quarta-feira, 28 de abril de 2010

Casal


Esta é uma daquelas composições que a gente carrega pra vida toda. Não anotei a data da publicação, mas foi no jornal carioca O Dia (há, talvez, 10 anos). Para mim, a pura genialidade do nosso Millôr Fernandes. Muitos textos meus foram claramente iluminados por este poema que, agora, compartilho.

CASAL

Poema transubstanciado de um poema de David Lehman.
.
Ela adorava saltar de trampolim.
Seu apelido era Esquilo.
Quando beijava enfiava a língua até a garganta dele.
Trabalhava em propaganda. Não, não, editoria. Era seu sonho, desde a Faculdade. O primeiro original que comprou e editou foi A culinária de Wittgenstein. Fácil imaginar quanto durou a editora.
Só começou a apreciar sexo quando o marido a abandonou. Mas ele aparecia vez por outra, em fins de semana. E realizava na cama tudo que ela pedira no passado.
Era advogado. E ativista da Ong Não na Tua, na de Todos. Editava o jornal-panfleto Irmão ou Caím.
De onde vinha toda essa raiva dela? Ele nunca descobriu. Só sabia que a raiva era a maneira de ela gostar dele.
De apertar o coração perceber que ambos os ex tinham casado com outros ambos.
“Tem coisa que doa mais no coração?”, ele perguntou. A lista dela incluia o alvorecer, o dia da formatura, e a cidade de Paris, que ela descrevia em prosa vívida, muito antes de ter botado os pés nessa cidade.
Razão do enorme sucesso dos seus Guias de Viagem.
Um dia percebeu por que tinha casado com ela; assim não precisava pensar nela.
Ela só falava coisas óbvias. Mas falava muito bem. Também continuava dando gafes como quando atribuia “E agora, José?” a uma velha tia.
E vivia deprimida pela dificuldade de comprar nectarinas maduras na Barra da Tijuca. Uma alma estrangeira.
Ela fez alguma crítica acerba, ele explodiu, fora de si. E ela ainda perguntou: “Quer dizer que acabou tudo?” Ele disse apenas foda-se.
Foda-se você, disse ela e mandou ele sair.
Tudo bem, ele disse, eu vou embora, se é isso que você está querendo. E se ainda interessa saber onde é que eu ando, estou no Paraná, fudendo a Kim Nowak, como disse o Baby Pignatari praquela Linda Christian que tomava banho de espuma em 16 de agosto de 49.
Ela ficou tão deprimida que não saiu do quarto o ano inteiro. Só assim não se metia em confusão. O trabalho a tornava sedentária. O único exercício que fazia era colocar dois pedaços de presunto entre dois pedaços de pão – um sanduíche. E escrevia diálogos entre um homem e uma mulher quando um dos dois – depois resolvia quem – se mandava: “O que é que você está fazendo?” “Por que é que você está perguntando?” Sempre o mesmo texto, repetindo Jack Nicholson no Iluminado.
E choveu o dia todo, transformando uma tarde de dezembro numa noite de inverno da Inglaterra. A rapidez de seu raciocínio era maior do que a luz.
“Como vai tua ex-mulher?” “Se divorciou também, como nós dois” “É o que temos em comum.”
Ele tinha o curioso hábito de sorrir quando nervoso. O que o tornava mal jogador de pôquer. E encantador para ela. Ela gostava da vida boêmia, ou não gostava tanto assim, mas fingia. A alegria fugia dos olhos dele mas o sorriso aguentava-se na cara, não sabendo pra onde ir. A imagem de Deus barbeava-se no espelho sentindo a falta dela.

4 comentários:

Jens disse...

Oi Marcelo.
É sempre prazeroso acompanhar mestre Millôr em seus grandes momentos. Impossível não recordar de "É...", peça original do mestre que tive o privilégio de assistir, juntamente com Beti Timm, nos anos 80, interpretada por Fernanda Montenegro, Fernando Torres, Renata Sorrah e Everton de Castro, no ainda existente Teatro Leopoldina, em POA. Na peça, a exemplo do que faz neste poema "transubstanciado", Millôr expõe as delícias e torturas do relacionamento entre um homem e uma
mulher - no caso, invariavelmente uma viagem da utopia à cozinha do inferno. Geralmente, os homens não aguentam o calor.

Um abraço.

Cris disse...

Deliciosas constatações sobre o amor, não, Marcelo? Aguentar o amor só com Humor!

Beijão.

dade amorim disse...

Millôr é assim, sempre com um toque de gênio. E muito pertinente é o comentário da Cris - bota humor nisso.

Quanto ao post anterior, o que houve com Moacy? Ele andou meio mal há um tempo atrás. Será que não está bem?
De vez em quando a gente vai lá ver como estão as coisas. Mas ele bem que podia dar notícias, né?

Beijo pra você.

Renato Couto disse...

O que falar mais do Millôr? "O sol nasce para todos, mas a sombra somente para alguns..." Essa nunca me saiu da cabeça. Abraços.