sexta-feira, 20 de maio de 2011

GUEST POST: OS LIVRO ENSINA, NÓIS APRENDE

Por: LOLA ARONOVICH


Tadinho do aluno que tiver que escolher entre certo e errado na língua

Apesar de não acompanhar as polêmicas vazias que a mídia costuma criar, eu me dei conta da dimensão do novo “escândalo” quando, na aula de quarta, uma aluna emendou sua revolta com o Bolsa Família com sua mais profunda indignação ao governo querer que a escola ensine o aluno a falar errado! Perguntei o que é errado, e do ponto de vista de quem algo é errado, e se competêncialinguística não seria justamente se comunicar de forma diferente em diferentes contextos. Fiquei preocupada que meus alunos de Letras nunca tinham ouvido falar em Preconceito Linguístico, do Marcos Bagno, mas talvez eles só não tenham entendido a referência no calor da discussão. Espero.
Este “escândalo” todo é
um bom modelo de como a gente não deve aceitar as “verdades” da mídia sem refletir, sem pensar, sem correr atrás de informação. Porque o livro do MEC que os reaças parecem querer queimar na fogueira não fala nada dissoque dizem que ele disse. No YouTube há um exemplo brilhante do que acontece quando uma jornalista chama especialistas pra uma entrevista e eles se recusam a repetir as besteiras previamente estabelecidas pela mídia (veja a Monica Waldvogel sugerindo, injuriada, se não discriminar um aluno que fala “errado” não equivale a confundi-lo).
Bom, eu quis chamar alguém muito mais gabaritado do que eu pra discutir o assunto, e portanto pedi pro Diego Jiquilin, umfofo que conheci (ainda não pessoalmente) pelo Twitter, pra escrever um guest post. E ele atendeu prontamente. Diego tem um excelente blogsobre língua e atualmente é professor leitor no Paraguai. É formado em Linguística pela Unicamp, fez mestrado em Filologia Hispânica na Espanha, e cursa doutorado em Linguística, também na Unicamp. E olhem só, nem todas essas credenciais fazem com que o Diego (e, pra ser franca, nenhum outro linguista que li) tenha a arrogância de dizer para um aluno “Você não sabe falar sua própria língua materna, seu pobre”. Mas é essa mesma arrogância que tanta gente da classe média quer manter. E sem apresentar credencial nenhuma além do seu privilégio de classe.

Na Idade Média (e por muito tempo depois dela), as pessoas validavam um conhecimento como verdadeiro se a igreja o confirmasse como sendo uma “verdade”. De lá pra cá, algumas coisas mudaram, porque trocamos a igreja pela universidade (bom, no caso da camisinha, a igreja ainda faz muita gente acreditar que usá-la é errado). E pudemos também relativizar cada vez mais essas verdades.
Mas, no resto, a universidade ganhou esse papel de abalizadora do conhecimento. Quantas vezes não escutamos: “segundo pesquisas da universidade X (e nesse X costuma vir o nome de alguma universidade poderosa dos EUA), a gordura TRANS faz Y (e nesse Y vem um monte de consequências ruins)”.
Por um lado, é bom que tenhamos substituído a igreja pela universidade, afinal existe todo um método científico para se desvendar o conhecimento. Mas, por outro lado, em muitos casos, apenas substituímos os velhos preconceitos por novos (ou o vestimos com uma nova roupagem). A academia também cria e legitima seus preconceitos, lembremos da psicologia evolucionista, por exemplo.
Se antes, qualquer um que contrariasse a ideologia da igreja, iria para a fogueira, hoje isso já não acontece (acho que porque já não fazemos fogueiras humanas). O que nos diferencia de forma capital de nosso passado é que a academia também combate esses preconceitos. E as polêmicas em torno desses problemas é que fazem as ciências e as sociedades caminharem.
No entanto, esse discurso da verdade é mais ou menos heterogêneo entre as distintas ciências. Aquelas que movimentam mais capital são “mais verdadeiras” que aquelas que movimentam pouco capital. Trata-se de uma equação muito simples. Na verdade, uma ciêncianão é mais verdadeira que outra, mas os seus discursos validam mais verdades que outras. E tudo isso tem uma relação com o poder político-econômico.
Com isso quero dizer que as ciências ditas humanas têm uma voz muito fraca na sociedade, enquanto que as ciências exatas e biológicas são as que geralmente respaldam as “verdades” do mundo.
A Linguística, que é a ciência de que me ocupo, é uma das que menos tem valor. Mas isso não se deve apenas ao fato de que ela faz circular pouco capital, como venho dizendo. Devo somar também dois outros fatores:
i) Quase ninguém sabe sobre a Linguística. O que ela é. O que ela estuda. Como ela estuda. Para que serve;
ii) A língua, que é seu objeto, está em toda parte. Todas as outras ciências são permeadas pela língua. A arte é perpassada pela língua. Tudo que é humano tem uma língua.
Então, nós, os linguistas, temos de lidar com nossa insignificância, porque não descobrimos petróleo, porque somos ignorados pela sociedade e porque qualquer um se sente apto a falar o que bem quer sobre as línguas.
E neste último ponto reside uma polêmica. Eu acredito que todo mundo deve discutir sobre as línguas, é um exercício saudável, como veremos no caso anedótico da vez. Mas opathos deve ficar guardado.
Toda vez que alguém fala de língua (geralmente da sua língua materna), ele evoca todo um sentimento ufanista, de proteção ao seu idioma etc.
Quase todo mundo é reacionário em matéria de língua! Quase ninguém sabe lidar com o fato de que a língua muda.
Mas por que as pessoas não conseguem ver o óbvio sobre a sua língua? De alguma forma, é porque a escola durante muito tempo as treinou para que elas não pensassem, não fossem criativas. A escola durante muito tempo só trabalhou com questões de memória. E memorizar uma gramática de normas (a gramática normativa) sempre foi, para a escola, mais fácil que observar a língua e seus usos. A gramática normativa sempre foi o escudo dos reacionários, o escudo das maiorias, o escudo do preconceito linguístico.
E agora que estamos diante de mais uma polêmica linguajeira fica evidente o quanto essa ideologia fascista, que não sabe conviver com as diferenças, é um sujeito oculto nas mentes brasileiras.
O livro didático de língua portuguesa adotado pelo MEC (Ministério da Educação) é quem traz a lebre dessa vez.
Armou-se o maior frisson, nos últimos dias, porque o MEC supostamente estaria propagando a mentalidade de que discutir a língua em uso é necessário. Já pensou?! Pobres das crianças, agora elas seriam obrigadas a pensar mais sobre a língua que elas usam!
Mas aí também há um equívoco: o livro, que se intitula Por uma Vida Melhor, não é destinado às crianças. Ele é adotado pelo programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA).
O capítulo “Escrever é diferente de falar” deu pano pra manga, porque as autoras mostraram as regras de funcionamento de uma variedade coloquial falada do nosso português brasileiro. Ou seja, elas fizeram as vezes de um linguista!
Ao contrário do que se anda dizendo por aí, o livro não prega que não se deva ensinar a gramática normativa ou a norma culta; pelo contrário, por meio da discussão das outras variedades do português é que se contextualiza essa norma culta. Como também sou professor de português para estrangeiros, sempre faço isso nas minhas aulas. Já pensou um estrangeiro falando como um livro? Seria muito estranho, não?
O que chama mais atenção nesse alarde todo é que a reação começa na mídia.Vocês viram como fala bonito o tal de Alexandre Garcia?[Nota da Lola, que não pôde resistir: só agora vi o discurso revoltado do jornalista, e meu deus! Ele fala em "vencer na vida", no valor de "uma educação tradicional e rígida" e da meritocracia, e lamenta que no Brasil, este país não-civilizado, bandidos não sejam algemados. Todo o ideário da classe média resumido em poucos minutos!].
“Aboliu-se o mérito para não constranger”. Eu morro de rir com essas frases, porque é gostoso ver um reaça se afogando com a voz da ciência (esse é um dos casos em que a ciência combate um preconceito!)
Gente, se abolirem a meritocracia, o que será dos bem-nascidos? Eu tô morrendo de dó deles. Imaginem só, os negrosteriam maior acesso ao ensino superior. As mulheres poderiam ganhar um salário mais igualitário ao do homem. Os homossexuais poderiam adquirir direitos civis. E os pobres poderiam falar como falam!
Sendo assim, nada de ensinar as variedades coloquiais faladas pelo povo!
E você também poderia me refutar: ensinar um estrangeiro não é como ensinar o falante nativo. Claro que não. Não se trata de ensinar a variedade popular para o nativo. Aposto que essa variedade ele já aprendeu por aí! Gente, é só uma questão de inclusão, de reflexão, de contextualização da tão importante norma culta.
Lembro-me sempre nas épocas de campanha do Lula. A imprensa caía matando, porque o Lula falava “errado”: um presidente que não sabe nem falar, vai presidir o país como?
Realmente, a mídia é completamente ignorante quanto aos assuntos sobre língua. Nesse nosso caso, ela só deixa evidente qual é a sua ideologia: a das direitas conservadoras.
Para que fique claro de uma vez por todas, não existe certo e errado na língua. “Gramática” não é sinônimo de “gramática normativa”. Toda língua, toda variedade tem gramática. Toda língua, toda variedade se organiza em torno de regras. “Os menino foi” tem regras de concordâncias mais parcimoniosas que “os meninos foram”.
E onde uma é usada, onde a outra é usada? Quem as usa, em que contexto as usa? Estas seriam indagações muito mais interessantes para aquele que reflete sobre sua língua.
Pergunto novamente: por que as pessoas não conseguem entender essas obviedades todas? Eu já disse que a escola tem muito a ver com isso. Mas a sociedade também tem. Andei lendo muitas besteiras no twitter e no facebook.
Quase todo mundo compra a ideia de “certo/errado”. Quase todo mundo achou um disparate o MEC gastar a verba publica com um livro desses. Quando o Bolsonaro também gastou grana publica para fazer a sua cartilha anitgay, todo mundo também achou um disparate. Todos entenderam o seu conservadorismo. Mas é uma pena que ninguém consegue entender o conservadorismo quando se discute sobre a língua.
Até mesmo os outros cientistas, os que não são linguistas, não entendem os mecanismos da língua. Eu já vi muito intelectual falar asneiras sobre linguagem. Já presenciei muitos educadores, filósofos, cientistas políticos, sociólogos, antropólogos falarem burradas sobre as línguas. O que não tenho a dizer dos cientistas que mais movem a economia? Estes sim, estão completamente do lado da mídia ignorante.
Como o professor Sírio Possenti costuma dizer: nós, os linguistas, não nos atrevemos a fazer xampu ou a criar aviões ou a buscar a cura para o câncer. Simplesmente por que não fomos treinados para isso! Mas, por que todo físico, químico e biólogo, por exemplo, fica à vontade para arbitrar sobre línguas? Acho que eles estão acostumados com o poder. Só pode ser isso.
Mas o pior de tudo são os jornalistas, porque eles cumprem o papel de mediadores entre o senso comum e a ciência. Jornalistas não são só ignorantes, conservadores, direitoides, são mesmo incompetentes. Eles sim são os que erram no uso da gramática normativa (porque a gramática normativa é a ferramenta de trabalho deles), eles sim são os que não perdem a oportunidade do sensacionalismo, tudo a troco de ibope, de audiência e de vendagens.
Quando a linguística ganha um pouco de voz e consegue chegar numa sala de aula, de EJA que seja, toda essa velha mídia ressurge e tenta destruir um passo gigante na democratização da cultura e da educação. Trata-se dessa mesma mídia que falta com o respeito aos profissionais da linguagem, aos professores e aos educadores. Que faz sensacionalismo com um massacre como foi o de Realengo, que acoberta um regime militar odioso, que tenta destruir o popular. Aposto que denunciar as reais mazelas da educação a velha mídia não consegue (aliás, ela só tem abafado e ocultado as greves de professores).
O que você faz com a sua língua? Chegou a hora de você pensar o que você faz com a sua língua! Você faz tudo o que gostaria? Ou faz aquilo que a mídia manda vocêfazer? Repete opressões? Repete o preconceito (linguístico)?
A lição, em tom de clichê, é antiga: não acredite em tudo o que você lê nos jornais. Nem acredite em tudo o que você vê na televisão. Nem acredite em tudo o que você ouve nos rádios. A opinião, o achismo dos jornalistas, no caso do livro didático do MEC, falou mais alto que o fato verdadeiro. E você o que fez? O que fez com sua língua?
Ao destruir os pressupostos de um argumento, destruímos o argumento. Se a Linguística diz que não há certo e errado, como pode ser verdadeira uma notícia assim, “Livro usado pelo MEC ensina aluno a falar errado”?
Quando todo mundo começar a entender que “escrever é diferente de falar”, e entender que a língua varia e se transforma, entenderemos porque a elite reclama que sua norma já não é a única prestigiada. Tampouco precisaremos mais escrever livros que já exprimem em seus títulos um desejo do povo, na variedade do povo, num engasgo próprio do povo, que é a de uma luta “Por uma vida melhor”.


Um comentário:

o refúgio disse...

Marcelo, li, já faz um tempo, "A Língua de Eulália" de Marcos Bagno. Adorei! Acho que esse livro deveria ser lido por todo mundo. Lembro que ele faz uma comparação com a língua francesa que, falada, elimina o "s" que faz o plural. Como a gente falar "As casa" ao invés de "As casas". E todofrancês,de qualquer classe social, fala assim. Mas ninguém considera o francês um povo ignorante em sua língua. E o Marcos Bagno fala ainda de muito mais coisas esclarecedoras, sobre a dinamicidade da língua falada, etc...
Ótimo post!
Beijão