Foi
justamente quando Joshua Redman estava executando Silence is the Question que a campainha tocou. Claro que era
heresia e atentado ao pudor levantar-se para abrir a porta, claro que àquela
penumbra, aquele uísque Green 15 anos, bem no desmaio do dia, ainda com a roupa
que chegara do trabalho, mas descalço, óbvio, que para escutar Silence é preciso estar meio despido,
entregue. Aquele piano, aquela bateria, aquele baixo e aquele Redman. Sem
pedras de gelo no uísque, por favor, que o malte precisa descer, driblando as
notas de deus, os seus 72 nomes soprados no sax da árvore da vida Joshua.
Foi
na quarta vez que a campainha soou que ele teve o seu momento de sobriedade e
reparou no som destoante vindo do canto da parede oposta às caixas de som. Levantou-se
com a boca torta de contrariedade, com a respiração prolongada buscando algo de
controle e incômodo. Parou a porta, tomou uma dose a mais do bom Green e
respirou.
–
Precisamos conversar – Ela disse secamente.
Claro
que precisavam conversar. Obviamente não precisava ser naquele momento, com ele
tão fragilizado e nu. Nu e acabando de sair de um transe, de um exercício de
reflexão sobre o essencial, sobre ele, o mundo, o micro e o macrocósmico. Claro
que o Joshua e o Green estavam ajudando consideravelmente, como conselheiros do
reino interior, Shekinnah.
Claro
que precisavam conversar e resolver outros mil problemas que a cabeça quente
impedira de transformar em equilíbrio, em política, diálogo. A questão maior
eram os filhos. Nem tanto a casa de praia, nem tanto o carro. “Pode ficar com
tudo, eu só quero o meu espírito de volta”, disse a mulher no ápice do furacão.
Contudo, mesmo entregando o espírito, ele sabia que não era justo. Isto é frase
solta em momento de vômito e crueldade. Só serve para ferir e afastar o
entendimento. Ele sabia disso tudo.
E Existia esse
apartamento que ele fazia de escritório e de motel. Sempre que as contas na sua
empresa apertavam era para lá que ele se ilhava junto às planilhas e ao
inseparável laptop e só saía quando o Excel
zerava o balanço. Também usava dizendo ser este o motivo, mas a verdade é que
muitas putas conheceram aquele sofá reclinável, um pró-seco e um Redman. Tinkle, Tinkle, Whittlin, Salt Peanuts...
Porra, mirar a rolha do espumante e acertar as ancas de uma mulher tendo estas
músicas como coadjuvantes é coisa pra quem gosta de se lambuzar.
Não
pensou duas vezes, pegou as roupas, a chave do carro, rumo ao apartamento,
abandonou todo o resto. Mas depois de um longo inverno e uma chata primavera, a
sensação de que precisava ficar mais tempo com os filhos só fez crescer. Ela
sentiu um desconforto fodido no inverno, chorou algumas vezes escondida, talvez
dela mesma, debaixo do edredom, talvez para não sentir vergonha. Mas na
primavera já dava sinais de alguma alegria, uma vontade maior de tomar um chope
devidamente maquiada, uma roupa nova, um perfume da Chanel. Quis experimentar
outras danças, outros sexos e outras filosofias. Ele era um adepto do jazz com
saxofone. Ela adorava o Thelonious Monk. “Ele sabia onde colocar os dedos”, ela
dizia.
Agora
estavam eles naquele apartamento, aquela penumbra, aquele uísque 15 anos e o
saxofone do Redman.
–
Quer ouvir um Monk? – perguntou o homem cheio de maresia e maldade. Queria
colocar as mãos dentro daquela calça jeans clara que ela veio, mas logo
percebeu o seu lapso de puro machismo canino e esperou a resposta.
–
Quero que você tome no cu. Não estou aqui pra isso.
Ele
sorriu largamente. De certa forma, adorou a resposta. Mulher feita de rio, de chuva
e trovoada; a mulher-mulher.
–
Sente-se. Nós realmente precisamos conversar.
Por
duas horas conversaram sobre feridas, cicatrizes, a casa de praia, o verão das
crianças, as férias na Disney do filho mais novo. Ao final surgiu um segundo
copo e um Monk.
–
Você não vai me comer – Sorriu a mulher.
–
Eu sei. E eu acho que me inspiro mais nos dedos do Evans.
E
este foi o começo de alguma amizade.
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