Por Roy Frenkiel, Jornalista
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É impossível testemunhar a morte de crianças e pessoas inocentes em qualquer parte do mundo pelos motivos banais que tanto causam as suas mortes – a fome, não tratamento de doenças e infecções tratáveis, falta de saneamento básico, guerras e as guerrilhas que consomem, aleatoriamente, partes do planeta – sem chocar-se, sem sentir-se impotente e sem refletir sobre a utilidade da própria vida. Nada é mais santo do que a vida de uma pessoa. Em minha religião abandonada, justamente, pela ilógica condução de uma vida, esta lógica era majoritariamente clara. O Rebbe de Lubawitch, Menahem Mendel Schneirson, dizia que “a voz de uma criança chorando deve atingir a todos os ouvidos.” A Torá apenas requer o auto-sacrifício se o pedido em troca de uma vida judaica seja o de outra vida, ou o cometimento de abusos sexuais, ou a negação do próprio judaísmo. Atualmente, faria de tudo para salvar minha própria até mesmo se tivesse de negar, momentaneamente, meu judaísmo. Minha vida, ou a de qualquer pessoa, sempre vale mais do que um único instante.
Crianças são sempre intocáveis, e cidadãos comuns em busca de crescimento individual e social não merecem guerras mórbidas, nem mesmo se “torcerem” mais para um povo do que para o outro. Meu acordo com esse lado tão mal-usado na verbatim internacional, o “humanitário”, é que não concordo, e jamais concordarei, com uma única morte em qualquer conflito ou banalidade que aflijam esse mundo. Contra bombas, tiros, mísseis e explosões, fome, preconceito e corrupções sociais sou radical.
Mas também sou israelense. Cresci em Israel, onde fui educado, onde estudei, onde acostumei meu paladar à comida, tanto a local quanto a internacional, onde pendurei meu primeiro piercing, rezei pela primeira vez, chorei mágoas de amores pela primeira vez, desencontrei e encontrei e desencontrei de novo o Deus Hebreu pela primeira vez, e fugi das obrigações do exército com essa desculpa pela primeira vez. Lá tinha os membros mais antigos de minha familia, as raízes de três de nossas gerações, alguns de meus credores prediletos, meu sorvete preferido, as paisagens das quais mais sinto falta, as discotecas nas quais mais “curti” a noite e, em resumo, muitas de minhas melhores lembranças se deram em Israel.
Aqui sofro um dilema cognitivo pessoal. Por um lado, não posso não reagir pró Israel. Quando ocorreu o atentado em uma discoteca no centro de Tel Aviv em 2001, assisti pela televisão no apartamento a poucos quilômetros do local. Conheço ao menos dois conhecidos de conhecidos que morreram pelas balas e bombas dos árabes do “outro lado” da fronteira. Não posso não sentir, inicialmente, uma raiva letal do “outro”. Porém, já que não sou um troglodita, minha raiva nunca quis explodir pelo rifle que alguns de meus colegas, amigos de infância e irmão tiveram de carregar por três anos. O engraçado é que nenhum desses amigos eram ou são trogloditas, e nenhum deles pendurou o rifle porque sentia raiva. A maioria de nós esboçava essa raiva no mundo secular de minha infância mais jocosa do que seriamente. Era quase engraçado pensar no árabe como o inimigo “rashá” (perverso).
Frequentei a cidade de Ashdod, uma das afligidas pelos mísseis esporádicos da Faixa de Gaza, especialmente quando religioso quase que diariamente depois da intifada decorrente da visita de Ariel Sharon aos locais santos nos subúrbios da Velha Jerusalém para ambos muçulmanos e judeus. Já peguei caronas com o medo de ser sequestrado por algum “terrorista” árabe. Já tomei cerveja com árabes cristãos na cidade de Jaffo, satélite de Tel-Aviv. Meu médico, como a da maioria das pessoas do meu bairro, era árabe cristão. Via árabes e judeus regularmente no cenário israelense, e fora dele tive o privilégio de conhecer habitantes tanto de Gaza quanto do Leste de Jerusalém. A maioria desses encontros foi agradável e produtiva.
O dilema se aprofundou quando contemplei os dois lados da história da existência de Israel, sendo que suas ramificações teóricas são incontáveis, tão infinitas quanto as versões populares. Por um tempo, pelo afastamento da religião judaica e pelo sentimento de traição que tinha por Israel quando conheci de seus mal-feitos, concluía que precisava defender a causa palestina (já iniciava a chamar tanto judeus quanto árabes de palestinos) mais do que a israelense. A maioria dos pensadores liberais que alimentavam meu conhecimento pensavam como eu àquela época, como alguém que defende os mais fracos dos mais fortes, uma causa clara para um jovem cheio de ideologias.
Mas ao longo dos anos li relatos complexos de historiadores como Eric Hobsbawm e Howard Zinn, que mesmo judeus criticavam a expansão territorial, as táticas militares, o processo das Forças Armadas Israelenses e sua lógica governamental. Me deparei com dezenas de grupos fundados por judeus e árabes igualmente que lutam pela paz no Oriente Médio, mais especificamente pela concretização do Estado Duplo, a solução prescrita pelas Nações Unidas antes dos conflitos dos anos cinquenta e sessenta. Lentamente, amadureci minha cisma contra Israel e percebi que o movimento pró-paz em Israel é enorme, tão maior ainda entre judeus residindo no Exílio do que entre árabes regionais.
Ao me aprofundar nas causas palestinas, descobri que muitos intelectuais (um de meus mentores mais queridos é muçulmano) árabes pensavam como eu, que qualquer morte, em qualquer parte da fronteira, é inaceitável, e que o Golias Israel é um mero David cheio de acnes perante as potências islâmicas, árabes, persas e kurdas desse planeta moderno, sendo que estas precisariam apenas unir-se (ironicamente, ontem Mahmoud Abbas pediu a união dos grupos árabes Fattah e Hamas contra Israel, diplomaticamente falando, dizem eles, mas eu não creio) e mesmo quando se comporta como David, os conflitos sociais que se deterioraram ao longo dos anos tem vida própria, e não há nada que possa apaziguar isso em passe de mágica, sem processo lento e sacrifícios sérios de ambos lados.
Também encontrei, para meu pesar, muitos grupos políticos e sociais, como muitos indivíduos que, em seu não-reconhecimento do Estado de Israel, legitimam a morte de quantos judeus e israelenses forem necessários para recuperar a Palestina. Nos últimos anos, especialmente da América Latina e, no meu caso, essencialmente do Brasil, é esse o coro predominante. Cartuns mostrando Netanyahu como terrorista sanguinário (como se o comportamento bélico de Israel fosse apenas maldade pura, mesmo que essas mesmas pessoas justificam a luta armada dos árabes), matérias que não contam toda a verdade, e um verdadeiro esquema midiático que apenas expõe a dicotomia da intolerância das ambiguidades. É fatídico, em minha mente, que Israel nunca soube usar a mídia como os árabes. Além disso, em Israel encontramos poucos mártires, a maioria não admite morrer em nome de uma causa. Os “observadores” ignoram o óbvio mais escandaloso. Quantos lideres religiosos e governamentais não prometeram a aniquilação (holocausto) de todos os judeus no mundo? Quantos não juraram que os judeus em Israel deveriam ser “atirados ao mar”?
É difícil expressar qualquer fato desacompanhado da noção de que as vias que comunicam deturpam fatos e reconstróem estórias. Mesmo assim, não é difícil perceber que o preconceito existe nos dois lados, tanto quanto há, dos dois lados, pessoas que lutam pela paz. Alguns argumentariam que um dos dois lados tem governo melhor, ou aliados melhores, mas julgo que esse impasse é impossível de se resolver e subjetivo demais para sequer trazer à mesa. Israel tem lados extremamente corruptos em seu governo e exército. Assim, no entanto, é a realidade das organizações palestinas, e dos países árabes, persas e kurdos que os cercam. O Irã tem governo menos corrupto, por acaso? Agora, após a tragédia da frotilha turca (que, segundo seus líderes tinha como prioridade furar o bloqueio de Gaza, e não levar os mantimentos conforme prometido, já que para tanto aceitariam o que foi sabidamente oferecido, entregar os mantimentos ao exército israelense) Irã é de santos e anjos imaculados e bem intencionados, incrivelmente, e mais incrivelmente muitos compram, sentimentalmente, essa ideia.
A questão que mais dificulta meu dilema é: Podemos justificar mortes israelenses ao invés de árabes ou vice-versa? Temos como exigir de Israel uma postura mais pacífica sem que essa exigência seja direcionada aos seus vizinhos do “outro lado” da fronteira? Temos como exigir do Hamas, Fattah ou qualquer outra entidade árabe ou palestina que párem de reagir violentamente às condições violentas que fomentam suas causas? E exigir a honestidade dos corruptos não é um anátema?
O ódio que venho testemunhando contra Israel de pessoas que nunca sequer estiveram no Oriente Médio para saber como vivem os “dois” lados é contra-produtivo e injustificável. Estagna qualquer espécie de reação diplomática pacífica. A utilização da mídia é a arma mais potente, e logo por isso as pessoas escolhem em qual meia-verdade acreditar. Para que escolher uma meia verdade? Não é melhor ser realista, pensar em um projeto concreto para a facilitação de um processo pacífico na região, e esperar para julgar os exatos malfeitores quando/se a verdade ressurgir? Do que tantos tem medo? Que Netanyahu sáia impune? Ora essa, Bush saiu impune, Idi Dada Amin, Pinochet, e os generalíssimos brasileiros saíram impunes. O que importa é paz e como chegar lá. Alguém tem sugestões?
A realidade no Oriente Médio não se equipara, nem remotamente, à realidade dos Estados Unidos quando decidiu no fim do século 19 que tinha um destino a cumprir como dono indisputável das Américas e de todo território que fosse de seu interesse. A vida local é dozada de incertezas, mesmo que um dos povos esteja socialmente mais avançado do que o outro. Pois eu, como judeu, como israelense e como amante de Israel, não quero que Israel desapareça. Como neto de sobreviventes do holocausto sei o que significa não ter uma pátria nesse mundo de ideologias passageiras. Não mais me importa, do ponto de vista prático, se foi injusta a colonização israelense, ela já é, já existe, é um estado, tanto quanto Gaza quer ser e deveria já ser considerado, ao que seria um estado “inimigo de seu vizinho” por enquanto, ou seja, não avançaria, assim como está, nenhuma causa para a paz. Quero apenas que essa repartição seja justa e segura de agora em diante, que o Estado Duplo venha a existir, e que a convivência pacífica seja legitimamente viável. No mais, quando morrem crianças, o que tenho a fazer é apenas chorar. Consigo dormir ao fim da noite apenas porque penso que nessa tristeza pelo sangue de inocentes derramados, não desejo a morte de “outro” ninguém.
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