quarta-feira, 1 de maio de 2013

Redman, Monk e Evans


                Foi justamente quando Joshua Redman estava executando Silence is the Question que a campainha tocou. Claro que era heresia e atentado ao pudor levantar-se para abrir a porta, claro que àquela penumbra, aquele uísque Green 15 anos, bem no desmaio do dia, ainda com a roupa que chegara do trabalho, mas descalço, óbvio, que para escutar Silence é preciso estar meio despido, entregue. Aquele piano, aquela bateria, aquele baixo e aquele Redman. Sem pedras de gelo no uísque, por favor, que o malte precisa descer, driblando as notas de deus, os seus 72 nomes soprados no sax da árvore da vida Joshua.
                Foi na quarta vez que a campainha soou que ele teve o seu momento de sobriedade e reparou no som destoante vindo do canto da parede oposta às caixas de som. Levantou-se com a boca torta de contrariedade, com a respiração prolongada buscando algo de controle e incômodo. Parou a porta, tomou uma dose a mais do bom Green e respirou.
                – Precisamos conversar – Ela disse secamente.
                Claro que precisavam conversar. Obviamente não precisava ser naquele momento, com ele tão fragilizado e nu. Nu e acabando de sair de um transe, de um exercício de reflexão sobre o essencial, sobre ele, o mundo, o micro e o macrocósmico. Claro que o Joshua e o Green estavam ajudando consideravelmente, como conselheiros do reino interior, Shekinnah.
                Claro que precisavam conversar e resolver outros mil problemas que a cabeça quente impedira de transformar em equilíbrio, em política, diálogo. A questão maior eram os filhos. Nem tanto a casa de praia, nem tanto o carro. “Pode ficar com tudo, eu só quero o meu espírito de volta”, disse a mulher no ápice do furacão. Contudo, mesmo entregando o espírito, ele sabia que não era justo. Isto é frase solta em momento de vômito e crueldade. Só serve para ferir e afastar o entendimento. Ele sabia disso tudo.
E Existia esse apartamento que ele fazia de escritório e de motel. Sempre que as contas na sua empresa apertavam era para lá que ele se ilhava junto às planilhas e ao inseparável laptop e só saía quando o Excel zerava o balanço. Também usava dizendo ser este o motivo, mas a verdade é que muitas putas conheceram aquele sofá reclinável, um pró-seco e um Redman. Tinkle, Tinkle, Whittlin, Salt Peanuts... Porra, mirar a rolha do espumante e acertar as ancas de uma mulher tendo estas músicas como coadjuvantes é coisa pra quem gosta de se lambuzar.
                Não pensou duas vezes, pegou as roupas, a chave do carro, rumo ao apartamento, abandonou todo o resto. Mas depois de um longo inverno e uma chata primavera, a sensação de que precisava ficar mais tempo com os filhos só fez crescer. Ela sentiu um desconforto fodido no inverno, chorou algumas vezes escondida, talvez dela mesma, debaixo do edredom, talvez para não sentir vergonha. Mas na primavera já dava sinais de alguma alegria, uma vontade maior de tomar um chope devidamente maquiada, uma roupa nova, um perfume da Chanel. Quis experimentar outras danças, outros sexos e outras filosofias. Ele era um adepto do jazz com saxofone. Ela adorava o Thelonious Monk. “Ele sabia onde colocar os dedos”, ela dizia.
                Agora estavam eles naquele apartamento, aquela penumbra, aquele uísque 15 anos e o saxofone do Redman.   
                – Quer ouvir um Monk? – perguntou o homem cheio de maresia e maldade. Queria colocar as mãos dentro daquela calça jeans clara que ela veio, mas logo percebeu o seu lapso de puro machismo canino e esperou a resposta.
                – Quero que você tome no cu. Não estou aqui pra isso.
                Ele sorriu largamente. De certa forma, adorou a resposta. Mulher feita de rio, de chuva e trovoada; a mulher-mulher.
                – Sente-se. Nós realmente precisamos conversar.
                Por duas horas conversaram sobre feridas, cicatrizes, a casa de praia, o verão das crianças, as férias na Disney do filho mais novo. Ao final surgiu um segundo copo e um Monk.
                – Você não vai me comer – Sorriu a mulher.
                – Eu sei. E eu acho que me inspiro mais nos dedos do Evans.
                E este foi o começo de alguma amizade.



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