domingo, 9 de março de 2014

A certeza que vem da dúvida


Se você não falar eu nunca vou saber.
Ela estava certa como sempre e, ele, confuso como nunca. E nesse ritmo foram ficando por alguns anos, até que pintou um dinheiro a mais, uma reforma na casa e uma inevitável proposta de junção, quase amálgama, mas era desse jeito que as coisas davam certo e era desse jeito que os passos continuavam no caminho. Ele dizia reticências, ela falava exclamação.
E foi num dia frio, olhando para o mar de Saquarema, que ela disse alguma coisa totalmente inútil e, ele, numa rara certeza de estar dentro de casa por muito tempo sem uma gota de álcool na corrente sanguínea, levantou e, sem ponto continuativo, afirmou sem delicadeza que ela só falava merda. Ela não esperou ele alcançar o botequim e lamber uma daquelas cachaças mineiras com cheiro de caldo de cana e gosto de mel, foi xingando pedras e dragões pela rua até a porta do pé-sujo com a dignidade de quem sabe fazer uma baixaria, descendo do salto para, depois da cagada feita, subir num salto agulha.
Ele, meio que de saco cheio do frio, do ar salgado e de ficar tanto tempo em casa, olhou-a como não se olha para ninguém e disse algo que não seria delicado revelar. Pura falta de tempero ou diplomacia. Tivesse mantido a cabeça no lugar veria que estava errado e que ela era a única que podia estar certa sempre, ter as certezas que quisesse e xingar o quanto pudesse.
Mas não foi o que aconteceu e ela deu meia volta, descalça, mas sobre um alto sapato imaginário e apoteótico. Catou umas calcinhas limpas no cesto, um casaco, calça, bermuda e nem se lembrou da bata que adorava usar. Levou uma semana para uma frete bater a porta exigindo umas coisas com as coisas dela. E os invernos acabaram rápidos, mas ela demorou a aparecer na cidade. Foi terminar o mestrado na UFF e ficou por Niterói. Amarrou-se a algum professor que não tinha tantas dúvidas assim, mas era cheio de teorias e conflitos e concordava sempre com ela, o que dava no mesmo.
Um dia ele experimentava um cachaça amarelada saída de um barrilzinho escondido na prateleira empoeirada do botequim quando a avistou. Ele continuou sentado saboreando o belíssimo líquido e a estupenda visão ao longe. Ela também o viu e aproximou-se sem muita convicção.
– Se você não falar eu nunca vou saber – disse o homem com a barba bem feita e ainda cheirosa.
– Você nunca foi de ter decisões.
– Nunca te vi parada sem uma verbalização da vida.
– Acho que virei você.
– Eu também.
E esqueceram de fato o que os havia separado e treparam a ponto de não almoçarem, não jantarem. Alguém fez um sanduíche horroroso com requeijão vagabundo e presunto queimado nas beiradas por ficar destampado na geladeira. E voltaram como nunca foram, e amaram-se democraticamente.
Ela aprendeu a beber uma cachacinha depois do almoço, aos finais de semana, depois de corrigir as provas da sua classe.
E ela teve muitas dúvidas entre certezas e ele idem. E assim foram até que morreram.
O professor? Bem, continuou teorizando com outras alunas cheias de certezas até que veio a dúvida, mas já era tarde demais.
O professor que se foda.




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