quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Espelho


Engraçado, mas o que vinha a sua mente era o seu sorriso carnudo e seus olhos grandes, castanhos e discretamente repuxados, dando ao formato do rosto uma característica que ele adorava. E era sempre assim. O seu refúgio das angústias do presente, quando a tempestade no seu espírito dava sinais, pensar nela reverberava uma alegria melancólica, uma energia de momento congelado, uma superfície confortável. Se era essa a realidade do que foi? Não vinha ao caso. As melhores lembranças são invenções nossas de algo que aconteceu.
Clarice escreveu que somos o que estamos sendo agora; um dia depois que nascemos, nós nos inventamos. Contudo, também era verdade, na sua própria escrita, um livro depois, que criar não era imaginação, era correr o grande risco de se ter a realidade. E por que os dois não podem estar certos ao mesmo tempo, onde a realidade e o imaginar são os dois buracos de minhoca que os perpassa sem dividir?
E se somos invenções nossas e dos que nos cercam, existimos ou imaginamos e somos imaginados? Personificamos?
Foda-se.
Engraçado, mas o que vinha a sua mente era o seu jeito despojado, sua voz firme. Ele gostava de estar envolvido nos seus braços e lábios, sentir o cheiro do seu pescoço, da sua roupa. Por que, no volume das lembranças, na quantidade de saudade, o cheiro do pescoço ou da jaqueta jeans era tão fundamental? Vai entender! Ou o sentir é vão, ou as impressões mais marcantes dizem muito mais a respeito dele próprio antes de algum entendimento.
Mas aí ele teria que perguntar por que ela? O que tinha dele nela? Sua mãe, diria Freud. Mas no gosto da saliva ou do porquê de esperar o sorvete derreter um pouco pra apreciar a cremosidade líquida, o que era paixão?
Engraçado, mas o que vinha a sua mente era o modo como ela levava o cigarro à boca e enchia as bochechas. Era o seu modo punk de parar e colocar um dos pés no muro, as mãos na jaqueta. O que eram imagens dele misturadas à lembrança do que pode ter sido ela explica as imagens pouco sexuais.

Ele de fato a amava?


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