oficialmente legal. Aos primeiros sons que acordaram, sem dúvida, os deuses (Ares e Hades, principalmente), não houve tempo para pensar, sequer na filha que deixara em casa com febre ou na discussão com a esposa horas atrás, foi lá e fez o que disseram para fazer. Simples assim. Ou não tão simples. Em sua roupa o cheiro de pólvora era inevitável, como inevitáveis eram os gritos de delírio e demência de ambos os lados. O que caiu à sua frente não eram restos do seu corpo, mas do seu espírito, um resquício de virgindade e inocência cultivada em banho-maria por anos de amor familiar e educação adequada. O que caiu à sua frente, em meio a fumaça do ódio e do gatilho automático, era antes uma carcaça que o sol não conseguiu atingir primeiro, que a sociedade não conseguiu abraçar. O que caiu, caiu como um pacote, atropelando o cenário já opaco, de beleza duvidosa e rejeitada, atrapalhando o tráfego, as botas pesadas que ecoavam em solo incerto. Teve a sensação de euforia injetada, uma adrenalina confusa que era medo misturado à ordem primeira, medo misturado à locomotiva da ação. Precisava seguir em frente e derrubar mais um. Queria sumir por um segundo, rasgar a roupa suja de dúvida e secadura, mas um segundo era o tempo de um zunido, não havia espaço para a piscada de olhos, uma reflexão sobre a vida. A vida não estava ali. Só os gritos que indicavam sobrevivência lacrimejante. Os músculos estavam retraídos, precisava beber alguma coisa rapidamente, precisava ouvir Chico Buarque, amar, visitar os amigos, fazer um churrasco. Alguém colocou as mãos em seu ombro, era uma mulher que tremia nos lábios, que tremia com a alma, arrastando um garoto, pedindo ajuda. Como ajudar? E se ela cuspisse fogo redentor? Apontou o dedo indicador e mandou-a abaixar, mãos à cabeça, identificar-se. Estaria sendo humano? Não havia humanidade naquele momento. Os ponteiros do seu relógio andavam com preguiça, quase sussurrando algo aterrador. Mesmo com os ouvidos ocupados, pode ouvir do hálito roxo que saía da boca da mulher que o jovem era inocente, seu filho, seu mundo. O mundo havia desabado, o inocente mundo abria os olhos e gritava em terra vermelha algo gravitacional. Carajás estava ressurgindo na figura de uma favela.

6 comentários:

Jens disse...

Porrada!

o refúgio disse...

Puxa, Marcelo, excelente, cara, excelente! Lembrar de Carajás foi tocante.
Um beijo.

Fernanda Passos disse...

Nossa! Que analogia cara! Brilhante. O teu texto tá muito bem escrito. É concreto, real.
Amei chegar aqui. Vim através do blog do Fernando e voltarei com certeza.

Fernanda Passos disse...

Marcelo, você é quem tem que me ajudar a melhorar! Imagina, sou apenas uma "aventureira" nessa arte. ;)
Você é muito bom.
Posso linkar teu blog?
E obrigada por ter "ido" tão rapidamente.

rsrs.
bjs.

Marcelo F. Carvalho disse...

Seria uma honra, Fernanda. Obrigado mesmo.
Abraço forte!

Fernanda Passos disse...

É Marcelo, ninguém banho no mesmo rio duas vezes....já dizia o bom e velho Heráclito. Saca esse cara?

Valeu.