Ato 1: Stand-Up Comedy Internacional
O Brasil, há poucos anos, comprou a arte do stand-up, onde o comediante não sobe ao palco para interpretar personagens, nem criar cenas cômicas, mas apenas discursar, como se estivesse conversando entre amigos, em um ambiente descontraído, sobre qualquer assunto, tornando-o engraçado se bem sucedido. Para mim, há três níveis de comediantes desse estilo: Os que falam de assuntos engraçados; os que se comportam de modo diferente (picuinha, excêntrico, depressivo etc); e aqueles que usam da ironia e do sarcasmo, falando de coisas sérias, e extráem disso o humor. O gênio – George Carlin, Lewis Black, Robin Williams, para o autor, entre outros –é aquele que engloba os três estilos em um.
Antes de voltar ao Brasil, façamos um breve percurso pela história recente do humor internacional. Os cartúns adultos ganharam asas nos anos noventa, com uma das séries mais longas da televisão, Os Simpsons. Outros países já usavam o humor ríspido, fugaz e violento que depois se acirrou com a chegada de Beavis and Butthead, logo South Park, e por fim Family Guy, American Dad e The Cleveland Show, entre outros. No Japão, por exemplo, o estilo dos curtas violentíssimos exibidos pela MTV em meados dos anos 2000, Happy-Tree-Friends, já era apreciado e venerado pela juventude. Todos esses desenhos tem em comum o fato de que “empurram o envelope”, ou seja, no Português mais claro, criam polêmica, e competem entre si para ver quem cria maiores polêmicas. Nem todas tem causa ou objetivo social ou politicamente viáveis, mas todos representam alguma ordem ou desordem sócio-política criticada por segmentos da sociedade.
Cena de The Family Guy – Dumpster Prom-Night Baby
O filme The Aristocrats reúne muitos dos melhores comediantes nos Estados Unidos para contar sua versão da piada mais suja do mundo*. Esse estilo, pois, de criar polêmicas, de sujar a boca, de perturbar os censores, é moda nos Estados Unidos desde antes da chegada de Richard Pryor, que usou o humor judaico de se auto-difamar e falar de seus piores fantasmas, com sucesso estrondoso, pela primeira vez. É costume desde que George Carlin criou a lista das palavras censuradas pelos censores da mídia colossal, e que percorre o caminho de criar a comédia de maior “mal-gosto” possível. Nesse percurso, os sustos, os gáses e outros componentes orgânicos fisiológicos como fonte de risos, e o estilo Jackass de se arrebentar para sacar risos, como fazemos com os bebês, perdem lugar e ganham outra audiência.
Casos que ocorreram em South Park, Family Guy etc, inclúem uma criança assassinando os pais da outra e dando de comer a seu rival escolar, ironização de abortos súbitos de meninas em noite de formatura do Ensino Primário intermediário, exploração de prostitutas, uso de drogas por crianças e adultos, abuso sexual e físico de crianças e adolescentes, e por aí vai e nem termina. Há quem goste, e há quem desgoste. Eu gosto. A maioria de meus amigos e parentes da mesma faixa etária gostam também. Outros, mais velhos e maduros, gostam. Conheço quem não goste, mas poucos, mesmo, que se ofendam pelo nível humorístico.**
Ato 2: Rafinha Bastos, do CQC, e o Stand-Up no Brasil
No Brasil, esse estilo é ainda infante e engatinha. Rafa Bastos, como seus comparsas de CQC, até fazem algumas performances engraçadas, mas é difícil adaptar o modelo e o estilo de humor, e não é possível empurrá-lo goela abaixo dos brasileiros. O que criou o fusuê nas últimas semanas foi uma de suas piadas em seu stand-up, falando de estupro de mulheres feias.
“Mulher feia não pode reclamar de estupro,” disse algo similar o Bastos, “ tem mais é que agradecer.”
Todos sabemos que há gente nesse mundo, na América Latina ou do Norte, na Europa, na Ásia, África e Oriente Médio, que pensa assim. Para compreender o mecanismo do stand-up, só uma nota: Se não houvesse gente que pensa assim, qual a ironia e, logo, qual a graça do comentário? Entretando, a ofensa de muitas comunidades foi imediata, e o causo pegou fogo nas redes sociais. Grupos, feministas ou não, já exigiram que Bastos se desculpasse. Outros debateram o direito dessa espécie de humor no Brasil. Outra nota: Mesmo que ostand-up seja escasso, aposto que há gente fazendo piada pior e não levando lenha, e mesmo se não houvesse, o Brasil tem acesso integral às séries estadunidenses acima mencionadas. Ainda assim, a ofensa foi geral e, comprou um, como fizeram com o metrô de Higienópolis, como fizeram com a comparação dos crimes de Dominique Strauss ao affair de Bill Clinton e Nicolas Sarkozi, compraram todos.
Lola Aronovitch também deu sua opinião, e o debate em seu blogue correu solto. Sim, há considerações e um debate sério na rede social, e em outras redes, eletrônicas ou não. Não haveria, contudo, se toda vez que alguém se ofendesse, procurasse a censura como solução do problema. No caso de Bastos, pixaram seu clube e compararam seus ditos aos atos, concretos, de um estuprador. Para muitos nas redes sociais, Bastos é, para todos os efeitos, um criminoso do ódio. Outros disseram que Bastos “atacou as vítimas de estupro”. Há ainda quem diga que em um país com tantos crimes dessa natureza depredável, esse tipo de piada não tem graça. Lembrete da nota acima: Não teria piada, logo graça, se não fosse tão comum.
Bastos falhou como humorista, ao meu ver. Falo sem ter visto o show na íntegra, mas conhecendo outras de suas apresentações, afirmo que falhou. A ironia mal contada parece uma opinião. Reconhecimento de plateia, e tato, são também essenciais para o funcionamento dessas apresentações. Ainda assim, interessante seria saber o que todos da plateia, em todas as suas divergentes percepções, entenderam desse trecho. Depois disso, criou-se a “lei do bando”, onde o grupo, geralmente majoritário, espanca os julgados criminosos em conjunto. Falando em democracia, é essa “lei do bando” a temida por Aristóteles, que preferia a aristocracia consciente à democracia inconsciente das necessidades de todos, e não só de grupos, grandes ou pequenos. Portanto, seja qual for a falha ou a falta de tato, hoje a percepção de sua “piada” está totalmente contaminada.
Ato 3: Protestos nos Anos 90, EUA
Há uma música bacana da banda Sublime, em que o vocalista, Bradley Nowell, narra sua participação (não sei se fictícia ou não) nos protestos dos anos 90, na Califórnia. Vale a pena ouvir e traduzir a letra para entender o caso. Foram protestos de cunho civil e social, em que as minorias, sentindo-se ignoradas pelos governos crescentemente corporativistas, especialmente os afro-descendentes, desorganizados e estimulados por casos isolados de violência, iniciaram dias de saqueamento de lojas e violência urbana quase sem precedentes na história moderna do país. Negros atacaram negros, lojas e estabelecimentos e casas de negros, e bairros vizinhos, salientando os bairros chineses, sofreram a inconsequência da raiva dos negros contra o “homem branco”. Quase nenhum estabelecimento branco, em realidade, foi atingido, visto que os bairros mais abastados estavam bem armados e preparados para iminentes invasões.
Não há nada de errado em se ofender por uma piada. Quando vocês, leitores, ouvem ou leem alguma piada, a escolha é sua se aceitam a ofensa da piada e do piadista, ou se riem dela. Há piadas, claro, e há propaganda política, racismo, anti-semitismo e sexismo disfarçado de humor. A diferença é, geralmente, sutil, e depende geralmente de todos os elos de comunicação: Do emissor da mensagem, do método de emissão, da forma de emissão e dos receptores, como recebem, onde recebem, quando recebem e quem recebe. Muitas vezes, o comentário “humorístico”, fora de contexto, torna-se, realmente, ataque social. Em outras, como no caso de Bolsonaro, também popular nas redes sociais, a opinião não deve ser confundida com a ironia.
Na imagem, o Clube da Comedia, onde Rafael Bastos se apresenta
Em todos os casos acima, recorrer à censura e à violência me parece inconcebível, e tão errado quanto qualquer outra espécie de censura e proibição social. Forçar Bastos a se desculpar e modelar seu humor de acordo com o gosto popular, mesmo majoritário, não é diferente, ao meu ver, do que fizeram as grandes gravadoras e organizações éticas e religiosas nos Estados Unidos (e em casos mais sérios, na Alemanha Nazista), que diluíram a essência étnica do rock and roll no fim dos anos cinquenta e início dos sessenta. Pixar o clube que hospedou a apresentação de Bastos é idêntico a negros saqueando negócios de negros em prol da causa negra.
Independente de Bastos, o humor irônico serve, na grande maioria dos casos, para expôr o absurdo do pensamento humano, e os absurdos políticos, sociais e culturais, incluindo “leis de bando”, que se perpetuam em nossas sociedades. Sem esse humor, todo assunto é potencialmente tabú, e quando um tema é tabú, mesmo que banal, limita o pensamento de uma dada civilização. Se Bastos é machista e estuprador, ou ao menos se apoia o estupro de mulheres feias, e assim disser seriamente em qualquer entrevista, ainda assim sua piada só serviu para alertar que pessoas como Bastos existem. Eu não acredito, e assumo essa responsabilidade, que isso seja remotamente coincidente ao caso. Bastos é um humorista. Se bom ou mal, é questão do mercado do humor. Se seguem indo a seus shows, ele é eleito, novamente, comediante, como Bolsonaro, que censurado jamais exporia seu racismo e homofobia, e que, ao invés da censura, deveria ser derrotada em eleição.
O Brasil sofre com a censura midiática direta e indireta como sofrem muitos outros países, desenvolvidos e em desenvolvimento. Quando o jornalista torna-se quase sempre o culpado, quase sempre sem “juízo justo”, em cortes federais, municipais e civis, e assim qualquer outro macaco de mídia, e a censura é quase sempre a solução, de Sarneys a feministas, é mais fácil conceber a censura em primeiro lugar sempre. Talvez, em um país mais livre, apresentar material satirizando Bastos, e simplesmente deixar de comprar seu produto, seria mais inteligente e eficiente. Tenho dúvidas quanto ao Brasil. Dúvidas , creio eu, que em um país que quer mover-se em direção aos direitos humanos e à evolução cultural, que deve cessar a cultura da censura imediatamente, são cruéis e perfidiosas.
R.Frenkiel.
NDA: Caso acreditasse, ou venha a acreditar, que Bastos incitou o estupro a mulheres feias, pediria que desconsiderassem qualquer defesa a Bastos desse texto em meu nome. Não acredito. Abráx.
*É uma piada da época dourada pré-Broadway de Vaudeville, em que uma família se apresenta a um agente de talentos e produtor teatral contando que tem um ato brilhante que precisa ser produzido. O agente então pede que lhe mostrem, e a família, variando de acordo com quem conta a piada, faz as coisas mais bizarras e vulgares possíveis, desde incesto a bestialidade e abuso sexual de menores e, no fim, perante o agente chocado, que ainda consegue perguntar, “e o ato, como chamam?” respondem, “Os Aristocratas”.
**Aqui vale lembrar que quem expandiu esse humor nos EUA foram os sobreviventes da Segunda Guerra Mundial. Entre estes, meu avô, era um dos maiores e melhores piadistas de holocausto que já conheci e, eu, particularmente, ria muito de suas sacadas geniais sobre um dos episódios mais violentos da história contemporânea.
Um comentário:
Infelizmente isso é fruto tbm da má interpretação textual e do espírito de rebanho que acomete a nossa sociedade pouco instruída...
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