quarta-feira, 24 de outubro de 2007

O sacolejo

O ônibus sacolejava bastante e o humor do motorista não era dos melhores. Apesar da passagem ser R$1,90 era praticamente impossível você conseguir os dez centavos de troco quando a sua nota de dois reais caía no caixa dos trocadores. Ônibus lotado, sacolejando, com motorista indisposto e calor. Química perfeita para um dia desgastante, arrastado. De repente, barulhos de tiros irromperam no cruzamento à frente, correria vinda da esquina, dobrando e desaparecendo em curto espaço de tempo. Ônibus parado, dessa vez não era questão de pegar passageiros. Homens de preto armados com fuzis bradavam alguma ordem incompreensível, o motorista desligou o motor, agora, somente os barulhos nítidos e inconfundíveis dos projéteis sendo disparados em direções “x,y”. Os homens de preto também respondiam disparando tiros e ordens outras. Talvez, numa súbita briga com a gramática, desconsiderando o fato de não existir “eu” no imperativo, as ordens eram dadas a eles por eles mesmos, como que injetando uma força reserva, uma ode à motivação para vencer o medo, o susto e a lógica aristotélica que impede qualquer policial de trocar tiros de igual para igual com um bandido, haja vista o péssimo soldo recebido. A cadência do samba torto continuou por alguns minutos e bruscamente parou por eternos instantes. A porta do ônibus abriu e um policial pediu para que todos saíssem. Alguns começaram a chorar (medo de descer, óbvio), outros começaram a chorar (não conseguiam descer, algo dentro da alma psicológica os impedia) e outros começaram a chorar (de alívio por poderem descer), ainda outros desceram apenas, sem muito atabalhoamento. Um senhor, na altura dos seus sessenta anos, observava o policial atrás do poste de luz: óculos escuros, disparando seu fuzil sem mirar, na suposta direção do confronto. Pensou o senhor que aquele era o retrato típico da segurança pública no Rio de Janeiro. O “evento” (que não teve a participação de políticos e suas promessas) durou duas horas ou algo parecido (no inferno o tempo não existe, mas o sofrimento é eterno) com um saldo espetacular de doze mortos. Infelizmente, uma criança fazia parte do número. O senhor que chegou a casa e assistiu a tudo pelo noticiário tendencioso das vinte horas lamentou o fato e seguiu a sua vida indo à cozinha jantar. É rezar para que não entrem mais crianças na linha de tiro, é rezar para que humanos, seja de qualquer idade, não entrem na linha de tiro (porque os tiros continuarão, promete a vida carioca).

7 comentários:

AB disse...

Descrição aguda, agoniada e perfeita, MARCELO querido.
Só faria um reparo: tem-se que rezar para que nenhum inocente mais entre na linhda de tiro, tenha ele a idade que tiver...

Marcelo F. Carvalho disse...

Acantha, você está totalmente certa. Farei a correção!
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Abraço forte!

AB disse...

Vi, de relance, o Lázaro Ramos (conto onde, sim: ele estava comprando um par de óculos numa Chilli Beans de SP).
Impressionante como vocês são parecidos, MARCELO!!!
Lindíssimos!

Jens disse...

Barra pesada, Marcelo. Mas o governador carioca está tomando providências para proteger ao menos as criancinhas: abortos à granel para a ralé (não que eu seja contra, mas dizer que esta é a solução para a criminalidade é dose. Dupla!).
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Lázaro Ramos? Hummm... Bonitão!
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Um abraço e um bom findi.

Marcelo F. Carvalho disse...

Acantha, queria ter só um pouquinho do talento desse sujeito... Vi o filme "Madame Satã" e pude ver o quanto ele é espetacular.
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Jens, dose tripla pra mim e uma latinha de cerveja que, sem um trago, ninguém segura esse rojão!
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Abraço forte!

Vais disse...

Olá Marcelo,
Sabe, a primeira coisa que notei quando abri a página do Resumo, foi sua parecência com o Lázaro Ramos, risos...
Deve ser uma tensão braba viver, bem mais de perto como é ai no Rio, com os pipocos sem destino.
Parabéns pra você, pra Acantha, pro Ele, pro ControVersos
Abração Professor

o refúgio disse...

Quem é Lázaro Ramos? Putz! Acho que sou de outro planeta...

Muito bom o teXto, Marcelo, como sempre!

Beijão.