sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Delação Premiada: lendas, mitos, talvez verdades

Por Carlos Brickmann
Observatório da Imprensa


Como dizia a vovó, gato escaldado tem medo de água fria. Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça. Cidadãos normais, quando o governo anuncia que o preço da gasolina não vai subir, vão ao primeiro posto para encher o tanque. Pois caldo de galinha e bom senso nunca fazem mal a ninguém.

Observando o país real, nada mais justo do que acreditar, sempre que alguém acusa uma estatal, que houve mesmo superfaturamento. Se há empreiteiras no negócio, coisa boa não é. E se alguém anda com um belo dinheiro no bolso, embora nenhuma lei o proíba – é perigoso, porque bandido é o que não falta, mas não é ilegal – pode prender o afortunado, porque alguma deve ter aprontado.

Tudo isso pode estar errado, mas é fácil de entender: já vimos este filme muitas vezes, e no fim sempre roubam a bilheteria. O que é difícil entender é a cega confiança em delação premiada. O sujeito está preso, sujeito a toda sorte de constrangimentos, sua família é constantemente ameaçada daquilo a que chamam de esculacho, informações são vazadas todos os dias, a conta-gotas, para destruir sua reputação; e ele é informado de que, se não colaborar, estará sujeito a centenas de anos de prisão. Em compensação, se colaborar, passa do inferno ao céu de um dia para outro, com direito aos gozos dos bem-aventurados.

Este colunista não entende nada de Direito; bons amigos, da área, acham que tudo está bem. Mas não consegue ver direito a diferença entre as ameaças ao preso e sua família e as torturas físicas que todos condenamos. Não há, ao que se saiba, violência física; mas a violência moral contra o preso escolhido como candidato à delação premiada é permanente.

A justificativa da delação premiada não é, porém, o tema deste colunista – entre outras dezenas de motivos, por não entender nada de Direito. O que parece assustador é a confiança dos meios de comunicação nas informações obtidas por esse meio. Digamos que o prisioneiro seja informado de que, quanto melhor se comportar, quanto mais gente de determinadas listas apontar, mais benefícios terá com a delação premiada. Digamos que, para amarrar direitinho uma boa história de acusação, seja necessário incluir na trama alguém absolutamente insuspeito – alguém, por exemplo, como a Madre Tereza de Calcutá.

Voltemos ao delator (eta, palavra mais carregada de significados negativos!). Não podemos esperar dele que tenha a moral ilibada; ou não teria participado das manobras que agora denuncia. Também não podemos esperar que esteja absolutamente tranquilo, imune a eventuais pressões e ameaças à senhora sua mãe, à senhora sua esposa, a seus filhos e outros parentes. Não é lógico que resista: se quiserem que delate São Francisco de Assis, ele o fará. Ou não, como diria Caetano Veloso. E como é que os meios de comunicação irão distinguir a falsa delação da delação verdadeira? Investigando, ouvindo gente, tentando entender a papelada. Mas o que se vê, hoje em dia, é que não há jornalistas investigando o caso do “petrolão”: há repórteres, ótimos repórteres, usando seus bons contatos para obter, das autoridades, os vazamentos mais saborosos.

Laudos? OK, os laudos são importantes. Mas já houve laudos que apontaram problemas em próstatas de mulheres, lembra? Um repórter, grande amigo deste colunista, descobriu que seu índice de PSA, importante indicador de câncer na próstata, estava altíssimo. Seu irmão, médico, desconfiou, e mandou refazer o exame. O PSA estava normal. Foram ao laboratório do primeiro exame, um grande e bem reputado laboratório, e descobriram que lhe tinham entregue um laudo errado. E o tempo de terror que passou entre a descoberta do índice do primeiro laboratório e o índice normal do segundo laboratório? Não há maneira de compensar esse tipo de falha.

Este colunista viu laudos diversos no caso PC Farias, contraditórios, mas todos atestados por profissionais reconhecidos.

Voltemos ao tema original.

1. Um cidadão submetido às pressões habituais para que se transforme num delator premiado é digno de confiança? Quem garante que o que diz é verdade?

2. Considerando-se que o prisioneiro está nas mãos dos acusadores, quem garante que se comportarão como bons meninos, incapazes de tentar influir nas narrativas do delator?

Só há uma maneira de a imprensa lidar com esse tipo de caso: da mesma maneira que o irmão médico do repórter com PSA alto. Buscar confirmação em outra fonte, estudar profundamente o caso, envolver-se na pesquisa, duvidar dos presentes informativos que recebe. E lembrar-se de que a função do jornalista não é confiar em ninguém, muito menos em autoridades. A função do jornalista é desconfiar sempre – e mais desconfiar quanto mais poderosa for a fonte.


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