sexta-feira, 1 de agosto de 2008

Afro-descendente com orgulho!

NEI LOPES
O Globo (Opinião - 31/07/2008)
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Escrevemos este texto sob o impacto, profundamente negativo, do artigo “Visita à terra dos negros”, publicado nesta página, no último dia 24 de julho. E o fazemos para demonstrar, em poucas linhas, que, se o indivíduo afro-brasileiro e o brasileiro em geral conhecessem um pouquinho de História da África e da afro-descendência, no Brasil e no mundo, ninguém se surpreenderia ou se horrorizaria ao visitar a África de hoje, notadamente aquela parte do continente mais atingida pelo genocídio iniciado com a chegada dos europeus no século XV.
Quem se dispuser a conhecer um pouco dessa tragédia saberá que a mesma Humanidade que, hoje, justificadamente, se extasia diante de um Michelangelo, também há de se tocar com a beleza naturalista dos bronzes de Ifé e Benin, obras de autores africanos cujos nomes, infelizmente, a História não registrou — talvez como recurso para atribuir a extrema beleza dessas obras a artistas europeus, como já se tentou fazer sem sucesso. Como compreenderá também, por mero exemplo, a grandeza artística dos negros spirituals, canções que, segundo a melhor musicologia, produzem seu indescritível efeito pelo emprego de uma escala (pentatônica) completamente diversa das convencionais seqüências de tons maiores e menores da música ocidental, e desconhecida na Europa até pelo menos o século XIX.
Da mesma forma, quem, em busca de conhecimento, for além do que hoje, no Brasil, oferecem as universidades e as listas de best-sellers, vai saber que, bem antes de Alexandre, no século XV a.C., o negro Tutmés III, príncipe núbio (filho bastardo que Tutmés II levou para a corte faraônica), quando no poder, estendeu seus domínios até a Ásia, inaugurando a era do imperialismo egípcio. Com ele, o Estado egípcio atingiu o maior momento de sua expansão territorial, subjugando povos e reinos até a Mesopotâmia, chegando, mesmo, à Europa mediterrânea. Assim, até as vésperas de sua morte, todos os reinos das margens do Eufrates à quarta catarata do Nilo, eram seus tributários. Cerca de 700 anos após esse Tutmés, uma dinastia de reis núbios, negros portanto, tomou o Egito, governando-o por cerca de 90 anos. Esse período se inicia com o faraó Piye-Piankhi, o qual, liderando uma revolução nas artes de na cultura e, após unir as civilizações do Vale do Nilo, restaurou templos e monumentos, transferindo a capital de Tebas para Napata, no atual Sudão. Noutra dimensão histórica e geográfica, vamos ver que, antes de Cristóvão Colombo, Abubakar II, imperador do Mali, adentrou o Atlântico com cerca de duzentas embarcações de pesca e chegou ao México atual, por volta de 1312.
Na mesma medida, é preciso mostrar que a ciência que pauta seu saber pelos ensinamentos de Platão, discípulo do egípcio Chonoupis; de Sócrates, que estudou na cidade egípcia de Busíris; e de Aristóteles (“os que são excessivamente negros são covardes e isso se aplica aos egípcios e etíopes”, disse ele) ou mesmo pelos ensinamentos do Eclesiastes bíblico, igualmente inspirado na filosofia kemética (do antigo Egito); essa ciência talvez também pudesse guiar-se, acaso a conhecesse, pela visão de mundo contida no conjunto de muitos milhares de parábolas enfeixadas no corpo de ensinamentos do oráculo iorubano de Ifá. E mais: os que ainda acreditam que Hipócrates foi o “pai da medicina” certamente nunca ouviram falar no egípcio Imhotep. Como os admiradores de Napoleão seguramente nunca souberam do zulu Chaka, o comandante africano mais temido pelo imperialismo europeu no século XIX, por força de inovações, estratégias e armamentos que criou, até sua morte em 1828. Da mesma forma que até mesmo os cristãos mais esclarecidos certamente não sabem que o orixá Ogum é venerado, na África e nas Américas, por ser a divindade da tecnologia (que ensinou os homens a domarem o ferro), dos negócios militares, do trabalho e, conseqüentemente, da prosperidade e da saúde.
Finalizando este texto, sob a inspiração de W.E.B. Dubois, André Rebouças, Abdias do Nascimento, Milton Santos, e outros não menos, perguntamos: o que seria da música popular que se consome hoje em escala planetária se não fosse a arte musical criada pelos afro-descendentes nos Estados Unidos, no Caribe e no Brasil?
É por tudo isso que não nos consideramos “brasileiro negro” nem “negro brasileiro”. Somos, sim, com muito orgulho da ancestralidade que cultuamos, um afro-descendente, integrante de uma maioria etnocultural num país em que, por razões que muita gente esclarecida ignora ou finge ignorar, uma parcela minoritária da população detém o poder político e econômico e manipula o conhecimento, desde sempre. E a essa minoria é mais conveniente ensinar aos jovens, nas escolas, que a proposta de se estudar a África, “terra dos negros”, é uma “declaração de ignorância”.
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NEI LOPES é compositor.

10 comentários:

Moacy Cirne disse...

Muito bom o artigo de Nei Lopes (aliás, não vimos o texto Visita à terra dos negros. Quem o escreveu?). Por coincidência, vi na segunda que passou, na Maison, um belo filme africano: "Bamako", de Sissako. Será destacado no Balaio de amanhã. Um abraço.

Marcelo F. Carvalho disse...

Está 2 postagens abaixo, Moacy, aqui mesmo no blogue.
Outro abraço!

Renato Couto disse...

Já tive a oportunidade de apreciar a cultura de Nei Lopes em alguns (raros) programas bons de televisão. Ele que é um orgulho da raça...bem, do compositor nem se fala:
"...Quem não pode com mandinga, Não leva e nem brinca de ter patuá..."
Só pra quem gosta de SAMBA de verdade...
www.seumlertabom.blogspot.com

AB disse...

Excelente texto de Nei Lopes para essa já tão antiga discussão, MARCELO querido. Abs.

Loba disse...

Já tinha estado aqui, mas parece que meu comentario se negou a ficar. Mas foi bom ler de novo. Sou parte deste imenso contingente de afro-brasileiros e tenho um orgulho danado de pessoas como Nei Lopes.
Beijocas

Meneau (o insuportável) disse...

Meu camarada, você já deu uma olhada no Novo dicionário banto do Brasil, escrito pelo Nei Lopes? O cara sabe do que fala. Por isso que eu adoro aquele livro (O samba do irajá e de outros subúrbios) no qual, o autor - Cosme Elias - escreve:

"A obra de Nei Lopes é extremamente significativa[...]pois a própria maneira como concebe suas canções e escreve suas peças e livros é uma atuação política."

Um abraço.

Jens disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Jens disse...

Salve, Marcelo.
Dizer o quê? Esclarecedor (confesso, desconhecia 80% das informações do texto); redentor (um bálsamo, depois da indignação suscitada pelo texto do racista do DM); enfim, supimpa.
Uma indagação: qual o problema em democratizar estas informações através dos bancos escolares?
Uma tentativa de resposta: provavelmente medo de vitaminar a auto-estima dos negros e, assim, estimular uma reação mais concreta à secular exploração dos brancos. O orgulho racial assusta os dominadores. Como se sabe, um povo humilhado, ignorante da sua história de sabedoria e lutas, é mais fácil de explorar. A elite branca sabe o que faz quando investe contra a educação.
Um abraço. Mais uma postagem porrada. Parabéns!
(Quem escreveu e excluiu o comentário acima fui eu. Precisava de revisão).

Loba disse...

Ei! Tudo bem por aí, fessor?
Beijão

Marcelo F. Carvalho disse...

Amigos, estou sem tempo algum devido ao trabalho. Posto assim que desafogar.
Abraço forte a todos!