quinta-feira, 27 de março de 2014

Nico, o mais importante também era o voo, porque destino não havia

Escrito por Adelaide Ivánova


Suprimento Cultural do Diário Oficial do Estado (PE)


Arte: Janio Santos

Drama of exile é um disco, é um nome de disco. Podia ser uma poesia, podia ser um outdoor, podia ser uma tatuagem. Dificilmente se conseguiria definir o que é o exílio em tão poucos toques. Fiona Apple tem um título de álbum com 90 palavras e entrou pro Livro dos Recordes. Nico, a dona de Drama of exile, no entanto, nunca ganhou prêmio pela concisão. Somos chegados a exageros, aumentos, superações. Mas o exílio é apenas isso, minha filha, é drama. Não se precisa de 90 palavras pra explicar.

O curioso é que não se sabe muito bem qual o drama do exílio de Nico, e em relação à qual cidade ele (o drama) estaria relacionado. Veja, a questão central do exílio não é para onde se vai, mas o que se deixa para trás. Mas onde está o drama, quando aquilo que se deixa pra trás lhe é indiferente? Desde quando ciganos sentem saudade?

Nico saiu de Berlim na década de 1950, como chegou — porque deu. Ela nunca mais voltou a viver na cidade. Em 1940, ela veio com mãe, aos 2 anos, fugindo da Colônia destruída durante a Segunda Guerra. Veio de uma cidade em ruínas para outra, porque o que estava em decadência era mais a vida do que as coisas.

E em 1956 ela foi embora para Paris e, daí em diante, Nico, nascida Christa Paeffgen, criada nas ruas elegantes da Berlim ocidental e americanizada, viveu em pelo menos mais cinco cidades: Paris, sim, e mais Nova York, Londres, Manchester, Ibiza. Não tinha endereço fixo, as correspondências retornavam a seus remetentes.

A condição do exilado — seja ele exilado por necessidade, como Neruda, ou por desgosto, como Saramago — é que sua nostalgia é geográfica, e nisto está tudo.

Mas em Drama of exile, embora o título seja o que é, em nenhum momento Nico trabalha com perda, abandono ou saudade de um lugar. Das sete canções compostas por ela, seis usam repetidamente a palavra “light”. No total, o termo é repetido 10 vezes. A mim me parece, então, que mais do que um lar, Nico sentia saudade de algo maior — não é isso que saudade é, afinal?, a falta de tudo? Na época que lançou o álbum, Nico vivia em Manchester. Manchester, diz ela numa entrevista de 1975, parece com Berlim em muitos aspectos, mas não diz quais.

O único lugar que merece menção, num disco que se chama “drama do exílio”, é o aeroporto. Em “Orly flight”, um poeminha besta sobre as luzes da cidade de Paris quando vistas de cima, ela até revela para onde vai — Madrid — mas cita a cidade de maneira tão frívola que é como se o mais importante fosse o voo, e não o destino.

Não por acaso, é com a frase “Ela era uma verdadeira cigana” que seu filho, Ari Päffgen, a define, no documentário Nico icon.


***

Em 1964, quando já vivia em Nova York, Nico foi apresentada a Andy Warhol. Diz-se que a primeira coisa que ela falou, enquanto mordia uma laranja vinda de sua taça de ponche, foi: “Eu só gosto de frutas quando elas estão boiando no álcool”.

Uma década depois, Nico foi visitar seu filho, que ela não via há 36 meses. O menino era criado pela avó, mãe de Alain Delon, em Paris. Nico veio de Nova York para turnê europeia e passou em Bourg-la-Reine para vê-lo. O único presente que a cantora trouxe para o filho: uma laranja.

***

Uma semana depois da morte de Lou Reed, num domingo de manhã (quando mais?), achei por bem visitar o túmulo de Nico, que foi enterrada ao lado da mãe, no Cemitério-floresta de Grunewald. Eu acho importante ritualizar as coisas. É a chance que a gente tem de deixar a vida vivível. Pouco importa se o cemitério fica à 14km da minha casa e o website da companhia de transporte de Berlim sugira que eu pegue um bonde, um trem e um ônibus, pelo qual deveria esperar um hora, e que depois ande mais uns 20 minutos no meio da floresta, num trajeto que leva duas horas e meia, dentro da mesma cidade. Já que é pra ritualizar, então que se faça assim, demoradamente.

Eu poderia ter ido de bicicleta, o que me tomaria apenas uma hora. Mas não se anda de bicicleta em Berlim, em outubro. Fiquei pensando: se estivesse em Berlim, em vez de Ibiza, Nico teria morrido? É assim: a morte é circunstancial, ou absoluta?

Quando Nico morreu, eu tinha seis anos e acabara de ganhar minha primeira bicicleta, e andava em círculos na rua sem saída em que morava, no Espinheiro, porque não tinha sido autorizada, pelas 300 mulheres que me criavam, a sair da rua. Aí o mais importante também era o voo, porque destino não havia.

***

Eu levei uma vida pra chegar nas redondezas do terreno que era, outrora, necrópole dos suicidas. Os mortos chegaram primeiro — eram enterrados ou jogados por ali, no meio da floresta, ao acaso, sem lápide, porque um suicida era uma vergonha para família. A definição daquele espaço como sendo um cemitério, no entanto, só veio depois, em 1920, quando se decidiu que toda cidade deveria ter um cemitério não vinculado à Igreja, de modo que suicidas e outros mortos de pouca honra pudessem ter um enterro digno. Em 1929, por seu caráter idílico, defuntos de “morte morrida” começaram a ser enterrados no local. Nico chegou em 1988 e foi sepultada com seu nome de batismo, ao lado da mãe.

Quando eu desci do trem, na antepenúltima parte da minha viagem, o mundo cheirava a pinheiro, e dei de cara com estacionamento de bicicleta, que estava cheio. Ali, aboletada ao lado de não-sei-quantas magrelas, esperei uma eternidade pelo ônibus. É que ele só passa uma vez por hora, nos finais de semana. Nos dias úteis, três vezes ao dia.

Veja mesmo: cemitério está aberto todos os dias, inclusive no inverno. Mas fica aberto pra ninguém, porque o ônibus nunca chega.

Mas uma hora ele chegou e depois de 23 minutos de viagem, desembarquei e saí andando, seguindo as instruções do Google maps, anotadas num papel de padaria. Já andava há 45 minutos no meio do bosque, sem achar o cemitério. Ali, me sentindo Henry Hudson dos mortos, dando alto valor à minha missão poético-sociológica e citando pra mim mesma Oscar Wilde, dei de cara com um pato. Um pato. Um ordinário, roliço e concreto pato.

Eu nunca achei o cemitério, nem a tumba onde Christa está ao lado da mãe, sobrenomes identificados, afinal suicidas são os outros. Eu nunca encontrei Nico, nem fantasmas, encontrei foi um pato. E em sua companhia, finalmente vi coisas que existiam no caminho: uma bola roxa, uma casa, um tronco, papel alumínio, placa. Se não fosse o pato, não teria prestado atenção em nada, mais focada no destino que no voo.

Talvez, se Nico tivesse levado para Ari algo extraordinário, em vez de uma laranja, ninguém mais tarde mencionasse o fato em biografias. E se eu tivesse encontrado um fantasma, no lugar de um pato, não seria sacodida pela inevitável trivialidade das coisas. Ainda bem, tinha um pato.

***

A hora que fiquei sentada esperando o ônibus pareceu infinita e inútil. Já a hora que passei procurando um cemitério que nunca encontrei, pareceu insuficiente. Como será que o tempo passa pros mortos? É o tempo lento da espera ou o tempo escasso da procura? Wislawa Szymborska diz que se devia morrer apenas o estritamente necessário. Já eu, pedindo licença pela intromissão do pitaco, penso que se é pra morrer, então que se morra totalmente, que se morra muito, para que não haja mais, nem que seja uma vez na vida, nem a espera, nem a procura.

Nico tinha um aneurisma não diagnosticado e, em junho de 1988, em Ibiza, levou uma queda de bicicleta e morreu. Dessa vez, afinal, tinha um destino: pedalava para casa.




Nenhum comentário: