quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Abaixo da superfície do que gostaríamos de ser

Por Halem Souza
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"Era enjoativo de tão doce mas se eu rompesse a polpa cerrada e densa, sentiria seu gosto verdadeiro. Com a ponta da língua pude sentir a semente apontando sob a polpa. Varei-a. O sumo ácido inundou-me a boca. Cuspi a semente: assim queria escrever, indo ao âmago do âmago até atingir a semente resguardada lá no fundo como um feto".

Do conto Verde lagarto amarelo, de Lygia Fagundes Telles

Final de ano é sempre a mesma coisa: reuniõezinhas de confraternização no trabalho, amigo-secreto (ou oculto, como se diz aqui em BH) com o pessoal da faculdade, almoços e jantares em família, aos quais comparece, maciçamente, a parentalha, etc. E com nossa vida irreversivelmente determinada pela economia - além de uma pesada "contribuição" da publicidade - caímos de boca, com gula. Brindamos, sorrimos, dançamos: parece comercial de shopping center ou mensagem de final de ano da Globo, só que mal ensaiada.

Abaixo da superfície do que gostaríamos de ser, entretanto...

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Há sempre um jogo em todo diálogo: do debate mais sofisticado, com especialistas de uma determinada área do conhecimento, à mais banal e insossa série de perguntas e respostas que empreendemos, por exemplo, quando solicitamos algum serviço ou produto pelo telefone.

Em Verde lagarto amarelo*, Lygia Fagundes Telles compõe um desses jogos ao narrar o encontro de dois irmãos, Rodolfo e Eduardo. Há uma disputa, o reavivamento de um antigo conflito, ainda que não seja explicitamente assumido. Às vezes, os jogadores nem precisam verbalizar. A escritora nos exibe as estratégias dos personagens pela maneira como estes se colocam em cena, através do que nos diz o narrador, Rodolfo.

Mágoas renitentes, demonstrações de afeto negadas, lembranças de injustiças: tudo ameaça vir à tona, como o suor que tanto incomoda o narrador:
"Era menino ainda mas houve um dia em que quis morrer para não transpirar mais". A presença do irmão evoca recordações desagradáveis:

"E me trazia a infância, será que ele não vê que para mim foi só sofrimento? Por que não me deixa em paz, por quê? Por que tem que vir aqui e ficar me espetando, não quero lembrar de nada, não quero saber de nada!"

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Rodolfo olha para dentro de si ao mesmo tempo em que sente o "suor de bicho venenoso, traiçoeiro, malsão". O retrato de Eduardo é completamente diferente: "era bonito, inteligente, amado, conseguia sempre fazer tudo muito melhor [...], muito melhor do que os outros, em suas mãos as menores coisas adquiriam outra importância".

É curioso: a esmagadora maioria das pessoas não se vê como um réptil nojento. Mas é nessa época do ano que as suas (e as minhas) viscosidades deletérias e mais recônditas escorrem em abundância, maculando a superfície do que gostaríamos de ser.

Melhor tomar uns porres.

* TELLES, Lygia Fagundes. Verde lagarto amarelo. In: ___________. Antes do baile verde. Rio de Janeiro: Rocco, 1989

2 comentários:

BirdBardo Blogger disse...

É melhor tomar uns porres mesmo e poder mudar de "pele" depois disso.

Vais disse...

Ei Professor,
Cê sabe o que trazer pro Resumo, ótimas escolhas.
Tenho prazer de ler estas elaborações que o Professor Halem faz
abração