Entre o bilhete da passagem e a cavaca (massa dura e doce vendida em padaria), preferiu voltar a pé, ou, como diria seu filho mais velho, de “viação canela”. O caminho era relativamente longo, mas o que fazer? A fome depois do trabalho falou alto.
Atravessou a passarela que dava para a praça principal, eram dez horas da noite e as crianças ainda brincavam na gangorra e no escorrego posto na praça pela prefeitura. Aliás, uma das poucas realizações da atual administração que desde o começo mostrou-se preocupada em decorar praças públicas e criar portais nas entradas da cidade. Olhou um longo tempo para as crianças brincando, sujas de areia. Dez horas da noite... Areia que o sol lascou, que os cachorros urinaram, que o mendigo escarrou; areia que fazia sentido e trazia doenças. Olhou um longo tempo, mas não pode perceber o que estava por trás das horas no relógio digital da praça, nem o que ainda faziam as crianças sujas na gangorra. Olhou mas não viu muito, talvez o sorriso de um e a briga de outro, o furo essencial em uma das camisas, o indício de sarna em beltrano.
A sua cavaca estava quase no fim, a caminhada quase no meio e a praça começando a feiúra noturna de sempre: mendigos, marginais, pivetes, drogados. Chegavam, um a um, como que obedecendo a um chamado ou ao grito de uma sirene indicando começo de turno. Vinham das incertezas da vida, das tortuosas estradas, das protetoras marquises.
Olhou e quase não viu. Passou batido pelos problemas alheios que não o interessavam, não viu o real motivo das crianças brincarem na praça suja, e eles sujos também, às dez horas da noite. Não se importou, a cavaca era mais importante, o caminho até sua casa muito mais importante. Será?
Olhou e não viu nada. Será?
Talvez fingia não ver, com medo de lembrar dos filhos, medo do futuro, medo de falhar. Talvez a estrutura política tenha feito isso com ele, uma vítima dele próprio e de toda uma sociedade que se movimenta sobre mortos e humilhados. Entre a vida e a aniquilação.
O que fazem crianças brincando às dez da noite na praça suja? Não sabe ele, talvez nunca saiba. Por que a prefeitura gastou e gasta tanto com praças e portais? Talvez a resposta esteja aí, mas o medo é maior que a justiça. O medo da aniquilação é maior. E ele passa batido.
Atravessou a passarela que dava para a praça principal, eram dez horas da noite e as crianças ainda brincavam na gangorra e no escorrego posto na praça pela prefeitura. Aliás, uma das poucas realizações da atual administração que desde o começo mostrou-se preocupada em decorar praças públicas e criar portais nas entradas da cidade. Olhou um longo tempo para as crianças brincando, sujas de areia. Dez horas da noite... Areia que o sol lascou, que os cachorros urinaram, que o mendigo escarrou; areia que fazia sentido e trazia doenças. Olhou um longo tempo, mas não pode perceber o que estava por trás das horas no relógio digital da praça, nem o que ainda faziam as crianças sujas na gangorra. Olhou mas não viu muito, talvez o sorriso de um e a briga de outro, o furo essencial em uma das camisas, o indício de sarna em beltrano.
A sua cavaca estava quase no fim, a caminhada quase no meio e a praça começando a feiúra noturna de sempre: mendigos, marginais, pivetes, drogados. Chegavam, um a um, como que obedecendo a um chamado ou ao grito de uma sirene indicando começo de turno. Vinham das incertezas da vida, das tortuosas estradas, das protetoras marquises.
Olhou e quase não viu. Passou batido pelos problemas alheios que não o interessavam, não viu o real motivo das crianças brincarem na praça suja, e eles sujos também, às dez horas da noite. Não se importou, a cavaca era mais importante, o caminho até sua casa muito mais importante. Será?
Olhou e não viu nada. Será?
Talvez fingia não ver, com medo de lembrar dos filhos, medo do futuro, medo de falhar. Talvez a estrutura política tenha feito isso com ele, uma vítima dele próprio e de toda uma sociedade que se movimenta sobre mortos e humilhados. Entre a vida e a aniquilação.
O que fazem crianças brincando às dez da noite na praça suja? Não sabe ele, talvez nunca saiba. Por que a prefeitura gastou e gasta tanto com praças e portais? Talvez a resposta esteja aí, mas o medo é maior que a justiça. O medo da aniquilação é maior. E ele passa batido.
11 comentários:
Sociedade atomizada. Seres desenraizados e alienígenas ao mundo e à eles mesmos.
É f***************.
O medo paralisa.
A falta de ação perpetua.
A alienação hegemônica.
Caramba!
Tem que ter ao menos esperança de que se nós construímos esse estado de coisas, também podemos mudar.
Certo ou errado?
Beijos.
Fernanda, não há como discordar. "Seres desenraizados e alienígenas"... É exatamente a mensagem. Porém, como isso é literatura, está certa toda a expressão pessoal. Hehehehe...
______________
Abraço forte!
"CHAgavam um por um..." Me pergunto se foi proposital ou erro de digitação, MARCELO...
Me falou tão apropriado, infelizmente... Confesso ter ouvido a voz das elites, rotulando..
Corrigido, Acantha! Foi erro de digitação mesmo. Aliás, elitismo nada! Pode apontar o erro que eu coloco um curativo! Hehehe
___________________
Abraço forte!
Marcelo:
Infelizmente, a cegueira voluntária não elimina a realidade. Mas certamente a ameniza - o que permite a sobrevivência. Quem consegue olhar o abismo permanentemente e não enlouquecer? (ou, como Camus, não considerar seriamente a hipótese do suicídio?)
Jens, concordo plenamente...
Abraço forte!
Crianças sem lares: até quando? até quando?
Belo texto, Marcelo.
Beijo.
Marcelo, um texto com várias e sábias interpretações de seus interlocutores/leitores.
esse texto tá f**** mesmo.
Ei! Vc ainda n me disse o que queria saber sobre filosofia e pós-modernidade. Direcione seu questionamento e verei se posso ajudar.
Um bj.
Sandrinha, infelizmente acredito que morrerei escrevendo/lendo coisas assim... E o mundo passa batido...
_____________________
Abraço forte!
Olá Professor,
concordo com o Jens, quem não enlouquece, só se for indiferente, como diz um texto muito bom do Gramsci que fala sobre a indiferença, que é a pior postura que se pode ter. Às vezes é um sentimento de impotência diante de todas as mazelas que estão por ai, mas eu acredito tanto nas ações coletivas de mudança como nas individuais.
E adoro esses textos reflexivos que você faz usando a terceira pessoa.
Abração Marcelo.
Vais, ouvi uma vez alguém dizendo isso, mas sobre a fé: "a dúvida faz parte da fé, a única coisa que não é fé é a indiferença..." Algo nesse sentido e isso me tocou de certa forma. Sim, tudo é válido a não ser a indiferença. Às vezes penso que muitas vezes somos indiferentes como uma forma de nos protegermos, de nos resguardarmos, mas sem dúvida é algo ruim. Daria outro conto mínimo... hehehe
________________
Abraço forte!
Postar um comentário